A HORA ÍNTIMA
Há textos que parecem ter vida própria.
Fazem parte do nosso Inconsciente e, de repente, nos vêm e nos possuem com uma
força da qual não conseguimos fugir. Eles surgem nos sonhos, nas vigílias, ou,
simplesmente aparecem como ondas repetidas, que voltam sempre, inexoravelmente.
Aconteceu com o poema A Hora Íntima, de
Vinícius de Moraes, que me fez uma visita da qual não consegui escapar.
O título é notável, porque ele se refere
ao seu velório. Inicia o texto com um dístico, uma interrogação muito criativa:
“QUEM PAGARÁ o enterro e as flores / Se eu me morrer de amores?”. Sabe-se que
poesia é inspiração e, principalmente, linguagem. Nosso Poeta conhece bem essa afirmação. Assim,
esmera-se nos dois versos. Começa com um sujeito indeterminado, que
universaliza o tema. Preocupa-se, poeticamente, com o responsável pelas
despesas de sua morte, mas une duas realidades diversas, uma trágica, grave _ o
enterro, e outra supérflua: as flores. Os dois termos vêm unidos pela conjunção
coordenativa aditiva, igualando-os.
Logo a seguir, em uma liberdade poética,
violentando a sintaxe, usa o verbo intransitivo “morrer”, como pronominal. Sua
causa mortis é lírica e ignorada pela medicina: Ele morre de amor. Assim são os
poetas. Só nos cabe lê-los, entendê-los
e amá-los.
Não se preocupe, caro leitor. Meu
sadismo não vai a tanto. Não vou continuar a análise gramatical, sintática e
semântica do poema. Falarei apenas do belo conteúdo.
Ainda com o sujeito indeterminado,
pergunta: “ Quem, dentre amigos, tão
amigo / Para estar no caixão comigo?”. Há maneira mais forte, do que perquirir
quem o ama tanto, a ponto de morrer com ele? A seguir, ele menciona uma galeria
hipotética muito interessante, dos possíveis presentes no seu velório.
Desfilam
o ingênuo, o generoso, o bêbado, o lírico, que “virá despetalar pétalas”, no
seu túmulo... O materialista, que acredita na reciclagem, joga na terra, um
grão de semente... O covarde ora, os loquazes dirão palavras tão belas, que
empalidecerão o mármore. Os filósofos, os que farão discursos oficiais, os
simples, os que lá estão por “motivo circunstancial”, os resignados.
Há, a seguir, toques de erotismo,
mulheres sofredoras pela perda do Poeta: “Quantas, debruçadas sobre o báratro /
Sentirão as dores do parto?”, a criatura pálida, que “ tocará o botão do seio”, a que sofre tanto, que despertará
receios, a que o ama perdidamente, que terá de ser arrancada, abraçada ao seu
esquife, a estranha figura / A um tronco de árvore encostada / Com um olhar
frio e um ar de dúvida”.
Surge ainda aquele que, com o “rosto
sulcado de vento / Lançará um punhado de sal”, na cova de cimento do Poeta... É
uma metáfora rica, como também quando ele menciona aqueles, de “maxilares
contraídos / o sangue a pulsar nas cicatrizes”... E, às vezes melancólico, às
vezes irônico, faz a pergunta final, repetindo o dístico, mas com uma mudança
gramatical expressiva: No começo usa o futuro hipotético, no final, a locução
verbal com o presente do indicativo, como auxiliar, o que torna o
questionamento mais forte: “ Quem vai
pagar”...
Vinícius de Moraes é um poeta
irregular, com alguns textos mais fracos e outros que são uma obra-prima. Sem
dúvida, A Hora Íntima tem um lugar de destaque entre os seus mais belos poemas.
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