domingo, 29 de dezembro de 2013

DIÁLOGOS IMPOSSÍVEIS


DIÁLOGOS IMPOSSÍVEIS
        
         O diálogo, filho da palavra, ambos armas poderosas, perigo real de dois gumes, seriam presentes de Natal muito adequados, se não fossem tão complexos.
         Em um consultório médico vi um pôster que jamais me saiu da memória. Uma floresta luxuriante, de cuja sombra emanavam uma frescura vívida e grande harmonia, entre as  pedras e cascatas . Em inglês, os dizeres: Como queres que eu te escute, se não entendes o meu silêncio?
         A comunicação do Homem com a Natureza e com o próprio Homem sempre foi difícil. Nesse Natal, no mundo da ficção, onde tudo é possível, eis diálogos, ricos presentes.
As florestas diriam aos homens: – Você, pretenso Senhor do Universo, por que se transformou em predador maior? Não vê que está cavando a sua própria sepultura?
Ao que ele responde: _Sim, mas como sofrear o desejo de poder que me abrasa, a sede de conquista, a ambição que trago na essência?  A culpa é minha ou do meu Criador? O Homem, no entanto, se esqueceu, com certeza, da verdade insofismável: a Natureza não se defende, ela se vinga.
Ora, os homens das cavernas já eram amantes da guerra, com a sanha no próprio plasma. Machado de Assis, em dois de seus romances, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”, denuncia os homens como seres inaptos para a paz. Exemplifica, ironicamente, com a filosofia do Humanitismo, criando uma parábola sobre duas tribos que viviam perto de um rio, onde havia uma plantação de batatas, suficiente para alimentar uma só tribo. Assim, a guerra, no caso, era sinônimo de vida: Ao vencedor, as batatas! A paz traria a morte.
Como a História da humanidade pouco muda, poder-se-ia transpor a parábola para os dias atuais, quando  alguns países vivem um verdadeiro holocausto, onde ninguém se entende e muitos morrem. Desejar um diálogo e consenso parece algo utópico. As guerras sempre foram uma parafernália de causas contraditórias e efeitos nefandos.
Nesse Natal, perguntei a Deus, a mais solitária das criaturas, porque não tem com quem dialogar:
Que é mais trágico / do que o desacerto do ritmo / entre a
a alma e o corpo? / Que fazer do espírito, / que busca
infinitos, / enquanto a carne palpita animal? / Que fazer
dos  nervos, / correntes-cadeias que aprisionam a carne /
e a alma, que ri, superior, / em ironias metafísicas? / Que
fazer de Deus, / que deu ao homem de barro / uma alma
de estrelas? / Por que PARA SEMPRE é POR POUCO
TEMPO / e NUNCA MAIS quer dizer AMANHÃ?
É um mistério. Os homens não se entendem. A impressão que se tem é que não nasceram para a paz, embora digam que odeiam a guerra. Este perigoso modo de ser acarreta consequências funestas, faz dele alguém sem futuro. Filmes clássicos falam de uma época longínqua, apocalíptica, árida e mortal. Mas nada os muda, nada os convence de outra maneira de serem mais benéficos e pacíficos.
Realmente o homem sempre quis ser o   Senhor do Universo, mas se transforma em  seu carrasco. Ludibriado com sua pretensa racionalidade, ele caminha para um abismo que ele mesmo tem cavado, desde tempos imemoriais.
O que pedir nesse final de ano? Talvez falar com Deus para que consigamos decodificar este diálogo impossível, tornando-nos seres mais dignos da Criação.


