domingo, 28 de abril de 2013

RELEMBRANÇAS


RELEMBRANÇAS

                                              
Lecionei cinquenta e dois anos, em várias Escolas. Inclusive no Acre, durante um mês, na Década de Setenta. É uma vida profissional repleta de fatos, episódios, incidentes bons e ruins, alguns pitorescos, vários notáveis, uns que prefiro esquecer, outros que ficarão para sempre na memória.
Não tenho o hábito de ficar relembrando-os, desfilando o passado como um filme em reprise. Prefiro deixar as lembranças adormecidas no seu tranquilo reino pretérito.
Há, no entanto, alguns episódios que amo recordar. Eles vão e voltam, renitentes; embora simples, são lembranças recorrentes que, por alguma razão, não são esquecidas.
Era uma sessão de Laboratório de Redação para Vestibulandos. O tema político pedido já fora discutido antes, à exaustão e agora era o momento difícil para se organizarem as ideias e fazer a dissertação.
Na minha frente, um jovem penava para redigir a tese inicial de seu texto. De repente, levantou-se e veio me mostrar o caderno. Surpresa, vi que ele não escrevera sobre o assunto proposto, mas fizera dois versos líricos belíssimos. Olhei para ele e sorri. “Meu querido, esqueça de sua dissertação. Você acaba  ser iluminado pela inspiração poética que, como uma borboleta branca, pousou em sua testa”. Toquei em sua cabeça com carinho e mandei-o para o fundo da sala, terminar seu poema. Alguns dias depois, o jovem poeta me disse que fora o dia mais lindo de sua vida.
Outro episódio aconteceu na mesma Escola. Um dos alunos, nosso herói de dezoito anos, era lindo; descendente de japoneses, chamavam atenção seus olhos escuros amendoados, a face sempre séria.  Um dia mostrou-me, com timidez, um pequeno poema que fizera. Li os versos, que eram muito ruins. Dei-lhe alguns conselhos sobre a linguagem figurada.
Muitos meses depois, ele me mostrou outro poema seu. Encantada, li a pequena obra-prima. Que acontecera? Soube que ele se apaixonara por uma linda colega de classe. A vida, no entanto, nem sempre é bela. A doce Capitu deixou o nosso herói por um jovem rico, que ia buscá-la todas as tardes em um BMW. O preterido nissei sofreu muito, durante meses. Temperado pelo sofrimento de amor, ele escreveu lindos poemas e, mesmo sem o saber, enfatizou a teoria de Gide, que não há obra de arte sem a colaboração do demônio.
Minha outra lembrança impressionou-me profundamente. O garoto tinha uns doze anos; era humilde, meio arredio e magricela. Chegando à minha mesa, entregou-me com timidez a redação que escrevera. O tema proposto era sobre a vida. Seu texto estava razoável. Aí, ele me olhou e perguntou, candidamente: “Por que todo mundo, na vida, gosta mais do lado maduro da fruta?”.
Abismada, fiquei olhando-o como a um milagre. Sua pergunta era filosófica e sábia. Muito mais tarde, lembrando-me dela, fiz um poema que está publicado no meu livro Replantio de Outono, de 2008: “O homem, incauto, inocência, / procura sempre viver / no lado maduro do fruto / e no verde, no ácido acre / morrem suas esperanças e sonhos, / apodrecidos, às vezes, na espera fatal. / Planta árvore, nega o fruto? / Que é a vida se não houvera / ao menos uma só vez / rica seara, doirado trigo / que enfeita o vento carregado de azul? / O terreno da esperança / é demasiado fértil. / Há risos de bonança / em plena tempestade. / Diante da frugal colheita, / o homem, animal que sonha, / não aprende, não aceita o bruto / da realidade cansada de repetir. / Ele ama, inteiro, persistente, / o lado maduro do fruto”.

