RECADO
AO LEITOR
Estou cansada de repetir: Você, Leitor, é um mistério.
Nunca sei como agradá-lo. Se faço um texto inteligente, esmerado, cheio de
conhecimentos linguísticos, você reclama. Um dia desses, alguém chegou a me
falar, assim, nas fuças: Você pensa que está escrevendo para quem? Precisa usar
vocabulário tão complicado? Por que não escreve para todo mundo, de maneira
simples, compreensível? Quer que só meia dúzia leia seus artigos? E mais: Por
que não fala mais de coisas suas, de sua história de vida? Pensa que o mundo é
só Literatura?
Fiquei cabreira. Com raiva. Não sabe, por acaso, que é
praticamente impossível, em Literatura, falar sobre a vida verdadeira, sobre
fatos acontecidos? Isto é para jornalistas... Eles são ricos demais, complexos, para serem contidos
na cadeia da linguagem literária. Então, a gente inventa, faz ficção,
interpreta textos, brinca de escritor... Vou lhe confessar algo, pura verdade,
juro! Em uma das Feiras do Livro, há alguns anos, eu almoçava com a grande
Adélia Prado. Ela me contou, então, sua história. Nasceu em Divinópolis,
conheceu seu marido, quando ele e ela eram ainda crianças, apaixonaram,
noivaram, casaram, tiveram filhos e netos. Babei de inveja. Por que a vida de
Adélia era tão bem escrita, tão bem dirigida, como uma peça teatral sábia e
bela?
À noite, em meu apartamento, fiquei pensando na minha
história. É um texto mal redigido, o Diretor da Peça parece louco, sem a menor
ideia de lógica, incoerente, meio maluco.
É estranho. Nunca entendi por que meu roteiro de vida é feito por épocas
estanques. E cheio de armadilhas, alçapões. Infância: oito anos de paz, tranquilidade,
alegrias, apesar do pacto com todas as doenças infantis da época. Não havia
vacinas. Era ali no tapa. Sarampo, catapora, caxumba. As crianças de minha
época só se livraram, pela graça de Deus, da paralisia infantil, como era assim
chamada, hoje, a poliomielite.
De repente, não mais que de repente, a vida mudou. Tive
até um ano no campo, um dos mais lindos, com muita liberdade, voando sobre
minha eguinha em pelo, frequentando uma escolinha de roça, fazendo artes
inocentes. Aí veio o primeiro castigo. Mudamos para Belo Horizonte e meteram-me
em um Colégio francês, onde não se falava português e havia só meninas ricas.
Foi um suplício. Eu, caipira, mineira, com meu linguajar de roça... Um dia
fiquei de castigo, porque a freirinha besta disse que eu falara palavrão.
“Falei uma ova!” Piorou. Ela não entendeu e fui suspensa. Graças a Deus, o
inferno durou só uns dois anos e fomos para Paraíso, cidade linda, poética,
onde tinha muitos amigos. Estudei no Colégio Paula Frassinetti, apaixonei-me lírica
e platonicamente por um adolescente que parecia um príncipe. O amor terminou,
quando mudei para Ribeirão Preto e o pobrezinho, semianalfabeto me mandou uma
cartinha, em papel rosa, com um coração atravessado por espada, caindo
sanguinho. Abaixo, a declaração desastrosa: Ely sou apaixonado por você. Morro
por ti! Fiquei com raiva da falta de vírgula no vocativo e com a mistura de
pronomes. Rasguei a carta e nunca mais
pensei no príncipe. Eu já era metida à besta, lia muito e escrevia bem, ou
pensava que escrevia...
E vai a vida. Em Ribeirão, fui para o então mais famoso
Colégio da época, o Santa Úrsula,
ainda na Rua São José. Mais tarde, quando na época, o chique era ter um
namorado de boina amarela, calouro da USP, tive o primeiro amor verdadeiro, de
boina amarela... Mas chega de
confissões. Você acredita, Leitor, eu queria mesmo era lhe falar sobre uma
curiosidade linguística: Você sabia que dó é um termo masculino e comichão,
feminino? Pois é... Mistérios gramaticais.
(*) Ely
Vieitez Lisboa é escritora, tentando escrever algo leve, em tempo de guerra.
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