MINHA
HEROÍNA
Olho-a com carinho, para sua pele
fresca, os olhos vivos, o cabelo cor de trigo. Nada diz que tem noventa e três
anos. Às vezes brinca, diz coisas picantes, como se fora uma adolescente
ousada. Adora ver homens belos, na vida, em revistas, na televisão.
Acompanhei os longos exercícios com
seu fisioterapeuta e fiquei surpresa: na sua idade, eu terei aquele vigor? Ela
obedece ao jovem que orienta sua ginástica, os movimentos, como se ele fosse um
semideus. Prefere vê-lo com camisas coloridas e não com seu uniforme de
profissional da saúde. Várias vezes elogiou seu sorriso, o rosto brejeiro, a
delicadeza que lhe dá as ordens ou a conduz no andador.
Agora está na varanda. A brisa
brinca nos seus cabelos e ela se encanta com o verde do grande gramado, das
cercas vivas de murta, com as flores. Alguns pássaros ousados vêm quase aos
seus pés. As duas cachorras labradoras, verdadeiras pumas de veludo marrom, com
seus olhos felinos, esverdeados, chegam até ela e lhe lambem os pés e as mãos.
Ela sorri enternecida.
Há uma harmonia nas cores, no azul
límpido do céu, nas primaveras e nas orquídeas, que florescem alvissareiras. À
esquerda, um vaso de ciclamens e um pequeno pé de azálea trocam murmúrios. Tudo
dá paz e a sensação boa que o local é um santuário. Momento mágico.
De repente um bem-te-vi grande, de
peito amarelo, pousa sobre o gradil da varanda. Ele sempre aparece, com sua
fêmea e dois filhotes. Ergo os olhos
para as alegres maritacas que fazem algazarra ao redor do mamoeiro pejado de
frutos maduros.
Minha heroína tudo vê e compreende.
É a paz que chegou, após tantos anos de batalhas difíceis, de guerra. Olho para
ela. Pendeu um pouco a cabeça e parece que dorme. Ou reza? Depois levanta o
rosto e seus olhos se perdem no horizonte. Só ela e Deus sabem o que está
pensando naquele instante.
Lendo o texto acima fico
melancólica. Ele foi escrito há dois anos. O que mudou? Na aparência, minha
heroína, minha mãe, não mudou muito. Um dia desses ela foi fazer exames
rotineiros, no Hospital. Ao seu lado estava um paciente de 85 e uma mulher de
86 anos. Ela parecia filha deles. Sempre sorridente, calma, aceita suas
deficiências pacientemente. Em casa, quer a televisão sempre ligada, come e
dorme bem. Apenas algumas coisas mudaram, desde que quebrou um fêmur e depois o
outro, tendo que tomar anestesia duas vezes.
Já não é a mesma. Algo vem
acontecendo com seus neurônios, ela entende muita coisa, às vezes reconhece
poucas pessoas íntimas, mas perdeu a capacidade de verbalizar. Responde com
monossílabos, afirma ou nega quando lhe ofereço algo. Continua vaidosa, gosta
de roupas novas e no dia em que a jovem vem pintar-lhe os cabelos e fazer-lhe
as unhas, fica alegre.
Quando estou ao seu lado, fazendo-lhe
companhia, fico a olhá-la no leito. Às vezes é ela que me fita durante muito
tempo. Pela minha cabeça passam todos os anos que vivemos juntas, há muitas
décadas. Tenho saudade da mulher alegre, brincalhona, muito vaidosa, que me
acompanhava em viagens inesquecíveis ao exterior. Ou de infindáveis noites,
quando, juntas, assistíamos a vários filmes, varando as madrugadas. Nunca fomos
realmente mãe e filha, mas duas amigas inseparáveis.
Sorrio para ela, ela corresponde.
Faço uma oração pedindo a Deus que ela ainda fique bastante tempo comigo. Ela
me olha muito e parece entender, confirmando o pedido.
Ely, não sei se sua mãe é romântica, beata ou professora. Não importa. Ela é mãe e pronto!
ResponderExcluirA maternidade começou no seu ventre e está se estendendo até hoje. E irá acontecer por muito anos.
A boa samaritana despertou em seu coração a candura de suas ações.
Quando numa exaustão direcionada, acredito que ela nunca a deixou perceber, porque obrigações continuadas iriam sempre aparecer.
Assim é sua mãe. Guerreira, forte, destemida, abnegada, amorosa. Best Seller do Criador!!
Mãe é um contrato sem dissolução.
Beije-a por mim!
Aparecida
Minha querida,
ResponderExcluirAmei seu comentário! Mãe: Best Seller do Criador. Mãe: Contrato sem dissolução... Você é muito criativa e sempre nos oferece achados, pérolas. Mãe tem virtudes próprias. A minha, por exemplo, sempre foi mais a melhor amiga, que mãe. Irmã. Hoje, na sua fragilidade, sinto-a mais minha filha. Mas o amor não muda. Grande, infindo.
Beijos.
Ely
Ely, emocionei-me às lágrimas com sua crônica. Veio-me à lembrança tudo o que vivi com minha amada e saudosa mãezinha e uma suave paz envolveu-me. Obrigada! Deus abençõe nossa querida Betti e a fortaleça, minha querida. Beijos. Iêsa
ResponderExcluirMinha querida Iêsa,
ResponderExcluirVocê é a irmã que nunca tive. E que orgulho! Inteligente, culta, sensível, encantadora, com uma grande capacidade de amar. É uma receita feliz de Deus. Das mais refinadas e raras. O mundo vale a pena, porque nele vive alguém como você, que dá lições de amor e de espiritualidade.
Ely
Queria amiga e escritora
ResponderExcluirNossas heroínas.
