A
OUSADIA
A ousadia é maior que a coragem; é uma
virtude instantânea, que pode surgir de uma necessidade, de um impasse, de um
repto. A ousadia faz parte da essência, do ser, é dom genético. O audaz nasce
assim, rebelde, impetuoso, com medidas outras que os simples mortais. Os
ousados estão um pouco acima dos homens e um degrau abaixo dos deuses. No
sangue dos audaciosos corre uma seiva mais rica e o arrojo é seu cotidiano. O
ousado é um demiurgo – ele cria do nada – de simples mortal, ele se alça,
ascende, sobe. O ousado não conhece a verticalidade dos abismos, seu caminho é
a ascese da conquista. Sinônimos de ousado: corajoso, intimorato, rebelde,
temerário, arrojado, heróico, audaz. Seus antônimos: cético, pessimista,
inseguro, duvidoso, descrente, medroso, covarde.
O audacioso é um taumaturgo, um fazedor
de milagres: ele modifica, de maneira positiva, o ambiente por onde ele passa;
ele contagia, agiliza, dinamiza, crê nos frutos quando suas mãos ainda amanham
a terra.
O limite do audacioso é o azul, o
infinito, as galáxias. Ele não se pertence; seu espírito não está preso em uma
cadeia de carne. Ele se violenta. Ele se ultrapassa.
O audacioso é uma mistura de sonhador,
visionário, idealista e quixotesco; mas sempre em ritmo acelerado, com asas
prontas para o voo.
O audaz traz no sangue um pouco de
loucura, de heroísmo, de desobediência: ele desconhece regras, ignora códigos,
não nasceu para o aprisco, mas para o mistério dos vales e das montanhas
longínquas e desconhecidas.
O audacioso desconhece a palavra
regressão, não olha para trás: sua meta é para cima, para o alto. Ele é um
vetor direcionado para as grandes realizações. Quando se quebram asas, se
destroem sonhos, quando os moinhos de vento são fantasmas concretos, o ousado
não para a fim de se reabastecer, pois em um átimo, ele já reaprendeu a voar,
substituiu os sonhos, assinou contrato com outras batalhas.
O ousado não ama, não é terno, não é
lírico. Ele tem paixões avassaladoras, corre fogo nas suas veias, seus
sentimentos provocam queimaduras de terceiro grau e deixam cicatrizes eternas.
O pai dos ousados é Prometeu, não
Sísifo. O primeiro foi capaz de ousar
contra os deuses, deu o fogo aos homens, é quase o seu criador, sem levar em
conta o castigo futuro: ignorou o Cáucaso, as correntes, a dor, venceu a águia,
seu carrasco. Sísifo é renitente, esforçado, teimoso, pertinaz, mas falta-lhe o
fogo da audácia. É triste que seja o segundo e não o primeiro, o símbolo do ser
humano. O segundo é a regra; o primeiro é a exceção. O audacioso é um prêmio,
um capricho, um requinte de Deus.
Os poetas veem e percebem tudo. São
magos, bruxos, gurus, criaturas encantadas. Fernando Pessoa disse: “Tudo é
ousado a quem a nada se atreve”. Há os
que ousam e os que nem se atrevem, pois entre ousadia e atrevimento há uma
escala regressiva. A vida é uma eterna ousadia. Há os que negam a ela o mais
ínfimo dos atrevimentos. Quem ousa é uma
raça de assinalados. O atrever-se é uma concessão máxima de quem não sabe
ousar.
O Fiat de Deus foi uma ousadia. A
rebeldia de Lúcifer, um atrevimento. Da insolência luciferiana nasceram todos
os infernos, hoje batizados com os mais diversos rótulos. À ousadia sobra
grandeza, ao atrevimento falta. Quando Deus criou os céus e a terra, ELE OUSOU.
Após, o Senhor moldou barro, surgiu o Homem. Rezam as Escrituras que o Senhor
soprou sobre o barro e deu o espírito à sua criatura. Este foi um sopro
voluntário, forte, deliberado: dele surgiram os ousados. Depois, cansado, cheio de dúvida talvez da
validade da sua obra, Ele deu um suspiro de tédio e de desencanto: deste
abortaram os cautelosos, os precavidos, os cuidadosos, os inseguros, os
covardes.
Enfim, os audazes são o sonho dourado
de Deus e os não ousados, os parceiros do Diabo.
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