segunda-feira, 16 de abril de 2012

A MINHA PASÁRGADA


A MINHA PASÁRGADA


Vou-me embora pra Pasárgada  é um dos poemas mais famosos de Manuel Bandeira. Nele o poeta cria uma cidade utópica, onde ele é feliz, “é amigo do rei”, realiza todos os sonhos impossíveis, tem saúde, alegria, drogas à vontade e diz: “Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei”. O local é símbolo de liberdade e realização total.
            Já se discutiu à exaustão se a arte copia a vida, ou o contrário. Minha experiência é interessante. Vivi quase a vida toda enjaulada em apartamentos, por praticidade ou segurança, sonhando com uma casa térrea, ampla e clara. Sabe-se que a literatura é catártica. Assim, como meu desejo parecia impossível, em meu romance epistolar Cartas a Cassandra, a heroína, quando começa a envelhecer, muda-se para um lugar silencioso, florido, com uma casa grande e branca, rodeada de verde.
          E então, não mais que de repente, por magia, a vida copiou a arte. Dois anos depois do lançamento do livro, eu morava em um local como o de minha heroína, rodeado de murta, com muito verde, grama, flores, piscina e cachorros: duas labradoras lindas, cor de chocolate, de belos olhos verdes.
            A vida mudou. Onde moro acontecem coisas inesperadas. As orquídeas florescem, as folhagens estão sempre frescas, a brisa brinca nos meus cabelos. Há pássaros em profusão. Um dia desses um tucano passou muito perto, voando tranqulo. Até um macaquinho apareceu, fazendo micagens.
            Fiz amizade com um belo bem-te-vi, grande, colorido. Meses depois, ele trouxe a companheira e após, os dois filhotes. É bem verdade que desgraças acontecem: na semana passada, despertou em uma das minhas belas labradoras o instinto da caça. E ela surgiu com um dos meus bem-te-vis na boca, orgulhosa de sua presa. Tomou gosto e já estraçalhou uma pombinha. Só não matou um gambazinho, quando surgiu com ele na boca, o rabo pendurado para fora, porque salvamos o infeliz, arrancando-o dos dentes da fera. Não só os seres humanos são complexos e contraditórios. Lara, a caçadora, é uma doce criatura que brinca como uma criança e tem trejeitos de filhote.
            É verdade que não há paraísos perfeitos. Ao redor de meu Condomínio há um mar de cana. Os canaviais perdem de vista e são até belos, enquanto não chega a época da safra. Então começa o inferno. Acorda-se à noite, de madrugada, com o terrível barulho do crepitar das chamas , tão próximas, que assustam. O céu rubro, o cheiro sufocante, a fumaça. No dia seguinte, a prova do crime: o chão, a piscina, ao redor da casa toda, as fuligens formam um tapete triste e fatídico. Leis recentes prometem acabar com o absurdo. Palavras mortas. As queimadas continuam, poluindo o ar, matando animais, provocando acidentes,  aterrorizando.

            Contudo, às vezes, na rede, lendo um bom livro, com minhas labradoras aos meus pés, olho para o céu límpido, as flores ao redor, a murta cor de esmeralda, vejo só o que é bom, sinto-me em minha Pasárgada. Aqui não sou amiga do rei, mas sou feliz, muito feliz. Serei eu, por acaso, a personagem de um livro de Deus?

8 comentários:

  1. Ely,
    A beleza e a bondade habitam em você! A sua descrição dos arredores do condomínio revela o suficiente para alguém, amargo e feio por dentro, desistir e buscar lugares mais amenos. No entanto, você resiste e busca beleza onde beleza há e constrói o seu mundo de resistência. A felicidade também exige persistência e determinação. Pasárgada é você por inteiro.
    Um beijofraterno.

