CONFITEOR
De um
conciliábulo insólito entre Deus e o Diabo, devo ter surgido. Só assim me
entendo: sou um estranho animal maldito, fugido de algum Apocalipse de autor
ignorado. Só oscilações e incoerências, feita de répteis e pássaros: o
rastejar repete-se continuamente, do
voar não se prescinde. A execranda dualidade reflete-se no dia-a-dia, com
projeções atávicas. Sou sempre o mesmo simulacro, carbono, um “bit” do grande
computador da Criação, que se repete sempiternamente, preso a estruturas e
limitações primevas. Para dar-me a sensação de liberdade, criou-se o mito do
livre arbítrio: minhas dúvidas constantes, meus infernos repetidos me dizem que
nem as grandes quedas ensinam a optar. A
escolha é sempre cega e precária. Os resultados funestos. Quem não aceitar
minhas palavras, conte-me de que barro é feito: o meu é podre e perecível. A
porta da saída é sempre a morte; o prêmio, a velhice; a glória, uma experiência
tardia e estéril que, adquirida, não serve mais para nada, o espetáculo acabou.
Fala-se
num Deus lá em cima, cego, mudo, surdo e de mau gosto. Basta ver-lhe a obra.
Dizem que Ele a fez. Ou então, a Divina Presença cansou-se da monarquia e
exilou-se. E me perdi de vez, numa democracia inútil.
Reorganizo
as ideias. Parto de afirmações dos otimistas, inocentes que sofismam. Deve
haver algo de bom neste macaco glabro, bípede, sem asas, que ainda ousa sonhar.
Nós todos somos assim. A incongruência exaspera. Como renasce a esperança se
conheço a outra face, as patas descuidadas, as mãos em acicate, o bisturi da
língua?
No
entanto, ela teima, volta, repete-se com a intermitência da malária. Bumerangue.
Escorraço-a como a um bicho pestilento: não desconheço o perigo do contágio. E
como! Mas ela se insinua, serpente, animal ferino e se aninha em meu ser.
Tomada, sentindo-lhe as unhas na garganta, o peso no estômago, a cabeça se
perde, enxameando-se de desejos, num alude de sonhos. E eu, racional, ciente, veterana
escaldada, íntima da dor e dos batismos de fogo, ouso ainda acreditar:
Na fidelidade, apesar das
traições diárias;
No amor, mesmo com
todas suas quedas;
No reinício, depois de
tantos finais;
No ganhar, quando o mundo todo é um
perder;
No construir, embora o
homem seja destruição; No experimentar, ainda que todos os caminhos acabem em abismos;
No riso, diante de tanto esgar;
Na amizade, quando quem reina é a hipocrisia;
Na ternura, posto que toda pureza foi
conspurcada;
Na paz, em eterno tempo de guerra e de fome.
E me
flagelo, arranho, rasgo as carnes, diante de minhas lutas que se conflitam,
maldades mancomunadas, pactos rompidos, conluios, acomodamentos rançosos,
concessões letais, aceitações, degenerescências. E eu, de pé, agarrada à vida como uma desconcertante árvore de raiz podre,
recomeçando outra vez, deitando rebentos continuados da tragicomédia, quase
sempre degenerada em farsa, firme, produtora, diretora, atriz coadjuvante,
palco, cenário.
Minha grande arma: a teima.
Meu dínamo: o ódio à
efemeridade.
Minha grandiosidade: a
eternidade
de minha queda.
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