CARTA
AO LEITOR
Permite-me usar a segunda pessoa do singular, tratamento
íntimo, mas afinal tu és meu amigo; mais do que isto, és meu colaborador, meu
co-autor. Explico-te. Escrever não é um ato solitário; é uma obra a dois, uma
parceria, um passo de dança. O autor e fruidor se completam. Se eu escrevo e tu
não me lês, não tem sentido e eu me torno um João Batista a pregar no deserto,
um semeador sem sementes férteis.
Muitos autores já se queixaram do silêncio do leitor, que
não tem voz e não diz o que sente diante do texto, não participa. Acho que o
mais importante, porém, é que este nosso comparsa na sombra, este amigo esconso
nos leia, compartilhe conosco nossas dúvidas, nossas procuras. Penso que nenhum
ser humano ensina nada a ninguém, ele apenas divide experiências, conta (ou
canta) seus sentimentos, emite juízos, faz comentários, tem a coragem de
desnudar o espírito diante de um público aparentemente abstrato. É apenas uma
troca: uma das partes pode ser silenciosa (o leitor), o receptor, o fruidor),
mas não passiva. Leitura é como aprendizagem: é um trabalho a dois.
Tu que me lês (se lês) talvez possas achar-me às vezes
hermética, prolixa, exagerada, incongruente, mas nunca alienada ou desinteressada
pela vida, pelos seres humanos, suas lutas e perplexidades. Eu, assim como
Cristo, não gosto de purgatórios, de gente morna, esquiva, insossa. Prefiro
pessoas que lembram a frase de Shakespeare: “Para ser verdadeiramente grande, é
preciso não vibrar sem grandes razões, mas é preciso também lutar por uma
palha, quando a honra está em causa”.
Não quero te dar conselhos: só os tolos e os ingênuos
pensam que eles têm alguma serventia. Mas, pensa bem: a vida é linda quando tu
és bem tu; quando és singular, dizes algo diferente, original, abres a alma,
tiras a máscara, fazes uma conquista. Há pessoas que são chavões ambulantes,
são parentes do óbvio, do esperado, jamais surpreendem. Quando o homem parar de
ter medo de confessar o que lhe vai na alma, tudo poderá ser diferente, as separações
diminuirão, as ligações serão mais abundantes e duradouras.
Um psicólogo famoso disse que todos temos o direito de
“enlouquecer um pouco, cada dia”. Não tomes essas palavras denotativamente. Ele
quis dizer que todos os dias temos direito de reservar algum tempo para nós
próprios, desvestindo as nossas máscaras dos papéis que representamos. Eu seria
mais específica. É no amor que devemos experimentar tais loucuras, tornarmo-nos
transparentes, abrir os corações, ofertá-los com paixão, sem restrições. A alma
não nasceu para jaulas. O amor também não. Chega de tanta estratégia,
fingimento, guerra fria. No amor, a batalha é sempre corpo-a-corpo, de coração
aberto. Tempera tudo isto com muita sinceridade, bastante fantasia, uma pitada
de lirismo, outra de sensualismo, um pouco de lágrimas, arrebatamento, fogo e
talvez tu descubras a receita da felicidade.
Não sei por que te digo todas estas coisas, a ti, meu
leitor silencioso, companheiro de domingo. Não era bem carta, mas um bilhete.
Não leves nada a sério do que vai acima e apenas continua lendo o que te
escrevo. Porém, não te esqueças da mensagem de hoje, que realmente eu queria te
enviar: eu não vivo sem ti. O escritor só existirá se ele tiver leitores que o
leiam. Os dois são uma dupla, uma parceria, uma conspiração. Isto é verdade. O
resto é literatura.
Ely,
ResponderExcluirMuita lucidez, sensatez e verdade em sua carta!
Concordo plenamente com você. Não sou escritor, mas também fico frustrado quando meus alunos silenciam... não interagem. Não se atinge o objetivo, não há comunhão de ideias, nada se completa.
Estamos na época da velocidade, do excesso de informações inúteis e ilusórias, que alienam, nos distanciam dos verdadeiros valores da vida, da união, do diálogo, do amor.
Quando releio o 3° parágrafo de sua carta, me dá um nó no peito, de perceber que, infelizmente, muitas vezes somos, sim, herméticos, frios e desinteressados pela vida e pelo semelhante.
Às vezes, nos iludimos com tantas bobagens, temos MEDO de nos expor, de não nos expressarmos bem na escrita, de tropeçarmos na língua portuguesa, de sermos julgados... Medos... O que ganhamos com eles? Nada. Só perdemos, e muito! Temos de ser audazes, otimistas, com esperança e amor no coração. Devemos isto a nós e ao mundo.
Será maravilhoso quando o ser humano conseguir atingir o que você escreveu no 4° parágrafo: "Quando o homem parar de ter medo de confessar o que lhe vai na alma, tudo poderá ser diferente, as separações diminuirão, as ligações serão mais abundantes e duradouras". Utopia? Não! É possível sairmos do monólogo, irmos para o diálogo, sairmos do casulo de proteção (nosso escudo), e nos integramos ao outro, ao mundo.
Ely, como seu leitor, peço que nunca desista de nós. Aprendemos muito com você! Suas sementes são para hoje, amanhã, para a eternidade!
Márcio
Lembrei-me deste poema, pertinente ao assunto, que fala sobre o nosso destino:
ResponderExcluir"Amar"
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Carlos Drummond de Andrade)
Querido Márcio,
ResponderExcluirSeu comentário é excelente, uma pérola literária. Como vê, você também é escritor. Aquele que sabe dialogar com as palavras, aquele que lê, interpreta, sente, é um leitor/autor. Como é belo enviar mensagens que são recebidas por uma sensibiliade como a sua. Penso mesmo que escrever só tem sentido para o autor, quando ele sabe que será recebido pelo leitor, seu coadjuvante, seu parceiro na troca de ideias sobre a vida.