domingo, 22 de dezembro de 2013

CALENDÁRIO DA NATUREZA

CALENDÁRIO DA NATUREZA
         Comentava eu com alguém muito querido, que me fascinava o fato de haver uma espécie de agenda na Natureza. Árvores, flores, frutos, tudo tem seu tempo de nascer, crescer e morrer.  Assim, os ipês florescem na seca e em junho e julho dão espetáculo de beleza; os brancos, com sua efêmera brancura lírica, os amarelos e roxos (ou rosa?)  são belíssimos. Há curiosidades interessantes e não me atrai pesquisar se verdadeiras ou não. Por exemplo: as cores dos ipês dependem da luz solar mais ou menos forte. No final do ano os flamboyants incendeiam as frondosas árvores e os cachos dourados enfeitam os  pés de acácia.
         Ora, morei quarenta anos em um apartamento com a frente para a Praça XV.  Da janela de meu quarto avistavam-se umas belas árvores copadas, que o povo chamava de Sete Copas.  Soube que elas eram originárias da Europa. Verdade ou não, em setembro e outubro, quando aqui é primavera e lá, outono, todas as folhas dessas intrigantes árvores      secavam e caiam, como  acontecia com o outono europeu. Nunca tive uma explicação científica ou botânica, mas o fenômeno lembrava-me a canção famosa Les Feuilles Mortes, de Joseph Kosma.
           E há as idiossincrasias (manias botânicas?) das flores. Os amores-perfeitos só florescem em locais de clima frio. As misteriosas papoulas preferem terras áridas; há a estação das rosas, o tempo dos cravos, das gloxínias, dos lírios, das prímulas, das azaleias  e centenas de flores de cores, perfumes e nomes poéticos.  Recentemente vi em uma matéria televisiva, cientistas europeus que manipulam geneticamente as flores, misturando suas cores, seus perfumes. É o progresso sim, mas parece-me uma metáfora do homem violentando a Natureza...Foi dito que essas flores híbridas, mescladas, de cores nunca  vistas antes,  vendiam-se mais. Pergunto-me se as pesquisas são feitas para embelezar o mundo, ou são reféns da ambição.
         Acontecem fatos tão bizarros, sempre noticiados pela televisão, pela mídia escrita, que nos deixam abismados e cheios de dúvida, diante da sede tantálica dos meios de comunicação.  Perseguem com fúria as notícias e jamais sabemos o que é verdade ou invenção, criatividade distorcida ou ficção.  Soube certa vez que nos Estados Unidos fizeram uma experiência notável: dois locais fechados, um ao lado do outro, ligados por cabos comunicantes. No primeiro colocaram um médium e no outro, flores frescas, exuberantes. O homem começava a enviar mensagens do cérebro, de onde emanavam pensamentos fortemente negativos, destrutivos. Pouco tempo depois, as flores secavam, morriam... O que pode haver de verdade nisso? O povo já não diz que há pessoas de olhares malignos, que são capazes de secar todo um canteiro de avencas? Popularmente, arruda fecha o corpo contra todos os malefícios...Jardins com hortênsias dão azar e as moças da casa ficam solteironas...
         Uma filha afim, quando nos visita, elegeu a grande Mangueira do nosso Condomínio como lugar propício para fazer meditação.  Ao pôr do sol ela passa horas meditando, sob a majestosa  árvore que, de acordo com a tradição, é sagrada e protege. A Grande Mangueira de Magda, a mística.
         Sei que tudo isto pode ser inverdades ou superstições. Todavia, elas me encantam. Minha defesa é parafrasear a conhecidíssima assertiva do gênio inglês, Shakespeare: Há  mais mistérios entre o céu e a terra, que sonha a nossa vã filosofia. Ou podemos até duvidar, citando a famosa frase de Miguel Cervantes Saavedra: Yo non creo en  brujas, pero que las hay, las hay.


