À PROCURA DA INFÂNCIA PERDIDA
Tenho criticado, intimamente, uma
síndrome bizarra de autores maduros, que estão sempre a escrever sobre sua
adolescência e a mocidade. Como o castigo vem a cavalo, um dia desses tive uma
crise de melancolia, relembrando cenas, episódios de tempos longínquos.
Resolvi brincar. Salvei o que achei
interessante na minha Caixa de Entrada, deletei fatos, joguei muita coisa para
a lixeira. Ora, a vida sempre nos ensina homeopaticamente. Assim, tentei
estabelecer uma cronologia pelos sentimentos experimentados, o que foi mais
marcante.
Dos cinco aos sete anos, a existência
era uma sinfonia de sensações tácteis, visuais e gustativas; olfativas não,
porque sou deficiente do nariz. Uma sinestesia contínua. Nessa época, o palco
central, na pequena cidade da Pratinha, no sul de Minas, era o meu pomar. Meu
pai e um tio não negavam suas origens: espanhóis do pequeno pueblo Pardesoa, a
cem quilômetros de Santiago de Compostela.
Os galegos trazem plasmado no sangue o
amor pela agricultura. A Galícia é um jardim, uma joia verde, com seus
milharais sem fim, as árvores frutíferas, incríveis macieiras, pereiras e
cerejeiras, que primeiro se engrinaldam de flores e após, ficam pejadas de
frutos. Na primavera, os campos se transformam em um inacreditável tapete de
flores doiradas.
Algum tempo depois que habitávamos
aquela casa grande e sombria, o pomar já estava formado, com uma variedade de
frutas nunca vistas na cidadezinha: maçãs rubras, várias espécies de laranjas,
peras, ameixas do Japão e as outras, bem brasileiras, amarelas, caldentas, com
linda penugem. Pessegueiros, os pés de carambola, baixos e arredondados,
oferecendo seus frutos gomosos e meio ácidos.
Sempre fui uma menina meio solitária,
sem irmãos, tinha poucos amigos e preferia passar horas infindas deitada na
terra morna do pomar, olhando com encantamento os frutos, oferendas coloridas e
deliciosas. Meu encantamento pelas árvores, desde aquela época, dura até hoje.
Elas têm personalidade própria, orgulhosas, altaneiras, outras pequenas, mais
humildes. Quase entro em transe diante de ipês floridos, paineiras níveas ou
róseas, exuberantes, ipês do jardim, palmeiras e coqueiros. A Natureza e o
verde me fascinam.
Às vezes penso que temos dentro de nós
várias personagens, com tempo, espaço e características diferentes. Na Peça da
Vida (escrita e dirigida por quem?) representamos, como podemos, nossos papéis.
Não há ponto, ensaios, orientação definida. É tudo no happening, no
acontecendo, dia a dia. Até que nos tornamos adultos, com mais capacidade de
reflexão e, às vezes, não cometemos mais traquinagens. Somos personagens que se
sucedem e vistas da plateia, agora, parecem artistas bizarros, meios
desarvorados.
O que tem a ver a professora, a mulher
adulta, a escritora, a personagem madura de hoje, por exemplo, com a menina de
oito anos, vivendo, pela primeira vez, no campo, fazendo travessuras, apostando
corrida sobre a eguinha em pelo, com os cabelos soltos, sob o céu azul da
Fazenda do Morro do Ferro? Ou, um ano depois, sentindo-se prisioneira no
Colégio Sacre-Coeur, de Belo Horizonte, amordaçada na sua linguagem coloquial, repleta de mineirices, quando na
famosa Casa de Ensino só se podia falar em francês?
Vieram outras épocas, mais mudanças de
cidade e de Estado, novos pesadelos. Mas tudo me parece, hoje, um filme mal
dirigido, com roteiro desconhecido e esta realidade só ressurge nos pesadelos,
nos sonhos. Gostaria mesmo é de fazer uma viagem pelo Inconsciente, visitar o
Id, pôr ordem nesses porões.
Cara amiga e escritora.
