FLASHES
QUADRO
I
Ela veio vindo pelo longo corredor. Eu
a reconheci. Trinta anos a mais. Sofrimento e preocupação na face triste.
Estava com o filho no Hospital. Estranhamente, atrás da figura em primeiro
plano, vinha outra, em um magnífico vestido verde-cana, com decote amplo,
aureolado de plumas. Ela valsava pelo salão iluminado, nos braços do marido.
Ele, esguio e elegante, em seu smoking vinho, guiava-a em rodopios pelo salão.
Quadro perfeito harmonizando com a música bela, as luzes. O ambiente alegre contagiava. Momento
inesquecível. De repente cessou a música, apagaram-se as luzes e diante de mim
ficou apenas a mãe preocupada, infeliz.
Nunca a transitoriedade da vida me
pareceu tão evidente. Os versos de Cassiano Ricardo soaram como uma profecia: “No momento em que se nasce,/ já se começa a
morrer”. A grande lição fatídica da inexorabilidade.
QUADRO
ll
Imagine a manhã fresca e azul, com um
céu opalino. Tudo inspirando um belo dia. Entro no quarto de minha mãe e paro
estarrecida. Ela estava imóvel, respirando apenas. Foi feito tudo para
acordá-la. Em vão. Aferimos a pressão. Muito baixa. Pareceu-nos que ela estava
meio febril. Meia hora depois, a Ambulância veio buscá-la. Hospital, sala de emergência,
exames, raios-x. Ela estava com uma infecção urinária grave. Diante do quadro,
o médico resolveu, por segurança, interná-la na UTI Geral.
Durante três horas fiquei na Sala de
Espera, aguardando notícias. Visitas só às 16:30h. Fui tomada de grande
tristeza pelo inesperado. Ela estava tão bem na véspera. A vida pareceu-me um
jogo perigoso, sem regras fixas, quando tudo pode acontecer.
Ao meu lado, em cadeira de rodas, um
homem idoso, bonito ainda, muito triste, aguardava ser atendido. As filhas,
solícitas, perguntaram-lhe se queria algo, estava com fome ou frio. Ele nada
respondia, alheio, com um rosto de pedra. Senti que ele vislumbrava a seriedade
do momento. Era chegada a hora do acerto de contas pelos anos vividos. A idade
sempre cobra em hora inesperada. E sem direito a reclamações, entrada na
justiça. É sempre uma situação inegociável.
QUADRO
III
Melancólica, alma cinza, ambiente
pesado. Ao redor, dor e preocupação,
cada um com sua cruz. Foi aí que uma mulher simpática, jovem ainda, saudável e
sorridente, fez-me um pedido inusitado: pode tomar conta de meu bebê? Vou lá
dentro pegar uma receita... Aceitei, com o coração aos pulos, diante da criança
linda que ela me entregou. Anjo dormindo.
Quando ela voltou, conversamos. Rose,
seu nome, e sua história incrível. Pedro, o garoto de onze meses, era seu
quinto filho. Mas tinha oito. Adotara três sobrinhas. O irmão desnaturado
abandonara mulher e as três filhas, em uma longínqua cidade de Goiás. Passaram
até fome. Rose, que morava em uma chácara espaçosa e cheia de verde, construiu
uma casinha para a nova família. Comprou uma mesa de três metros. O café da
manhã e as refeições eram pura alegria. Só Deus entende como o marido e ela
davam conta. As crianças frequentavam escola, a cunhada ajudava na lida. Tudo
corria bem.
Impressionou-me a simplicidade como
Rose encarava os fatos, com uma generosidade sem alarde. Rose, uma história,
sua bondade, era um antídoto contra as mazelas do mundo. A vida podia ser
mágica. O autor do roteiro de nossa existência é um grande artista que
entremeia tristezas, alegrias e os finais são sempre inesperados. Tudo faz
parte da Grande Peça.
QUADRO
IV
A Grande Lição: neste mundo
bizarro há um grupo do Mal, capitaneado
por Lúcifer, que conquista seus asseclas pela falta de caráter, pelos vícios e
a ambição. Do outro lado, um exército diferente, talvez abençoado por Madre
Tereza de Calcutá e outros santos. No
conto A Igreja do Diabo, quando o Demônio se frustra, porque não consegue entender os homens, Deus, sabedoria infinita, esclarece que o absurdo e a incongruência
fazem parte da essência humana. Altruísmo e egoísmo, amor e maldade, tudo muito
misturado. A opção de se engajar no primeiro ou no segundo exército, depende de
que? Mistério maior. De novo é um grande poeta, Fernando Pessoa, que me
responde: “Não procures, nem creias. Tudo é oculto”.
Querida amiga poeta
ResponderExcluirA pena lhe dá a segurança das letras e das linhas.
E como vale a pena, quando se percebe alma nobre que habita em teu ser impoluto.
Tuas leituras fazem constante meus dias.
Procuro-as ávida. Encontro-as. Quantas vezes as entrelinhas me escrevem.
Teu relato tocou-me profundamente.
Digo que vez ou outra, deveríamos adentrar os corredores frios de um hospital e perceber a vida e a morte que pulsam lá dentro.
Extremos mas que fazem diferença para o nosso caminhar.
Minha existência levou-me, por inúmeras vezes, compartilhar o nascer e o morrer, através de primos, belos, vigorosos que espargiam seus primeiros choros e risos para uma nova vida.
Tios, avós, irmão, mãe, pai, que se declinavam para o derradeiro momento.
Sei bem o que escreve, querida. Pude participar e acrescentar falas a tua fala.
Saber que a dor que se sente, não é maior nem menor ao do poeta que finge a própria dor. Porque ao final de tudo, sabe que se a alma não é pequena, tudo vale a pena.
Não pude conter as lágrimas e as linhas.
Querida Inajá,
ResponderExcluirCada comentário seu é algo lindo, cheio de sensibilidade e delicadezas. Você é uma poetisa, mulher notável, sensível, de alma muito rica. Deus a abençoe.
Abraço.
Ely
Ely querida
ResponderExcluirTuas palavras a mim direcionadas, enchem-me de satisfação ao perceber compactuarmos alinhavos literários e poéticos.
Em Ribamar teci algumas linhas, pois ávida busquei e encontrei o livro. Agora é ele, o livro, que me faz companhia constante.
Agradeço esses encontros.
Quadro IV
ResponderExcluirO homem é um ser inacabado. Ora compondo-se com adições de ternura, da sutileza dos pássaros, da sensibilidade das manhãs, da sinestesia harmoniosa dos ventos, ora tem seus hiatos explicitados pela sonolência, pela impropriedade, pela ruptura de emoções. Ele é confiável ou não!
Abraços Ely!
Aparecida
Querida Inajá,
ResponderExcluirHá amizades preciosas. E elas são diferentes. A sua é plena de lirismo, delicadezas. Isto é porque as relações trazem em si a essência de quem as tem. Você é minha amiga-poesia.
Abraços.
Ely
Querida Cidíssima,
ResponderExcluirA cada dia você me surpreende. Este seu comentário está belíssimo! Não será surpresa se em um futuro muito próximo eu receba um convite para lançamento de livro seu.
Beijos.
Ely