domingo, 10 de junho de 2012


FLASHES

QUADRO I
         Ela veio vindo pelo longo corredor. Eu a reconheci. Trinta anos a mais. Sofrimento e preocupação na face triste. Estava com o filho no Hospital. Estranhamente, atrás da figura em primeiro plano, vinha outra, em um magnífico vestido verde-cana, com decote amplo, aureolado de plumas. Ela valsava pelo salão iluminado, nos braços do marido. Ele, esguio e elegante, em seu smoking vinho, guiava-a em rodopios pelo salão. Quadro perfeito harmonizando com a música bela, as luzes.  O ambiente alegre contagiava. Momento inesquecível. De repente cessou a música, apagaram-se as luzes e diante de mim ficou apenas a mãe preocupada, infeliz.
         Nunca a transitoriedade da vida me pareceu tão evidente. Os versos de Cassiano Ricardo soaram como uma profecia:  “No momento em que se nasce,/ já se começa a morrer”. A grande lição fatídica da inexorabilidade.

QUADRO ll
         Imagine a manhã fresca e azul, com um céu opalino. Tudo inspirando um belo dia. Entro no quarto de minha mãe e paro estarrecida. Ela estava imóvel, respirando apenas. Foi feito tudo para acordá-la. Em vão. Aferimos a pressão. Muito baixa. Pareceu-nos que ela estava meio febril. Meia hora depois, a Ambulância veio buscá-la. Hospital, sala de emergência, exames, raios-x. Ela estava com uma infecção urinária grave. Diante do quadro, o médico resolveu, por segurança, interná-la na UTI Geral.
         Durante três horas fiquei na Sala de Espera, aguardando notícias. Visitas só às 16:30h. Fui tomada de grande tristeza pelo inesperado. Ela estava tão bem na véspera. A vida pareceu-me um jogo perigoso, sem regras fixas, quando tudo pode acontecer.
         Ao meu lado, em cadeira de rodas, um homem idoso, bonito ainda, muito triste, aguardava ser atendido. As filhas, solícitas, perguntaram-lhe se queria algo, estava com fome ou frio. Ele nada respondia, alheio, com um rosto de pedra. Senti que ele vislumbrava a seriedade do momento. Era chegada a hora do acerto de contas pelos anos vividos. A idade sempre cobra em hora inesperada. E sem direito a reclamações, entrada na justiça. É sempre uma situação inegociável.

QUADRO III
         Melancólica, alma cinza, ambiente pesado.  Ao redor, dor e preocupação, cada um com sua cruz. Foi aí que uma mulher simpática, jovem ainda, saudável e sorridente, fez-me um pedido inusitado: pode tomar conta de meu bebê? Vou lá dentro pegar uma receita... Aceitei, com o coração aos pulos, diante da criança linda que ela me entregou. Anjo dormindo.
         Quando ela voltou, conversamos. Rose, seu nome, e sua história incrível. Pedro, o garoto de onze meses, era seu quinto filho. Mas tinha oito. Adotara três sobrinhas. O irmão desnaturado abandonara mulher e as três filhas, em uma longínqua cidade de Goiás. Passaram até fome. Rose, que morava em uma chácara espaçosa e cheia de verde, construiu uma casinha para a nova família. Comprou uma mesa de três metros. O café da manhã e as refeições eram pura alegria. Só Deus entende como o marido e ela davam conta. As crianças frequentavam escola, a cunhada ajudava na lida. Tudo corria bem.
         Impressionou-me a simplicidade como Rose encarava os fatos, com uma generosidade sem alarde. Rose, uma história, sua bondade, era um antídoto contra as mazelas do mundo. A vida podia ser mágica. O autor do roteiro de nossa existência é um grande artista que entremeia tristezas, alegrias e os finais são sempre inesperados. Tudo faz parte da Grande Peça.

QUADRO IV
         A Grande Lição: neste mundo bizarro  há um grupo do Mal, capitaneado por Lúcifer, que conquista seus asseclas pela falta de caráter, pelos vícios e a ambição. Do outro lado, um exército diferente, talvez abençoado por Madre Tereza de Calcutá e outros santos.  No conto A Igreja do Diabo, quando o Demônio se frustra, porque  não consegue entender os homens,  Deus, sabedoria infinita,  esclarece que o absurdo e a incongruência fazem parte da essência humana. Altruísmo e egoísmo, amor e maldade, tudo muito misturado. A opção de se engajar no primeiro ou no segundo exército, depende de que? Mistério maior. De novo é um grande poeta, Fernando Pessoa, que me responde: “Não procures, nem creias. Tudo é oculto”.

6 comentários:

  1. Querida amiga poeta

    A pena lhe dá a segurança das letras e das linhas.
    E como vale a pena, quando se percebe alma nobre que habita em teu ser impoluto.
    Tuas leituras fazem constante meus dias.
    Procuro-as ávida. Encontro-as. Quantas vezes as entrelinhas me escrevem.
    Teu relato tocou-me profundamente.
    Digo que vez ou outra, deveríamos adentrar os corredores frios de um hospital e perceber a vida e a morte que pulsam lá dentro.
    Extremos mas que fazem diferença para o nosso caminhar.
    Minha existência levou-me, por inúmeras vezes, compartilhar o nascer e o morrer, através de primos, belos, vigorosos que espargiam seus primeiros choros e risos para uma nova vida.
    Tios, avós, irmão, mãe, pai, que se declinavam para o derradeiro momento.
    Sei bem o que escreve, querida. Pude participar e acrescentar falas a tua fala.
    Saber que a dor que se sente, não é maior nem menor ao do poeta que finge a própria dor. Porque ao final de tudo, sabe que se a alma não é pequena, tudo vale a pena.
    Não pude conter as lágrimas e as linhas.

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  2. Querida Inajá,
    Cada comentário seu é algo lindo, cheio de sensibilidade e delicadezas. Você é uma poetisa, mulher notável, sensível, de alma muito rica. Deus a abençoe.
    Abraço.
    Ely

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  3. Ely querida

    Tuas palavras a mim direcionadas, enchem-me de satisfação ao perceber compactuarmos alinhavos literários e poéticos.
    Em Ribamar teci algumas linhas, pois ávida busquei e encontrei o livro. Agora é ele, o livro, que me faz companhia constante.
    Agradeço esses encontros.

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  4. Quadro IV

    O homem é um ser inacabado. Ora compondo-se com adições de ternura, da sutileza dos pássaros, da sensibilidade das manhãs, da sinestesia harmoniosa dos ventos, ora tem seus hiatos explicitados pela sonolência, pela impropriedade, pela ruptura de emoções. Ele é confiável ou não!

    Abraços Ely!

    Aparecida

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  5. Querida Inajá,
    Há amizades preciosas. E elas são diferentes. A sua é plena de lirismo, delicadezas. Isto é porque as relações trazem em si a essência de quem as tem. Você é minha amiga-poesia.
    Abraços.
    Ely

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  6. Querida Cidíssima,
    A cada dia você me surpreende. Este seu comentário está belíssimo! Não será surpresa se em um futuro muito próximo eu receba um convite para lançamento de livro seu.
    Beijos.
    Ely

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