domingo, 21 de abril de 2013

AMOR & ÓDIO


 AMOR & ÓDIO
        
         Os dois sentimentos são parentes. Eles se interdependem, têm até analogias. Ambos são de Eros e não de Tânatos, ligados à vida, contrários à morte. Têm características essenciais: o dinamismo, o fogo, o movimento. Sua ausência sabe a morte, denuncia ociosidade, frio, estaticidade, tudo que é antônimo de vida.
         Ora, para se amar e/ou odiar (aditiva e alternativa sim, visto que os dois sentimentos se inter-relacionam) há que se ter o ente amado que passa a ser odiado, ou vice-versa. Muitas vezes, um alavanca o outro, um degenera no outro e, rarissimamente, o segundo transubstancia-se, de maneira excelsa, no primeiro. É quando se dá a vitória do bem, da virtude e da cordura.
          Sempre foi grande preocupação do Existencialismo comprovar em obras famosas, como “O Muro” (de Sartre), o “Estrangeiro” e o “Mito de Sísifo”(de Camus) e em quase todas grandes obras de Clarice Lispector, que os homens são estranhos ao seu mundo, não entendem o que os cerca, morrem com a sensação de estranheza e vazio, sem respostas para as eternas perguntas. Reféns do amor ou do ódio. Os dois sentimentos maiores alicerçam-se sempre em um binômio: ama-se o outro, ou odeia-se a alguém. Talvez se possa elucidar a grande problemática, dando uma rastreada pelos diversos Complexos, estudados na Psiquiatria.  Todos se baseiam nas duas faces bifrontes, atração/rejeição, amor/ódio. No complexo de Caim é o amor e o ódio fraterno que levam à morte; uma criatura caímica é a que tem inveja, monstro verde que distorce, muda, envenena. Édipo, síndrome mais conhecida, é o ódio pelo pai e o amor desordenado pela mãe; o mundo todo conhece a trágica história do filho de Jocasta Em um dos chamados Complexos, o mais expressivo para se estudar o binômio sedução/recusa é o de Empédocles. O filósofo grego de Agrigento, com o amor e o ódio de sua atração mórbida pelo abismo, precipita-se na cratera do Etna; o vulcão só devolve uma de suas sandálias.
O que se aprende com essas breves reflexões? O ser humano luta, desde sempre, com seus mais diversos ódios, cognominados de racismo, xenofobia, aversão, repulsa, antipatia, incompreensão, incompatibilidade, desunião, desarmonia, não aceitação e incomunicabilidade.
         Desde priscas eras, o homem é refém desses vícios nefastos. Guerras sangrentas, genocídios, até em nome de Deus, nações diversas, de raças várias, sempre alimentaram a trágica díade Amor x Ódio.
         Não há terapêutica, nem solução mágica para resolver a questão complexa. Ora, sabe-se que, para grandes problemas, não existem soluções fáceis. Diante do exposto, poder-se-iam aventar hipóteses a longo prazo, algumas talvez utópicas: medidas sociais, psicopedagógicas e/ou artístico-filosóficas.
         Corro o risco, no entanto, de ser tachada de simplista.  Que se lembrem de alguns exemplos expressivos,  da Sétima Arte, de artigos e livros otimistas, que alertam e denunciam,  outros do dia-a-dia, da vida, da Natureza,  entre os animais, episódios bizarros que enfatizam o antídoto contra tais males intrínsecos à raça humana.
         Os homens, todavia, fazem ouvidos moucos para essas mensagens sábias. Continuam na sanha perversa para provar, talvez, sua pretensa racionalidade

domingo, 14 de abril de 2013

NO OBLÍQUO DA INTENSIDADE


NO OBLÍQUO DA INTENSIDADE

                 Maria Lúcia Cardoso dos Santos é uma mulher estranha e complexa, floresta cerrada que se desconhece. Seu currículo é rico e variado, repleto de títulos, cursos, diplomas na área da Saúde e da Poesia. Tem livros de  poesia infanto-juvenil, poemas líricos, contos, além de artigos sobre Enfermagem.
                 Contudo, o que impressiona é seu jeito de ser, ora calada e esquiva, ora enfrentando um grande público, como declamadora, pois cursou o Conservatório Dramático e Musical em São Paulo.
                 Dia 14 de março ela lançou o livro No Oblíquo da Intensidade (Editora Legis Summa, Ribeirão Preto, 2013), com Prefácio de Oscar Luiz de Moura Lacerda, capa e belas ilustrações de Norma Campaz.  O título demonstra características do conteúdo: obra erudita, metafísica, que busca respostas universais aos questionamentos dos seres humanos.
                 Logo na página 19 há um lindo poema que poderia ser dedicado a Clarice Lispector. Ele é todo alicerçado na Filosofia  do Existencialismo, assim como no poema Pelas Veredas Perdidas (pág. 25) ; além do terceiro verso ser o título do livro, o texto descreve o negativo amargo da vida, da angústia e da solidão, do nada de uma existência vazia.
                 Há outros poemas no livro, que espelham essa Filosofia, como Metamorfose Vegetal (pág. 29), conceitos filosóficos que surgiram nos meados do século XIX, com o pensador dinamarquês Kierkegaard, seguido por figuras ilustres como Heidegger e Jean- Paul Sartre. Em essência, é uma visão dramática da existência do Homem, que pode  contar somente consigo próprio, chegando-se até à visão niilista de Albert Camus.
                 A linguagem de Maria Lúcia é rica, ela usa metáforas fortes e procedimentos gramaticais interessantes como a adjetivação do substantivo em “não um homem túmulo”.  Um belo exemplo é o minipoema da página 55, síntese de grande beleza: “  Tenho raízes nas tuas carnes / como a árvore na terra/ e meu corpo deslumbrado caminha / por dentro da tua realidade/ pisou  na brasa do teu chão/ por caminhos sem fim”.
                   Há alguns poemas herméticos, com a figura recorrente do elefante, talvez menção subconsciente, ou apenas fálica. O erotismo da Poeta é ora delicado, ora muito forte. Exemplo do segundo é a primeira estrofe do Poema Transpessoal, da página 99: “Sou a fêmea que afaga e cria / e lambe o dorso fremente/ do fruto viçoso e quente/ germe que veio da terra / seiva e entranhas / transgênese.”
                   No poema Mulheres (pág. 137), MLCS abandona
 as buscas e questionamentos, vasculhando seus porões e o subjetivismo alteia-se para o social, para o universal: “Eu tenho dentro de mim / muitas mulheres/ Às vezes sou todas elas,/ Atuante, conflitante / Em emoções e valores _ amando e ensinando a amar!”.
                 Algo que enriquece o belo livro No Oblíquo da Intensidade são citações de autores famosos, que a Poeta coloca em epígrafe, nas subdivisões dos textos. Assim, ela nos presenteia com belos pensamentos de José Meumann, Sólon Borges dos Reis, Octávio Paz e esta joia de conceito poético, de Rosa Maria de Britto Cosenza: “ A poesia é o vento que sopra forte e semeia instabilidade no terreno dos corações por onde passa.”
                 Sucesso a esta nova obra da grande Poetisa e Acadêmica  Maria Lúcia Cardoso dos Santos!