PALAVRAS AO DEUS MENINO

PALAVRAS AO DEUS MENINO

            Ah, Jesus Cristinho, dia 25 é teu aniversário. Vê como as ruas estão aparentemente alegres, muito coloridas. Nas casas do alto da cidade há arranjos de luzes nos jardins suntuosos. Dentro das mansões, grande é o movimento, compras foram feitas, sofisticados menus são preparados. Em nome da união das famílias comer-se-á, beber-se-á em demasia, brinquedos caríssimos serão dados a crianças fortes, bem fornidas, enfastiadas de tantas guloseimas. Orações automáticas serão feitas às pressas, se feitas, porque o comer e o beber atiçam a vontade de todos. É uma festa gastronômica, de glutões, há exageros e desperdícios. Alimenta-se o corpo e deixa-se morrer à míngua o espírito.
            Ah, meu Cristinho, como o homem distorce os teus desejos. Nasceste pobre, de família humilde, cobriste o teu corpo com apenas o necessário, calçaste teus pés com sandálias. Quando querias reunir teus Apóstolos, teus amigos, tu o fazias com simplicidade, sem alarde nem abastança. Deste um dia uma grande festa, a mais bela, onde multiplicaste pães e peixes para a multidão faminta, mas foi em campo aberto, junto ao povo, servindo o alimento essencial. Fora isto, banqueteavas os grandes grupos, os aglomerados, com sabedoria, com parábolas, servindo a Palavra como alimento maior.
               Dizem que não sorrias nunca, estavas sempre atento e lúcido, porque sabias (e como sabias!), que a vida é luta, é tristeza, é trabalho. Eras doce e manso, compreensivo e antipreconceituoso, aceitavas os pecadores, dando-lhes o perdão, entendendo suas faltas. E que fazem os homens, Cristozinho bom e amável, depois de tantas lições recebidas? São irascíveis, guerreiam, odeiam, julgam, condenam, discriminam, separam. Há vencedores e vencidos, opressores e oprimidos, ricos e pobres.
            Ah, meu querido Menino, por que te digo tudo isto, no teu aniversário, como se tu já não soubesses? Eu também erro tanto, troco meus passos, cometo pecados e deveria hoje falar só de coisas boas. Rezar para ti, oferecer-te, não ouro, incenso ou mirra, mas flores, pássaros, borboletas e crianças. Queria te dar uma boa nova, dizendo-te: Vê, os homens criaram juízo, ouviram seus corações, refizeram seus caminhos, aprenderam a amar. Já não há mais guerra, nem ódio, nem fome, nem violência. Todas as crianças são amadas, bem alimentadas e  tratam-se os animais com respeito e carinho. Já não se violenta mais a Natureza e o homem cuida do seu espírito e não só do corpo, amealha riquezas de bondade, de ternura, de altruísmo, erradicou do coração as ervas daninhas da hipocrisia, da brutalidade, da ambição, do orgulho e da injustiça. Coro de vergonha, porque é teu aniversário e nada do que queres posso te dar. Mesmo assim ouso ainda fazer-te um pedido: não fiques zangado, não te entristeças, não penses em castigar-nos. Perdoa-nos mais uma vez.
            E um dia teremos, finalmente, em outro aniversário teu, um verdadeiro Natal.


domingo, 8 de dezembro de 2013

A ÚLTIMA COLHEITA

A ÚLTIMA COLHEITA
                
                 Sempre acontecem mortes inesperadas e prematuras, de gente famosa. Embora isso aconteça muito, o fato nos leva a fazer algumas reflexões. A imprensa escrita já veiculou questionamentos insólitos a pessoas importantes, sobre “o que você gostaria ainda de fazer, antes de morrer”. As respostas foram variadas, algumas inteligentes, outras óbvias. Na realidade, ninguém está pronto para a última viagem. E mais: o que é estar pronto?
                 O ser humano, quando teme ou não entende um mistério, brinca com ele. A inexorabilidade da morte provoca isso. Muitas vezes não se pensa muito nesse incômodo encontro marcado, para o qual não há justificativa da ausência no dia, data ou local, não se pode aventar motivos circunstanciais a fim de não receber  a indesejável visita. Muito pertinente o epíteto (ou eufemismo?) dado à morte, por Manuel Bandeira, no poema “Consoada”: A Indesejada das Gentes”. Com sua poesia objetiva, podada, enxuta, ele parece exigir, aparentemente,  pouco do homem, para o último desembarque.       
                 Voltemos, no entanto, à questão proposta na mídia. Um psiquiatra famoso relatou algo interessante: Muitas vezes, antes de partir, o doente terminal experimenta momentos de lucidez. À pergunta: “O que você desejaria ter feito, ou tido na vida?”.  Noventa por cento (grande porcentagem) respondiam: Queriam ter vivido ou viver ainda um grande amor. Isso faria tudo valer a pena. Parece estranho, mas o momento culminante da partida exige acuidade aguda para os valores, muitas vezes invertidos. Querer fortuna no final? A Barca de Caronte, no rio Aqueronte, não cobra passagem e Cérbero, guardião dos Infernos (ou São Pedro...) não é corruptível. Na verdade, no final do espetáculo da vida, (pelo menos nesse momento), o homem deixa de ser tolo, iludível, esquece-se do poder, não quer ser Midas, volta para o essencial, para algo sem peso, indelével, intangível, valioso e eterno, que pode ser moeda forte e oficial no outro lado. Foi bom, amou. Acrescentou algo à Criação. Isso parece ser um passaporte seguro.
                   Seria cauteloso fazer certas exigências. Pedir uma saída rápida, preferencialmente indolor, inesperada como os grandes presentes e surpresas boas. Ver mais uma vez alguns amigos queridos, que se desgarraram na nossa história, perderam-se e hoje parecem personagens de ficção. E um desejo maior, mais valioso, mais belo. Experimentar o gosto agridoce de uma paixão. É belo apaixonar-se.  De repente, a figura do ser amado, como regente exímio, realiza o grande concerto harmonioso da Sinfônica de nossa vida. Sentimo-nos deuses, privilegiados, ganhamos asas, a cosmovisão se aguça, somos capazes de ver além. Há belezas até nos terremotos que a alma experimenta, alegria e tristeza, felicidade e tormento alternam-se sem nenhuma lógica. As lágrimas fáceis brotam, misturando-se ao riso, a lucidez desaparece e a alma alimenta-se apenas da presença ( ou até da ausência ) do Amado. Sentimo-nos felizes e desgraçados, amargos e eleitos. A morte? O que é a morte, depois de que se experimentou o paraíso? O prêmio maior, quando já se teve uma grande paixão, é que se pode levar conosco, para o outro lado, todas as sensações vividas, cada momento único, palavras trocadas, carinhos, lembranças preciosas, intransferíveis, tesouro imensurável, totalmente ao portador.