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  2. Waldomiro W. Peixoto17 de abril de 2012 às 21:48

    Ely,
    Por inabilidade, deixei o texto como anônimo. A minha admiração é e deve ser explícita.
    Perdão,
    Waldomiro

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  3. Querido Waldô,
    Sempre achei que a leitura de um texto requer duas visões, a de quem o escreve e a do leitor. Uma sem a outra não traz mistério. É uma comunhão. Amo a sua sensibilidade e a argúcia literária. Jamais me esquecerei , por exemplo, de quando você fez a primeira leitura de meu conto "Efêmera". Em seu comentário, nada escapou. Leitor assim nos enche de entusiasmo.
    Um grande abraço.
    Ely

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  4. De um lado, temos aqueles que creem que nada tem a
    ver com nada.
    Do outro ,temos aqueles que acreditam que esta jornada terrena
    é apenas uma etapa de um processo muito mais amplo
    e envolvente. Mas não é só isso. Há aqueles que diante do espelho, ensaiam peças teatrais e se esforçam para que um dia saiam do papel e transformam-se em realidade. É a lei do esforço e das probabilidades.
    Não importa quão alto possam ser nossos sonhos. Acreditemos.

    Aparecida

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  5. Minha querida,
    Sua volta com comentários inteligentes e criativos é uma grande alegria. Ficaríamos mais pobres com sua ausência. Ratifico aqui, o convite para os Salões de Ideias da Maria Carpi, da Raquel Naveira e mesmo o meu, nos dias 29/5, 31/5 e 2/6, na Décima Segunda Feira do Livro de Ribeirão Preto. Será um encontro poético entre amigos.
    Beijos.
    Ely

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  6. "Desejos"

    Desejo a você
    Fruto do mato
    Cheiro de jardim
    Namoro no portão
    Domingo sem chuva
    Segunda sem mau humor
    Sábado com seu amor
    Filme do Carlitos
    Chope com amigos
    Crônica de Rubem Braga
    Viver sem inimigos
    Filme antigo na TV
    Ter uma pessoa especial
    E que ela goste de você
    Música de Tom com letra de Chico
    Frango caipira em pensão do interior
    Ouvir uma palavra amável
    Ter uma surpresa agradável
    Ver a Banda passar
    Noite de lua Cheia
    Rever uma velha amizade
    Ter fé em Deus
    Não Ter que ouvir a palavra não
    Nem nunca, nem jamais e adeus.
    Rir como criança
    Ouvir canto de passarinho
    Sarar de resfriado
    Escrever um poema de Amor
    Que nunca será rasgado
    Formar um par ideal
    Tomar banho de cachoeira
    Pegar um bronzeado legal
    Aprender um nova canção
    Esperar alguém na estação
    Queijo com goiabada
    Pôr-do-Sol na roça
    Uma festa
    Um violão
    Uma seresta
    Recordar um amor antigo
    Ter um ombro sempre amigo
    Bater palmas de alegria
    Uma tarde amena
    Calçar um velho chinelo
    Sentar numa velha poltrona
    Tocar violão para alguém
    Ouvir a chuva no telhado
    Vinho branco
    Bolero de Ravel
    E muito carinho meu.

    (Carlos Drummond de Andrade)

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  7. Querida Ely,
    A vida é realmente mágica! Nem tudo é utopia, quimera.
    Quando acreditamos em nossos sonhos e na capacidade de realizá-los, conseguimos. Para isso, precisamos amar desmedidamente, sem receios.
    É maravilhoso encontrar nossa paz e felicidade!
    Beijos,
    Márcio.

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  8. Querido Márcio,
    Só uma pessoa inteligente e sensível como você poderia fazer isto: ler um texto sobre uma Pasárgada e enviar , de presente, um poema do Drummond, com outra. Elas são diferentes, mas ambas comprovam a possibilidade de se encontrar a felicidade. Desejo a você e a todo mundo, se possível, tudo aquilo que nosso Mago de Itabira receitou. É remédio que faz bem para todo tipo de pessimismo, tristeza, melancolia. E não tem efeitos colaterais!
    Beijos.
    Ely

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