domingo, 7 de abril de 2013

A IGREJA DO DIABO


A IGREJA DO DIABO
                  
         É comum pensar que o mundo nunca foi tão violento. O homem moderno transformou-se no grande vilão. Na verdade, a violência nasceu com o ser humano, está na sua essência. O fratricídio de Caim é o exemplo expressivo, nos imemoriais tempos bíblicos. Os latinos já afirmavam sabiamente que o homem é o lobo do homem, verdade ratificada por Hobbes, no século XVIII.
                   Em uma análise um pouco mais criteriosa, vê-se que a violência banalizou-se, assim como a moral, os costumes, os valores em geral. Apenas algo inexorável não mudou: a complexidade humana. Grandes obras literárias, mitos, lendas, tudo atesta isso. E essa causa detona efeitos irreversíveis: cada vez mais a comunicação torna-se difícil, os relacionamentos mais duradouros tendem a desaparecer. É um paradoxo. O homem é um animal gregário, não nasceu para viver só. Ao mesmo tempo, com sua complexidade, entender o outro, viver com ele é um pesadelo, um impasse. Os poucos que o conseguem são privilegiados, assinalados, ou mais sábios na arte de viver?
                   A temática não é moderna. Em famoso conto com o título em epígrafe, Machado de Assis consegue, de maneira magistral, criar uma fábula (ou apólogo?) demonstrar a condição humana. O Diabo, belo e varonil, pede a Deus para criar uma Igreja que arrebanhará milhões de adeptos. Lá, todos os vícios seriam virtudes e vice-versa. O paraíso dos pecadores. Liberdade total. Libertinagem, ausência de censura. E o Diabo, maléfico, sorrateiro, sagaz e inteligente, vai explicando sua nova teologia (ou demonologia?). Sua lógica é perfeita. Quase chega a driblar o Senhor, com o exemplo do velho misógino. Interessante notar que os pronomes de tratamento são expressivos. O Diabo dirige-se ao Senhor, tratando-O por “Vós”, com respeito e Deus fala ao filho rebelde com intimidade, usando o “Tu”.
                   Talvez enfastiado de tanta lógica e sofismas, ou querendo dar uma lição a Lúcifer, Deus dá o alvará à Igreja do Diabo.  Dá-se, então, o esperado. Multidões se deliciam com a nova seita tão atraente. Os conceitos são interessantes. A fraude, por exemplo. Ela é o braço esquerdo do homem; acontece que muitos nascem canhotos, então não há culpa. “Se podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas legalmente tuas, por que não a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé?”. Tudo é apenas exercer um direito. Não proibiu a calúnia gratuita; ela deve ser exercida mediante retribuição, melhor ainda se for paga. Solidariedade, falta grave, deve-se dar ao próximo a indiferença.
                   O conto é uma obra-prima atualíssima e universal, de conhecimento da alma humana. O homem, desde os primórdios, tenta entender o Bem e o Mal, por que é tão árdua a luta, a opção por um ou pelo outro? Pascal, no século XVII, derrubou a filosofia simplista do Maniqueísmo, aceita na Idade Média. Machado de Assis, com ironia, resume toda a questão tão complexa, com a alegoria das franjas. Os homens são paradoxais. Aparentemente livres, suas almas têm franjas de seda e / ou de algodão, se amantes do pecado, do erro. Impossível rotulá-los de bons ou maus. Nem eles mesmos sabem optar. É a eterna contradição humana.