ResponderExcluirBom estar aqui. Esta casa sempre me é familiar. Convidativa à reflexões. Lugar onde posso compartilhar minhas experiências. Minhas lembranças. Voltar aos meus idos de criança. Mãos dadas a quem, nas entrelinhas, até parece me escrever. Em tuas linhas me recrio. Lembranças daquela balança, segura pelo galho forte da ameixeira. Aquele canto a soar ao vento, naquela voz de menina que despertava para a vida, sem saber o que haveria de vir. Hoje quem sabe o enredo pudesse ser alterado. Pudesse ser reescrito. Quantas cenas não seriam encenadas. Amiga. Não podemos reeditar nosso texto. Ele já foi encenado. Podemos sim recontá-lo a nosso modo. Belos tempos passado. Presentes ao nosso presente. As linhas tecem encontros. Saudade. Minha mãe ausente há oito longos anos. Tão presente em minhas memórias. Querida amiga. Você me encanta quando me leva a adentrar o seu universo. Obrigada
Querida Inajá,
ResponderExcluirQue prazer, minha querida, tê-la de novo visitando meu Blog. Sua inteligência e sua sensibilidade sempre me comoveram. Pessoas iluminadas como você são um presente de Deus. A infância é realmente um lugar mágico, onde moram nossas fantasias. É belo pensar nessa pretensa realidade, porque só guardamos aquilo que queremos. Fica sendo uma Ilha da Fantasia para onde se pode ir quando quiser. Se não acredita, pergunte ao Freud...
Volte sempre. É puro privilégio ter uma leitora arguta e sensível como você.
Um abraço.
Ely
Querida e tão cara amiga, professora e escritora.
ResponderExcluirTenho visitado teu espaço com frequência.
Os textos belos os tenho em conta.
Comentários nem sempre seguem com a mesma proporção das leituras.
Faltam-me palavras.
Mas guarde contigo que os aguardo sempre com muito gosto e apreço.
Obrigada e até mais.
Ely,
ResponderExcluirDepois dos seus livros estou encantada com as memórias de Pedro Nava,nosso Marcel Proust tupiniquim. Não posso comparar porque confesso:não li.Tambem não li Joyce, que voce citava nas aulas. Minha querida voce é contista, poetisa e cronista.Deixe as memórias para os septuagenários.
Jacy
Doce Jacy,
ResponderExcluirVocê tem razão... Raramente visito plagas longínquas, a infância e a adolescência. Mas, como eu disse, caí em tentação. Sou humana, sabe? Quanto ao seu conselho bizarro, para eu deixar tal missão aos septuagenários, quantos anos acha que tenho?
O leitor é um mistério. Recebi recados que este foi o mais belo texto que escrevi. É que o leitor lê o que ele gostaria de escrever. Sabia? Tenho uma amiga querida que diz não gostar do que escrevo, porque jamais falo de mim. Ledo engano! O escritor está sempre a falar dele próprio, mesmo quando o tema é o outro.
Beijos.
Ely
Fazer a travessia mental nos lugares que deixaram saudades, é reconhecer num coração desperto, o testemunho do que nunca ficará invisível.
ResponderExcluirImpossível não viajarmos, às vezes, pelas veredas da nossa existência.
Não podemos renunciar nossos princípios desde o início como Verbo. O alicerce, a moradia, a supremacia dos encontros admiráveis, até uma nostalgia, não como sequela mas como "Prendre un enfant par la main ", "Segurar uma criança pela mão".
Abraços de Aparecida
Minha querida,
ExcluirComentário inteligente e sensível. Amei, principalmente pela citação final, muito pertinente.
Beijos.
Ely
Hoje tive o prazer de ler o seu artigo Á Procura Da Infância Perdida, um dos melhores textos que você escreveu ultimamente se me permite dizer. São imagens lindas, parece que você estava pintando uma tela com palavras.
ResponderExcluirÉ dona Ely, a nossa cabecinha nos trai, às vezes algumas lembranças nos pegam de surpresa, onde ficaram guardadas, o que as fez despertar, não sabemos. O que é mais espantoso é que a sensação é a mesma, quando acordamos estamos em outro mundo, às vezes nem tanto poético mais...
Todos nós temos lembranças, Ely, agradáveis ou não; a gente é que escolhe o que vai para lixeira, não é assim?
Procura mais aí no seu sótão, tenho certeza que encontrará mais um montão de coisas que darão artigos lindos.
Você abriu a caixa, agora é só deixar fluir para o papel, ou o computador, como queira...
Beijo enorme!
Minha querida, minha querida!
ExcluirSe você não acrdita em mim, leia Freud. A infância não é sempre bela. Para ele, é a pior época, cheia de fragilidades. Mas você tem razão sobre as traições de nossa memória. Ela guarda só o que quer. Deleta o resto. Sábia... Quanto a você ter gostado do texto, também é pessoal. Há pessoas que amam essas digressões ao passado. Outras não.
Beijos.
Ely