sábado, 25 de junho de 2011

DEPÓSITO DOS SONHOS FALIDOS


            Que me perdoe o leitor, mas o subjetivismo é fundamental. Alem disso, tudo que um ser humano confessa, o outro se reflete nele, pois os ingredientes são vários, porém a receita é sempre a mesma. Já viste por acaso alguém que não sofreu por amor? Conheces algum homem ou mulher, cujos sonhos se realizaram e não têm frustração alguma, pois o plano de sua vida foi concretizado na íntegra? Plano? Simples esboço e logo as linhas se perdem no tempo, invertem-se as parcelas, promessas somem e as boas intenções vão para o inferno.
            O processo é diabólico. Sobre este, Kafka deveria ter escrito o Processo II, como nas séries de cinema e se enumerar fosse toda a desdita humana, faltariam algarismos arábicos e romanos.
            Vê! O adolescente é um sonho ambulante. Brilham os olhos como um fanal iluminado, enxameiam no coração as mais ousadas fantasias: há amores eternos, com elos indestrutíveis, paixões que consomem como sarça ardente, lealdade e fidelidade – unção de óleo santo, perfume balsâmico das mais sólidas relações. Aí surge a palavra fatídica: MAS algo acontece, o contrário vira regra, o jogo muda. Por que, como e quando? Não se sabe. Somos pobres criaturas cegas ao essencial, inscientes diante das verdades da vida, ignorando sempre as causas, só conhecendo os efeitos.
            Há, pois, um Depósito para os Sonhos Falidos. Deve haver. Para onde vão eles? São centenas, milhares, um número infinito. E lá haverá, com certeza, repartições: o andar dos amores não realizados, uma área especial para as paixões que se deterioraram. Departamento das traições, das infidelidades, das agressões físicas e psicológicas. Uma área enorme para as concessões que minam os grandes ideais, deixando-os mirrados e ínfimos. Arquivos para tragédias inesperadas, mortes, suicídios, separações indesejadas. Um átrio tíbio e cinzento, como um purgatório: vão para lá as fantasias ingênuas que mal afloraram, os amores platônicos. Há fichas descoradas catalogando todo tipo de desencontros que misturam caminhos, abrem ínvios atalhos, desunem mãos que deveriam ficar para sempre juntas. Pilhas imensas de hipocrisia, mentiras, adultério, falsidade e inveja. Um quarto fechado, à prova de sons, para o ódio, que também existe e é até parente do amor. Que sala cinzenta e fria é aquela? A das desilusões, do tédio que corrói os amores ditos eternos. Amontoadas em um canto, empoeiradas, cheias de pátina do tempo, tanto elas são antigas, estão as mágoas, os desentendimentos, os desacertos. Lá atrás, um grande pátio para os mornos, os tíbios, os que não sabem amar nem odiar, e pensam ser a vida um caminho insosso, uma flor pálida e inodora.
            O leitor reclama e tem razão. Não ias falar de ti? Mas se conto de todos, não me excluo. Se estas coisas digo de cátedra, ou são meras elucubrações? Tudo do muito misturado. Vês? Fui adolescente e sonhei. Amadureci a poder de tantos golpes, que nem sei se o prêmio vale o preço pago. Tu também? Entende-se. A Vida não é muito criativa – ela sempre escreve redações com as mesmas temáticas. Muda só o estilo. As crônicas da nossa existência não têm tramas muito originais.
            Foi a poder de muitas lágrimas (queres batizá-las de experiência? Pois seja!) que descobri o tal Depósito dos Sonhos Falidos. Pessoas inocentes, às vezes, até me acham sábia; elas não vêem é que eu apenas esbocei um gráfico, fiz estatística, fechei para balanço. Olho para trás: cinco por cento de felicidade, noventa e cinco de tristezas; algumas realizações, dezenas de frustrações. Sinto-me roubada (por quem?) e me preocupo com meus sonhos que não se realizaram, areia fina que escapou pelo vão dos dedos. Onde o filho que não veio? Como viver sempre em apartamento, se o sonho era a casa térrea, com jardim, muita flor, pomar e cachorro? E o amor eterno, que partiu cedo, e que talvez jamais real foi um dia? E a Morte, sempre chegando antes da hora, mal informada, ilógica, inaceitável? E as traições, as hipocrisias, os golpes inesperados, os ranços da rotina diária, os bálsamos que não vêm?
            Desanimo, acho que estou em planeta errado, à deriva em mar enlouquecido.
            De repente reparo nas flores que colorem, graciosamente, o mundo cinzento. Capricho de Deus? Vejo os sorrisos amigos de outros seres, como eu, no insano processo. Percebo rápidos momentos de ternura, que ensaiam ser amor maior; olho a realização profissional que sublimou tantas dores, pensou feridas, amenizou cicatrizes. Há amizades cálidas que evitam sofrimentos.
            Corro até o Depósito de Sonhos Falidos e tento vê-lo com outros olhos, entendê-lo. À sua frente percebo então uma insólita figura que me sorri e explica: Sossega teu coração. As dores são sempre iguais, a receita é a mesma, mas os raros prêmios preciosos, as alegrias são ao portador, aos assinalados. Bela, plácida, diáfana, doce, ela me sorri, aquela que tudo explica: A Esperança.