sábado, 30 de março de 2013

A OUSADIA


A OUSADIA

         A ousadia é maior que a coragem; é uma virtude instantânea, que pode surgir de uma necessidade, de um impasse, de um repto. A ousadia faz parte da essência, do ser, é dom genético. O audaz nasce assim, rebelde, impetuoso, com medidas outras que os simples mortais. Os ousados estão um pouco acima dos homens e um degrau abaixo dos deuses. No sangue dos audaciosos corre uma seiva mais rica e o arrojo é seu cotidiano. O ousado é um demiurgo – ele cria do nada – de simples mortal, ele se alça, ascende, sobe. O ousado não conhece a verticalidade dos abismos, seu caminho é a ascese da conquista. Sinônimos de ousado: corajoso, intimorato, rebelde, temerário, arrojado, heróico, audaz. Seus antônimos: cético, pessimista, inseguro, duvidoso, descrente, medroso, covarde.
         O audacioso é um taumaturgo, um fazedor de milagres: ele modifica, de maneira positiva, o ambiente por onde ele passa; ele contagia, agiliza, dinamiza, crê nos frutos quando suas mãos ainda amanham a terra.
         O limite do audacioso é o azul, o infinito, as galáxias. Ele não se pertence; seu espírito não está preso em uma cadeia de carne. Ele se violenta. Ele se ultrapassa.
         O audacioso é uma mistura de sonhador, visionário, idealista e quixotesco; mas sempre em ritmo acelerado, com asas prontas para o voo.
         O audaz traz no sangue um pouco de loucura, de heroísmo, de desobediência: ele desconhece regras, ignora códigos, não nasceu para o aprisco, mas para o mistério dos vales e das montanhas longínquas e desconhecidas.
         O audacioso desconhece a palavra regressão, não olha para trás: sua meta é para cima, para o alto. Ele é um vetor direcionado para as grandes realizações. Quando se quebram asas, se destroem sonhos, quando os moinhos de vento são fantasmas concretos, o ousado não para a fim de se reabastecer, pois em um átimo, ele já reaprendeu a voar, substituiu os sonhos, assinou contrato com outras batalhas.
         O ousado não ama, não é terno, não é lírico. Ele tem paixões avassaladoras, corre fogo nas suas veias, seus sentimentos provocam queimaduras de terceiro grau e deixam cicatrizes eternas.
         O pai dos ousados é Prometeu, não Sísifo.  O primeiro foi capaz de ousar contra os deuses, deu o fogo aos homens, é quase o seu criador, sem levar em conta o castigo futuro: ignorou o Cáucaso, as correntes, a dor, venceu a águia, seu carrasco. Sísifo é renitente, esforçado, teimoso, pertinaz, mas falta-lhe o fogo da audácia. É triste que seja o segundo e não o primeiro, o símbolo do ser humano. O segundo é a regra; o primeiro é a exceção. O audacioso é um prêmio, um capricho, um requinte de Deus.
         Os poetas veem e percebem tudo. São magos, bruxos, gurus, criaturas encantadas. Fernando Pessoa disse: “Tudo é ousado a quem a nada se atreve”.  Há os que ousam e os que nem se atrevem, pois entre ousadia e atrevimento há uma escala regressiva. A vida é uma eterna ousadia. Há os que negam a ela o mais ínfimo dos atrevimentos.  Quem ousa é uma raça de assinalados. O atrever-se é uma concessão máxima de quem não sabe ousar.
         O Fiat de Deus foi uma ousadia. A rebeldia de Lúcifer, um atrevimento. Da insolência luciferiana nasceram todos os infernos, hoje batizados com os mais diversos rótulos. À ousadia sobra grandeza, ao atrevimento falta. Quando Deus criou os céus e a terra, ELE OUSOU. Após, o Senhor moldou barro, surgiu o Homem. Rezam as Escrituras que o Senhor soprou sobre o barro e deu o espírito à sua criatura. Este foi um sopro voluntário, forte, deliberado: dele surgiram os ousados.  Depois, cansado, cheio de dúvida talvez da validade da sua obra, Ele deu um suspiro de tédio e de desencanto: deste abortaram os cautelosos, os precavidos, os cuidadosos, os inseguros, os covardes.
         Enfim, os audazes são o sonho dourado de Deus e os não ousados, os parceiros do Diabo.


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