segunda-feira, 2 de julho de 2012


MINICONTOS

I

                Tinha quatorze anos, a pele de porcelana branca cheirava a cravo  e os grandes olhos negros e pestanudos eram coroados por incríveis sobrancelhas escuras, grossas. Morava nos Peixotos, bairro pobre de Cássia. Nunca saíra de casa. A vida era trabalho, sofrimento e muito sonho. A irmã mais velha e o noivo resolveram levá-la à Igreja, naquela noite. O vestido florido, simples, alegre, modelava as formas arredondadas, as nádegas firmes e mostrava as pernas torneadas. Foi  na Praça que o viu, elegante, de terno branco e chapéu coco. Ficaram se olhando, rodeados de flores, o perfume forte impregnando o ar, quase os deixando tontos. No dia seguinte, ela estava na cozinha, quando o pai chamou: “O moço aqui quer casar com você. Você quer?”. Ela sentiu como se mergulhasse em um abismo de rosas. Baixou os olhos, sorriu e disse que sim.
II

        Ele: magro, alto, olhos acinzentados e bastos cabelos ondulados, emoldurando o rosto corado, a pele fina. Ela, sensualidade contida nas formas roliças, os lábios grossos, seios fartos, ancas generosas, a cintura muito fina. Ao lado dele, a prima miúda, exibindo-o como um troféu: o jovem espanhol que viera para casar-se com ela. Mas foi diante da mineira alegre, alta, de corpo exuberante e cabelos negros, que os olhos dele brilharam. Ficaram um diante do outro, os dois de terras tão diferentes, os corpos atraídos como por um imã. Ele sorriu e lhe entregou uma rosa vermelha: “Uma flor para a moça mais bonita da cidade...”. Ódio no olhar da prima preterida, abandonada, mas nada poderia separar aqueles dois mundos que se cruzaram. Pouco tempo depois estavam casados.
III

            Ele era judeu, rico, o pai, dono da metade de Belo Horizonte. Ela, paulistana, estudante pobre – viera cursar a Universidade na Capital Mineira. Era abril e o céu das Alterosas parecia mais translúcido. Brisa fria brincando nos cabelos das crianças, na Praça da Liberdade. Ela, solta, desprevenida, abandonava-se à leitura de um romance moderno. Levantou os olhos e viu o rapaz moreno, olhando-a como quem descobre um tesouro. Ela enrubesceu como as rosas do canteiro ao lado. Conversaram com o encantamento de pessoas assinaladas, quando o encontro é uma profecia. Uma semana depois, a família dele, com mil olhos, já sabia do recente amor. O pai foi categórico: moça não judia e pobre, dois problemas insolúveis. Ofereceu ao filho toda sua fortuna, se ele abandonasse a jovem de São Paulo. Ele aceitou.

IV
           
            Ele tinha obsessão por cabelos ruivos: atração pelo fogo que o queimava no íntimo? Alto, moreno, um garanhão inquieto. O helicóptero voava sobre a igreja, quando ele viu a cena comum: um noivo mirrado, de óculos, esperava pela eleita. Eis que ela chega, em um mar de brancura. De longe, ele a percebeu e encontrou seu destino. As grandes hélices horizontais foram baixando, esparramando os convidados assustadiços. De perto, a noiva olhou intrigada para aquele magnífico espécimen que lhe sorria e lhe estendia as mãos. Ela não pensou duas vezes e deixou se levar por dois braços que a prenderam como garras de aço. Quando ela entrou no helicóptero, o véu caiu e seus cabelos vermelhos esparramaram-se, como um mar colorido.

V

            A vida não é matemática, é mágica. Como explicar a atração? Ela, com trinta e cinco anos, é fêmea madura, fruta sumarenta para ser colhida. Ele, com vinte, ardor de planta nova, desejos contidos em vulcão. Quando dançaram, saíram faíscas de seus corpos e as mãos não conseguiam se separar. Olhos se comendo, o macio dos lábios se desejando, magnetismo. Poucas horas depois, os corpos se entregaram com a fome de milênios. Ela, cabelos louros espalhados sobre o travesseiro macio, dorme. O quarto na penumbra, o cheiro de flores entrando pela janela. Ele, nu, de pé, belo como um deus grego, contempla-a no seu sono de mulher realizada. O luar unge os dois, iluminando com reflexos prateados os amantes felizes.

11 comentários:

  1. V

    A atração é pura química.
    É quando um desvio de olhar entorpece, seda, tranquiliza e repõe as energias adormecidas.
    A atração é pura eletricidade.
    É um arrepio intrigante que estimula dois polos num só eixo.
    A atração não é cronológica, não é astrológica. É um axioma em comunhão!

    Bom dia Ely!!

    Aparecida

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    1. Minha querida,
      Repito: você escreve tão bem que acabará publicando um livro. Gosta do gênero? Então releia nosso Machado de Assis, ou Lygia Fagundes Telles, excelentes contistas. Eu mesma pretendo lançar ainda este ano, meus Os Girassóis de Girona, não querendo fazer porpaganda nem comparações.
      Beijos,
      Ely

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    2. Cidíssima,
      Eu me esqueci de um pormenor no comentário anterior: Os Girassóis de Girona vão sair ainda em 2012, na segunda edição, acrescida com cinco contos inéditos.
      Beijos.
      Ely

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  2. Ely, gosto muito de minicontos, são tão criativos! Os seus são excelentes, deliciosos! O que segue também é ótimo. Beijos, Márcio.

