DESMITIFICAÇÃO E / OU
A INOCÊNCIA PERDIDA
Sempre me foi doloroso quando algum iconoclasta destruiu
um mito que me encantou na infância ou na adolescência.
Mineira, eu amava a figura de Tiradentes, com as barbas e
os cabelos longos, a corda grossa no pescoço, o ar de homem bom, que lembrava
muito o Cristo. Ele era meu herói, o líder da Inconfidência Mineira, o homem
que lutou pela liberdade do Brasil, contra o jugo português. Vibrava com sua
valentia, quase a ponto de sair de peito aberto a gritar com entusiasmo:
“Libertas quae sera tamen”! Em uma aula
trágica de História, no Colegial, o professor destruiu meu herói. Morreu sim, foi
esquartejado, salgaram sua casa para que nada mais ali vingasse, mas ele era o
mais pobre, o menos importante do movimento dos Inconfidentes. Como matar um
Cláudio Manuel da Costa, ou o fidalgo imponente Tomás Antônio Gonzaga? Na
Faculdade foi pior. Teses de pós-graduação punham em dúvida, mesmo sua morte
trágica. Ele teria fugido para a África e escapado do castigo execrável.
Decepcionada, infeliz, detestei a nova realidade. Depois
foi durante uma visita às Cidades Históricas de Minas. A certa altura, o
professor de Literatura Brasileira, que fazia o tour conosco, disse: “Daquela
janela, Marília namorava o seu Dirceu, que residia logo acima...”. Todos os
versos, as liras do livro “Marília de Dirceu” vieram-me à cabeça, a doçura, a
pureza do grande amor dos dois personagens
famosos. E o professor completou: “Marília, cujo nome, na verdade, era
Maria Dorotéia, não amava Dirceu. Hoje ela seria chamada de “carreirista”, uma
jovem quase adolescente, muito ambiciosa, atraída pela fortuna, fidalguia e
pelo status de Gonzaga, o elegante português quarentão”. O professor tripudiou
sobre minha tristeza. O nosso Dirceu também não a amava tanto assim. Logo que o
movimento libertário foi descoberto pelos portugueses, o poeta escafedeu-se
para a África, casou-se com mulher rica e analfabeta...
A vida desbotou-se, ficou mais feia, Víboras da dúvida
picaram-me o coração, envenenando-o. Com certeza, Romeu e Julieta não morreram
jovens, pelo seu amor impossível, Abelardo não foi castrado, Heloísa nunca
entrou para o convento. D. Pedro arrancou mesmo leoninamente os corações dos
assassinos de sua adorada Inês de
Castro, a que depois de morta foi rainha? Dante amou a vida toda sua Beatriz,
vista de relance em uma janela? Não morreu Fedra de amor, pelo seu Hipólito?
Orfeu desceu aos infernos e resgatou Eurídice da morte?
Um mar de dúvidas. Tudo ficção. Lições falsas de beleza
para que se engula a realidade insulsa, insípida, tediosa. Uma lástima. Um
pesadelo.
De repente, a incerteza virou a maldita Hidra de Lerna,
com suas cabeças hiantes. E o Cristo? Quantas versões surgirão ainda sobre a
figura amada, tão carismática? Alicerçando-se nessa hipótese, escritores
modernos têm publicado best-sellers com versões esdrúxulas sobre o chamado
Messias.
Infeliz, com a alma cabisbaixa, argumentei com meus
botões: Não seremos nós mitos, heróis da ficção de Deus? E quando o Diabo nos
desmascarar, com sua sarcástica lucidez? O que sobrará da magnífica Criação?
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