                   Como se vê, a enquete, que parece aleatória, é muito interessante. Um bom momento para se fazer balanço: como anda sua escala de valores? Será preciso chegar o momento final, o Grande Encontro, para que pense em algo tão importante? O que você pretende realizar, antes da colheita derradeira?

domingo, 1 de dezembro de 2013

APÓLOGOS

APÓLOGOS

Em um mundo materialista, tão violento, dirá o leitor: Para que escrever sobre delicadezas, mensagens tão líricas? Não sei. Talvez para experimentar um antídoto, por um curto tempo da leitura. Que me perdoem os realistas, gente de pé no chão. Seguem abaixo duas pequenas estórias.

I

         A Rosa reclamou para o Cravo. Daquele jeito não era possível: ele ficava com seu cheiro forte, ao seu lado, mesclando olores adocicados ao seu perfume etéreo. E ele, por amor, humilhou-se, tentando ser quase inodoro. A Rosa não ficou contente. O Cravo, com sua postura ereta e elegante, como um caniço verde vivo, aveludado e macio, ficou esconso atrás das hortênsias pomposas.  Mas a tirana não achou suficiente. Como a Natureza pôde lhe dar espinhos, a ela rainha? Por que as incômodas abelhas, as eventuais lagartas? E o tempo, o inimigo terrível! Sua decantada beleza durava tão pouco! Devia ser culpa do Cravo, que conseguia sobreviver      dias, fresco e inalterável... E ele dizia amá-la! Isto era amor?! Egoísta, malévolo, vil! E o Cravo pediu à Deusa Flora que concedesse seus dias de vida à Rosa. Ela era a mais bela, merecedora, eterna. Seu pedido foi aceito, mas ele teria sofrimentos atrozes, torturas da raiz às pétalas... Dobrar-se-ia com facilidade, com as brisas da manhã, tingir-se-iam de sangue suas pétalas. Seria relegado ao segundo plano das flores, jamais participando de festas ou dado em buquês, como oferendas de amor __ um João ninguém, um simples arbusto, um dianthus caryiophylus. Tudo aceitou pela Rosa, cabisbaixo, humilde, amoroso. Mas nem assim a Rosa ficou satisfeita. Pouco tempo depois, anunciou seu casamento com um espalhafatoso Crisântemo Amarelo, que, mesmo sem ser muito nobre, era pomposo, rico, exuberante como um sol.
         Só havia algo mais trágico que a sina infeliz do Cravo amoroso: ele jamais percebera uma tímida Violeta, sempre a seu lado, miúda, mas de perfume inigualável e que seria capaz de morrer por ele.
         O mundo das flores é semelhante ao dos seres humanos. Os grandes amores são os jamais realizados e os olhos do amor são cegos e insensíveis, só vendo o acessório e desprezando o essencial. E a pior evidência: não se tem a quem atribuir a culpa por estas insólitas verdades, que se repetem eternamente.

II
        
         Ele passeava cabisbaixo, infeliz com seu frustrado amor. A vida é injusta e amarga. Ele a amara tanto, a vida toda e agora ela partia para novos braços? Ele nem reparava nas florinhas que pisava, nos lírios que o olhavam com meiguice, nas violetas que perfumavam o ar. Será que ele não sabia que nada é eterno? Cronos não perdoa.
         De repente parou. Estava em um jardim de rosas. Olhou para elas, lindas, perfeitas. Notou então que faltava algo, que sempre o encantara. Perguntou para uma delas, branca  e pura:
Onde está aquele casal de borboletas que sempre voejava por aqui, dando vida ao jardim? Ela, sábia e misteriosa, respondeu: Elas se amaram durante uma rosa vermelha...