Nossas mães.
Nossas amigas.
Dádiva a longevidade de uma mãe.
Minha mãe partiu há quase oito anos aos 77 anos.
Saudade imensa.
Em seu texto vivi momentos singulares.
Jamais deixei de esboçar meu amor infinito pela minha mãe enquanto compartilhamos mais de cinquenta anos em vida comum.
Após sua partida, poucas palavras teceram nosso viver.
No último dia 8 de maio, fora a vez de meu pai que, aos noventa e quatro anos serenamente, sem palavras, num leito de hospital, encerra um ato em sua existência.
A ele as palavras também me vieram e pude declinar alguns alinhavos, postado num blog criado por mim para homenagear aquele que foi um pesquisador, historiador e, acima de tudo meu grande exemplo.
Aquele que me conduziu ao gosto pelos livros e pelas linhas.
Meus heróis - mãe e pai.
Ela heroína das linhas, ele herói das palavras e dos livros.
Lembranças em retalhos.
Saudades quantas amealhadas.
Os artigos estão visíveis em:
1) http://www.webartigos.com/artigos/minha-mae/5309/ - Minha mãe
2) http://nelsonmartinsdealmeida.blogspot.com.br/ - Nelson Martins de Almeida: quase um século de história
Magnífico relato.
Emocionou-me às lágrimas.
Beijos
Oi Ely, como você está, e sua família? Foi muito bom o fato de minha avó Quinha ter trazido seu cartão, eu já estava pensando em você e queria ter seu contato.
ResponderExcluirQuero aproveitar este espaço para lhe agradecer pelo curso que você ministrou há alguns anos atrás, no qual tive o privilégio de ser sua aluna, por todos os seus ensinamentos e também pela sua atenção com os alunos. Hoje colho os frutos da minha formação, na qual você também teve grande participação.
Que Deus continue iluminando seus caminhos com muita paz, sabedoria e amor.
Um grande abraço,
Andréia Godoi
Querida Inajá,
ResponderExcluirÉ incontestável; jamais nos acostumamos com nossas perdas. São cicatrizes que não desaparecem. Estou passando por um momento amargo, com minha mãe no Hospital. Logo que puder, lerei suas matérias sobre sobre seu pai e sua mãe. Com sua grande sensibilidade, devem ser textos muito belos.
Abraços.
Ely
Querida Andrea,
ResponderExcluirJovem, bonita, inteligente. Sempre disse à sua vó, mulher querida, que você é um presente de Deus. Que bom comunicar-me com você. Estou passando por um momento meio dificil, com minha mãe no Hospital. Mande-me um e-mail, para conversarmos. Gostaria de ter notícias suas, sempre. Obrigada por visitar meu Blog.
Um beijo a você e à nossa querida Quinha.
Ely
Querida amiga Ely
ResponderExcluirPosso avaliar a dor que sente.
Minha mãe esteve num leito de hospital.
Recentemente meu pai.
Difícil. Momentos dolorosos.
Que Deus possa confortá-la imensamente.
Coloque tua mãezinha nas mãos de Deus.
Amo este espaço. Beijos querida
Querida Inajá,
ResponderExcluirObrigada pelo consolo. Conversei com Deus e lhe pedi para permitir que minha mãe ainda fique uns tempos conosco. Sei, no entanto, que os desígnios divinos são inexoráveis e ELE sabe o que faz. Vamos ver quanto Ele ainda me permite tê-la comigo.
Beijos.
Ely
Ely, poucas vezes um texto mexeu tanto comigo. Não vou dizer nada, apenas vou-me contentar com a tênue lágrima que molha meus olhos e teima em não descer rosto abaixo.Um beijo de irmão a você e de filho a Dona Betty. Que ela descanse em paz!
ResponderExcluirEly, perdoe-me a emoção. Por conta disso não me identifiquei acima.
ResponderExcluirBjs, Waldomiro
Querido Waldomiro,
ResponderExcluirObrigada pelo belo comentário. A gente não se acostuma nunca com as perdas. Há quem o consiga? O que me consola é que estive com ela 22 dias, de cedo até à noite, no Hospital. Não queria que ela sofresse. E nisto Deus me atendeu, pois no terceiro dia ela teve um AVC frontal, à esquerda, e daí por diante, ficou meio inconsciente, com um olhar meio perdido... Eu conversava muito com ela, fazia-lhe carinhos, dava-me paz estar ali, muito junto dela. E o epílogo foi doce e tranquilo. Jugurta e eu, ao seu lado, ele com suas mãos em seu rosto. Ela se foi delicadamente, como uma vela que se apaga. E no velório, entre as flores, ela estava linda, nem parecia uma mulher com 95 anos! Até nisto, ela foi atendida, vaidosa como era. Agora ela está aqui, por toda a casa, entre as flores do gramado, junto de nós, das duas cachorras e dos pássaros, que ela amava.
Um abraço.
Ely
Ely
Ely querida
ResponderExcluirHá pouco também vi o desenlace de meu pai aos 94 anos.
Ainda sinto seus passos pela casa fria.
Posso imaginar o teu sentimento, a presença de tua mãezinha querida entre as flores do jardim.
Mas também tenho em meus alinhavos que há pessoas que partem. Apenas partem. Há pessoas que partem e se vão. Mas há pessoas que se vão e não partem.
Essas continuam a nos encantam. A preencher nossas vidas com risos francos. A nos embalar.
Meus sentimentos sinceros. / Inajá
Querida Inajá,
ResponderExcluirLer seus comentários é sempre um prazer e o de hoje me comoveu. Sua rara sensibilidade é um prêmio, criatura iluminada que você é.
Abraço.
Ely