segunda-feira, 4 de novembro de 2013

CARTA ABERTA AOS MORTOS

CARTA ABERTA AOS MORTOS

            Dia triste o dois de novembro. Nada afugenta a melancolia. Dizem que há povos que, nessa data, fazem festa, tocam instrumentos musicais, sentam-se sobre os túmulos, a família toda e ri, conversa alegremente. Tem certa lógica. Os mortos estão mais felizes que nós, os vivos. É bem verdade que as crenças diferem. Os espiritualistas acreditam em uma vida post  mortem. Alguns até estabelecem lugares específicos, como prêmio, castigo ou o limbo, onde se espera o destino eterno. Outros dizem que há possibilidade de muitas voltas, até se resgatar os erros aqui cometidos. Os materialistas são radicais: nada há após a morte, só o vazio, o não-ser.
            Sabem, meus queridos, não tenho posição definida, vacilo às vezes diante de tanta teoria, possibilidades várias, hipóteses. Na verdade, ninguém voltou para ensinar. Mas quero acreditar que existe algo. Seria muito triste, de repente desaparecer, esfumar como uma brisa etérea.
            Eu não gostava de passar pelo grande Cemitério da Saudade. Confesso que virava a face para o outro lado, cismada, temerosa... Isto há muito tempo. Depois veio a vida, perdi tantas pessoas queridas que se foram para seu descanso eterno que, hoje, quando vou lá, sento-me no túmulo da família, envolvo-me no silêncio, sinto-me ungida de paz. Após fazer as orações, relembrar doces episódios, ponho-me a passear pelas alamedas, visitando amigos, alunos, conhecidos, notando que nem a morte consegue igualar os seres humanos. Há túmulos pomposos, outros tímidos na sua simplicidade desnuda. As esculturas escuras guardam com seriedade seus mortos. Pássaros voam, enfeitando o ar, as flores tentam dar lições de efemeridade.
            Invejo os que têm uma fé de carvoeiro, seguros, certos de seus posicionamentos, suas verdades. Eu vacilo, mudo, analiso, tento entender, mas as dúvidas voltam sempre como moscas renitentes. Confesso que leio muito a Bíblia, gosto do Livro Sagrado como literatura, tenho meus Santos de predileção, rezo. Para quem? Para um possível Deus, bondade suprema, que tudo vê, tudo entende e tudo perdoa. Faz bem para a alma acreditar.
            Em seu livro Boitempo, de 1968, Drummond parece obcecado com a morte e o que viria depois. Usa, com amargura, o neologismo “         morituros”, para os seres humanos, aqueles que vão morrer. Muitos poetas famosos abordaram o tema maior, às vezes, liricamente. O que mais atrai, no assunto, é sua dubiedade, o mistério, a dúvida. Sob a mesma temática, é bom lembrar o belo soneto de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, antes da morte, falando com o Cristo, diante do Crucifixo, colocando, inteligentemente, o Filho de Deus, em uma saia justa.
            Minha relação com os meus mortos é doce e acalentadora. Sinto-os sempre perto, sonho, falo com eles, conto-lhes alegrias e tristezas. Sua presença é tão forte, que amaina a amargura da partida. E rezo. Rezo muito e, por que não dizer, peço-lhes, às vezes, que intercedam diante dos Santos ou do Chefe Maior. Afinal, eles já cumpriram sua missão. E por que não podem ser Anjos-da-Guarda?  

            O Dois de Novembro é dia de recolhimento e muita oração. Existe algo melhor para a vida conturbada dos vivos? Hosana aos que já se foram e conhecem hoje todas as respostas.

4 comentários:

  1. Ely querida amiga.
    Como queria apertá-la em meus braços, num abraço daqueles que se encontra alma. Eu a apertei agora. Nossa relação, julgo, terna e doce, como a que você conseguiu me passar instantes antes.
    Fora a leitura.
    Pensei em não deixar comentário. Apenas pensei. Mas também quero compartilhar que minha relação com aqueles que partiram me são suaves. Ternas. Enchem meus olhos de lágrimas. O peito ofegante. Mas tenho meus amados perto, embora distantes fisicamente. É a lembrança que os torna mais real, ao ponto de sentir-lhes a respiração, o afago de mãos, de corpos que se abraçam.
    Há dias, uma frase, um encontro. Fora Graciliano Ramos que me tocava fundo. Pude compartilhar aquele momento. Dedicar algumas palavras àquele que me fora meu baluarte - meu pai. Estive em sua simples campa nesse dia. Fora-me difícil sabê-lo ali, separado de minha mãe, de meu irmão. Mas sei que estão unidos por laços eternos. Bem tristeza a parte. Lembranças. Retalhos eis que encaminho a ti. Leitora saberá adentrar as entrelinhas do texto. http://nelsonmartinsdealmeida.blogspot.com.br/
    Obrigada sempre por este momento. Em breve o abraço acontecerá.

    http://nelsonmartinsdealmeida.blogspot.com.br/

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    1. Querida Inajá, então, a inteligência, a sensibilidade, o gosto pela literatura, tudo é genético, não?Seu Blog está riquíssimo.Imagino a falta, a saudade que sente de seu pai, criatura tão iluminada. O meu, espanhol da Galícia, tinha também qualidades extraordinárias: amor exacerbado pelo trabalho, integridade, preocupação pelo próximo, bom marido, excelente pai. Seu espírito de justiça, de igualdade social , fazia dele o mais cristão dos cristãos, embora ele dissesse que era ateu. A história de amor entre ele e minha mãe é muito lírica. Por anos e anos, eu os vi, unidos, apaixonados, fiéis um ao outro.E ele era tão bonito quando jovem, com seus cabelos escuros e os olhos meio esverdeados, que eu, criança, sem saber nada sobre o Complexo de Eletra, dizia que ele era meu namorado...
      Beijos.

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  2. Minha querida,

    Delicado texto. Obrigado por dividir conosco seus sentimentos. No dia de finados, passeando pelas alamedas do cemitério da Consolação onde fomos visitar nossos mortos, meu marido e eu encontramos o jazigo do Monteiro Lobato.
    Beijos.

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    1. Querida Jacy, feliz porque você voltou a visitar meu Blog. A sua inteligência e sensibilidade, aliadas a uma perspicácia arguta e rara sempre descobrem algo novo. Amo a obra de Lobato, a para crianças e a para adultos. Na Feira do Livro de 2013 participei de um Salão de Ideias sobre ML. Na ocasião enfatizei a riqueza da linguagem de Lobato, uma das mais ricas da Literatura Brasileira, questionando também por que não colocavam Urupês nas discutíveis listas dos Vestibulares. A riqueza de linguagem . seria um antídoto eficaz contra a pobreza de vocabulário dos Vestibulandos. E mais, realcei também que os textos de Urupês são atraentes e atuas.
      Volte sempre.
      Beijos

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