    "A origem do mundo"

    Da simplicidade da caixa de fósforos saiu a luz e, dela, a ordem de todas as coisas. Os vapores da criação tinham cheiro de cigarro barato. Por trás deles apareciam rostos e espuma de cerveja. Falavam de economia, mulher do próximo, qualquer besteira. Uma voz rouca proferiu “faça-se a batata frita”, e a mensagem foi ao inferno d’onde viria a providência. O Gênesis Bar estava repleto desses deuses, todos inspirados, cheios de idéias criadoras. Alheios a tudo, num esforço realmente divino, o iluminado e o miserável contribuíram igualmente para formar o dito Homem. Ele se perdeu no corredor do banheiro e ninguém deu falta.

    (Leonardo Brasiliense)

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    1. Querido Márcio,
      Eu também gosto muito do gênero. A síntese é algo pretensamente fácil. Há grandes contistas, como o nosso Machado, que nos deixou verdadeiras obras-primas, cheias de sutilezas. Às vezes ele preferia o conto maior, até dividido em capítulos. O miniconto é algo um pouco mais moderno. E há alguns textos famosos, como Tentação, de Clarice Lispector, que é um verdadeiro conto. Aliás, o problema de conceituar os gêneros é algo complexo . Você sabe que já se chamou o romance Iracema, de José de Alencar, de poema em prosa. Basta se ficar atento ao ritmo do início do romance.
      Beijos.
      Ely

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  3. Querida Ely, passo um tempo longe do seu cantinho e, quando volto, me deparo com essas delicadas pérolas (verdadeiras) em formato de miniconto. Miniconto, maxiprazer. Beijos e todo o meu carinho. Um dia quero te (re)conhecer.


    Nívea Braga

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  4. Minha querida!
    Que prazer sua "volta"! O nosso leitor é alguém meio etéreo, como se fora ficção. E alguns nos encantam, como você. Domingo próximo vou lhe mandar um Recado. Aliás, é um recado aos leitores. No dia 15 sairá no jornal e no 16 estará aqui no Blog. Espero que goste.
    Beijos.
    Ely

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  5. Ely,
    Há textos que encantam pela rapidez e síntese. Veja por exmplo esta pequena adaptação:

    "Hermes pede ajuda a Osíris para contemplar a fonte de onde emanam os seres e os mistérios. Osíris o atende. Hermes sente-se inundado por uma luz deliciosa. De repente descem sobre ele trevas terríveis. Hermes cai gemendo. Uma voz explode – é o gemido da Luz! Súbito, um fogo arrebenta, vindo das profundezas, e ganha alturas etéreas. Hermes se vê projetado no vazio. O Caos enche o abismo, coros astrais se expandem e aquela voz enche o infinito:
    - Compreendes o que vês, Hermes?
    - Não, balbucia Hermes, ainda sob o impacto e efeito de ter tido seu desejo atendido.
    - A Luz que vês é a Inteligência Divina que encerra todos os seres e mistérios. As trevas são a Terra onde vivem os homens. E o Fogo é o Verbo Divino.
    - Que delícias em mim brotam! Já não vejo com o corpo; vejo com o espírito. Como isso é possível?!
    - Pobre filho do pó! Não percebes então que o Verbo já estava em ti desde a mais remota origem! É o Verbo que entende, vê e palpita em ti. Este Verbo é o Fogo Sagrado que te habita e que se faz Palavra Criadora. (Adaptado de Hermes, Ísis e Osíris, in Os Titãs da Religião)"

    Não é uma beleza? Quanta riqueza em tão pouco texto! Assim são seus minicontos. Densos. Com finais abruptos, golpes. Cortam como facas, rasgam como raios. Pérolas!
    Abraços,
    Waldomiro

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  6. Querido Waldô,
    Fico feliz quando um leitor especial como você, visita meu Blog. O miniconto que você me enviou é realmente delicioso. Gosto muito de todo texto inspirado na Mitologia. No domingo próximo sairá no Caderno C um Recado ao Leitor. Para você, para todos. Na segunda-feira, dia 16, estará no Blog. Gostaria que você fizesse um comentário sobre o texto. Sua sensibilidade e perspicácia são notáveis.
    Abraços.
    Ely

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  7. Como você mesma lembrou-me há pouco tempo com o poema de João Augusto, não se pode presumir ou estabelecer o que cada palavra ou verso comporta consigo quando (e como) vem ao mundo. O arbusto sempre pode dar mais caju que a árvore. Da mesma forma, um mini-conto como qualquer um destes mostra-se plenamente capaz de comover-nos como um capitulo de três páginas. À imaginação, quanto menos melhor.
    O dia em que alguém puder afirmar com convicção que tal tamanho, técnica ou assunto são os ideais para uma melhor produção literária, melhor será rasgarem-se as folhas pra todo o sempre. Enquanto isso, continuamos lendo, ora João Augusto ora Luís de Camões.

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  8. Querida Laura,
    Seu comentário é notável. VocÊ parece uma personagem de Machado de Assis, cheia de entrelinhas e sutilezas... Não diz, dizendo. Não afirma clara e diretamente, mas com alusões, procedimentos literários. Realmente, o essencial na boa literatura não é o gênero, tamanho do texto, estilo. Depende muito do conteúdo, mais do que da forma. E você, bem machadeana, afirma isto. E no mundo literário continuaremos lendo poetas diferentes, com a síntese de João Augusto, ou com o estilo pomposo de Camões.
    Volte sempre. Sua visita ao Blog é um prazer.
    Beijos.
    Ely

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