A
IGREJA DO DIABO
É comum pensar que o mundo nunca foi
tão violento. O homem moderno transformou-se no grande vilão. Na verdade, a
violência nasceu com o ser humano, está na sua essência. O fratricídio de Caim
é o exemplo expressivo, nos imemoriais tempos bíblicos. Os latinos já afirmavam
sabiamente que o homem é o lobo do homem, verdade ratificada por Hobbes, no
século XVIII.
Em uma análise um pouco mais
criteriosa, vê-se que a violência banalizou-se, assim como a moral, os
costumes, os valores em
geral. Apenas algo inexorável não mudou: a complexidade
humana. Grandes obras literárias, mitos, lendas, tudo atesta isso. E essa causa
detona efeitos irreversíveis: cada vez mais a comunicação torna-se difícil, os
relacionamentos mais duradouros tendem a desaparecer. É um paradoxo. O homem é
um animal gregário, não nasceu para viver só. Ao mesmo tempo, com sua
complexidade, entender o outro, viver com ele é um pesadelo, um impasse. Os
poucos que o conseguem são privilegiados, assinalados, ou mais sábios na arte
de viver?
A temática não é moderna. Em
famoso conto com o título em epígrafe, Machado de Assis consegue, de maneira
magistral, criar uma fábula (ou apólogo?) demonstrar a condição humana. O
Diabo, belo e varonil, pede a Deus para criar uma Igreja que arrebanhará
milhões de adeptos. Lá, todos os vícios seriam virtudes e vice-versa. O paraíso
dos pecadores. Liberdade total. Libertinagem, ausência de censura. E o Diabo,
maléfico, sorrateiro, sagaz e inteligente, vai explicando sua nova teologia (ou
demonologia?). Sua lógica é perfeita. Quase chega a driblar o Senhor, com o
exemplo do velho misógino. Interessante notar que os pronomes de tratamento são
expressivos. O Diabo dirige-se ao Senhor, tratando-O por “Vós”, com respeito e
Deus fala ao filho rebelde com intimidade, usando o “Tu”.
Talvez enfastiado de tanta
lógica e sofismas, ou querendo dar uma lição a Lúcifer, Deus dá o alvará à
Igreja do Diabo. Dá-se, então, o
esperado. Multidões se deliciam com a nova seita tão atraente. Os conceitos são
interessantes. A fraude, por exemplo. Ela é o braço esquerdo do homem; acontece
que muitos nascem canhotos, então não há culpa. “Se podes vender a tua casa, o
teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas legalmente tuas, por que não a tua
opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé?”. Tudo é apenas exercer um
direito. Não proibiu a calúnia gratuita; ela deve ser exercida mediante
retribuição, melhor ainda se for paga. Solidariedade, falta grave, deve-se dar
ao próximo a indiferença.
O conto é uma obra-prima
atualíssima e universal, de conhecimento da alma humana. O homem, desde os
primórdios, tenta entender o Bem e o Mal, por que é tão árdua a luta, a opção
por um ou pelo outro? Pascal, no século XVII, derrubou a filosofia simplista do
Maniqueísmo, aceita na Idade Média. Machado de Assis, com ironia, resume toda a
questão tão complexa, com a alegoria das franjas. Os homens são paradoxais.
Aparentemente livres, suas almas têm franjas de seda e / ou de algodão, se
amantes do pecado, do erro. Impossível rotulá-los de bons ou maus. Nem eles
mesmos sabem optar. É a eterna contradição humana.
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