O nosso Mago de Itabira é genial, principalmente com belas metáforas.
Beijos.
Ely
Márcio,
ResponderExcluirNo meu comentário anterior, eu quis dar realce ao dístico final, verdadeira chave de ouro.
Beijos.
Ely
Querida Ely, obrigado. E continuemos semeando, inclusive amor! Beijos, Márcio.
ResponderExcluirQuerido Márcio,
ResponderExcluirVocê tem razão. O ser humnano está cada vez mais amendrontado de mostrar suas emoções. Ele se fecha, substitui seus sonhos pessoais por cobranças
da sociedade, que prioriza mais o ter, em detrimento do ser. Assisti ao programa A Grande Entrevista, dia 10 deste, com o Cassoni como âncora. Os convidados foram a Denise Dias, terapeuta infantil e escritora, também o Regis Vianna, psiquiatra brilhante. Gostei tanto do programa, no Canal 20, que escrevi um texto sobre aquela hora inteligente, cheia de achados notáveis. Meu comentário sairá dia 29 deste, no Caderno C. Depois que você o ler, comunique-se comigo.
Beijos.
Ely
Meu querido,
ResponderExcluirPor um lapso, não mencionei o entrevistado maior, de A Grande Entrevista: Guilherme Davoli, psicólogo notável, escritor. Ele tem posicionamentos excelentes, muito coerentes. A Grande Entrevista é um programa que enobrece a televisão, coisa rara. Os telespectadores participam, mandam mensagens, torpedos. telefonam. O programa é toda terça-feira, às 22.30 horas.
Beijos.
Ely
“O disparo não foi pelo dedo indicador”.
ResponderExcluirEly, este meu nano conto, com pouquíssimos caracteres, explicita a puxada de orelha feita aos seus leitores.... Às vezes comentaristas, às vezes não.
Há dois tipos de ausência. Num o ausente não retorna, no outro o ausente não parte. Eu sou a segunda opção com um aditivo: Às vezes comento.
Ely, continue na sua vigilância. Sacode-nos, provoca-nos.
Seu desabafo literário procede. Algumas postagens riquíssimas suas não recebem nenhum comentário. Pobre de nós que não nos alimentamos delas!
Abraços de Aparecida
Minha querida,
ResponderExcluirSeu mini.nano.conto é muito bonito e sugestivo. Por que não escreve outros? Estão na última moda literária. Em tempo: Há um RECADO para você, publicado hoje, no Caderno C. Amanhã o texto estará aqui no Blog. Gostaria de ler sua opinião.
Beijos.
Ely
Lindo, lindo! Passei aqui pra te deixar um beijo, hoje, dia do escritor. Suas preciosas linhas tecem, em matizes variadas, um pouco da nossa alma. Mil beijos.
ResponderExcluirNívea Braga
Ei, Ely! Tenho um projeto literário no facebook que se chama JACINTO JURUPIRA E GUAPORÉ. São 3 autores, 100 dias, um texto novo de cada um a cada dia. No dia do escritor, essa foi a minha contribuição. Compartilho-a contigo. Beijos.
ResponderExcluirNívea Braga
Quando via o mundo desajustado, esquisito, esquálido, ela escrevia. Escrevia até cansar, botava em palavras tudo aquilo que sentia. Não guardava nada, esvaziava-se, enchendo-se de bem traçadas linhas. Quando via algo belo também escrevia, dessa vez para registrar o "irregistrável". Aprendeu com as palavras que, nessa vida, antes de apontar o dedo, é bem melhor apontar o lápis. E continuar escrevendo.
Jurupira (aos amigos Jacinto e Guaporé, no Dia do Escritor)
Ah, doce Nívea!
ExcluirÉ um prazer enorme quando você visita meu Blog. Ainda mais desta vez, que deixou um texto lindo. Jugurta e eu gostamos demais dele, sintético, criativo, cheio de originalidade. Poderia presentear-nos mais vezes, com estas pequenas obras-primas.
Beijos.
Ely
Ely,
ExcluirPausa no meu oficio de manipular formulas para as dores do corpo, deparo-me com este texto,balsamo para as dores da alma. Não se preocupe: não te abandonaremos jamais...
Beijos,
Jacy
Adoro suas palavras, obrigada! Você está no facebook? Se estiveres, poderá acompanhar os passos de Jurupira! Beijos!
ExcluirNívea
Querida Jacy,
ResponderExcluirEntão você é farmacêutica? Vontade de saber mais, que idade tem, quando se casou, se é feliz, quantos filhos tem, só a filha mencionada? Gostaria de saber sobre todos aqueles "adolescentes" dos Anos Dourados. Você não quer brincar de minibriografias? Tempos Antigos... Houve uma época em que eu amava escrever cartas, de 10,15,20 páginas. Ainda não me acostumei à síntese dos e-mails. Eles são tão frios...
Beijos.
Ely
Ely,
ExcluirCorresponder-me com voce, quanta honra, mas não neste espaço: ele é dedicado aos seus amados leitores.Falaremos dos livros,que são o alimento da alma. Meu e-mail é jacyantunes@terra.com.br.
Minha querida,
ResponderExcluirObrigada pelo e-mail. Vou viajar esses dias e quando voltar, lá pelo dia 15, eu lhe escreverei e farei uma proposta, aliás, que já fiz... Se gostar e/ou aceitar, poderemos nos corresponder.
Beijos.
Ely