segunda-feira, 29 de outubro de 2012

PESADELO


PESADELO
                   
                       Na sala do dentista eu esperava atendimento. Por que o pavor, a depressão, tanto medo? Uma mulher madura, amedrontada como uma criança. Explica-se. Não tenho nenhuma experiência odontológica. Mais de cinquenta anos apenas fazendo limpeza de tártaro. Nunca uma inflamação de gengiva, nunca um tratamento de canal, jamais uma dor de dente. Nada. Mesmo assim, sempre achei que os dentistas têm um pacto com o Diabo, aqueles aparelhos, ferrinhos, o motor com o barulho infernal.
                     Mas meu caso era ridículo; eu morrendo de medo, porque teria, pela primeira vez, que arrancar um dente. E o dente do siso. Alguém me contando histórias. Tirou o dente do siso e ficou quarenta dias de cama... Havia raízes inclusas, tortas, inesperadas, surpresas como nos pesadelos. A moça ao meu lado, com vinte e oito anos, já extraíra  uns dez dentes! A senhora à minha frente, fizera um implante e tirara todos! Por Deus, o que fazer de uma mulher já com certa idade, em uma tarde tão quente, com tanto medo, porque vai, pela primeira vez arrancar um dente?
                       Afinal, eu era uma mulher ou um rato? Que covardia era aquela? O problema é genético. Meu pai, um espanhol alto, saudável,  quando tinha uma gripe, ficava tão aborrecido, que dizia: Ah, é melhor morrer... Meu tio, ao ir a primeira vez ao dentista, protestou: Não acredito que todo mundo tenha tanta dor! Levantou-se da cadeira e nunca mais voltou. À minha frente, uma bela mulher de uns cinquenta anos. Ao levantar-se, mancou um pouco. Contou-me que aos dez anos já colocara uns dez pinos na perna, depois quebrou o fêmur, tinha uma placa no quadril.
                      Aqueles relatos tétricos, ao invés de me consolar, deixavam-me mais envergonhada ainda. Eu era a última criatura da Terra, a mais covarde, a menos digna. Lembrei-me de minha sogra, que tivera treze filhos, sozinha. Não permitia no quarto nem o marido. Entrava, fechava a porta, ela e Deus. Será que na feitura, nos seres humanos, há receitas erradas, quanto aos ingredientes? Na minha puseram um exagero de medo de dentistas. O que fazer?
                       Lembrei-me de uma crônica poética do excelente escritor sertanezino, Vasco Pereira de Oliveira. Em seu livro “Crônicas & Agudas”, em “Sobre Dores e Dentes”, o poeta diz: “O tratamento do canal é uma tentativa de desvendar a alma do dente, do paciente. Furam, perfuram, retiram a vida em busca da alma. Não conseguindo, desistem e fecham o buraco, para que a alma não escape. Lacram o túmulo sem inscrição, não há epitáfio para um dente morto”.  Amei a crônica tão criativa, mas por Deus!, eu ia apenas extrair o siso.
                      Não adiantou. A lembrança literária não serviu de consolo. Minha autoestima foi a zero. Covarde! Vil criatura! Lembrei-me de que eu já enfrentara situações seríssimas, trágicas. E até com certa valentia, com muita serenidade. Mas por que no consultório dentário era diferente?! Comecei a me recordar de episódio terrível, no exterior, quando passei fome e frio e resolvi o problema com bravura. Os minutos passavam. Eu tentava me convencer de que a tragédia não era tão grande,   o medo só aumentava.
                      Aí aconteceu. Reuni toda minha coragem, convoquei os Santos de minha devoção. Quando a atendente chamou meu nome, heroicamente me levantei, dei alguns passos firmes e,  de cabeça erguida, como quem enfrenta o Inferno, dirigi-me para a sala de cirurgia.
 
 

domingo, 21 de outubro de 2012

À PROCURA DA INFÂNCIA PERDIDA


À PROCURA DA INFÂNCIA PERDIDA

         Tenho criticado, intimamente, uma síndrome bizarra de autores maduros, que estão sempre a escrever sobre sua adolescência e a mocidade. Como o castigo vem a cavalo, um dia desses tive uma crise de melancolia, relembrando cenas, episódios de tempos longínquos.
         Resolvi brincar. Salvei o que achei interessante na minha Caixa de Entrada, deletei fatos, joguei muita coisa para a lixeira. Ora, a vida sempre nos ensina homeopaticamente. Assim, tentei estabelecer uma cronologia pelos sentimentos experimentados, o que foi mais marcante.
         Dos cinco aos sete anos, a existência era uma sinfonia de sensações tácteis, visuais e gustativas; olfativas não, porque sou deficiente do nariz. Uma sinestesia contínua. Nessa época, o palco central, na pequena cidade da Pratinha, no sul de Minas, era o meu pomar. Meu pai e um tio não negavam suas origens: espanhóis do pequeno pueblo Pardesoa, a cem quilômetros de Santiago de Compostela.
         Os galegos trazem plasmado no sangue o amor pela agricultura. A Galícia é um jardim, uma joia verde, com seus milharais sem fim, as árvores frutíferas, incríveis macieiras, pereiras e cerejeiras, que primeiro se engrinaldam de flores e após, ficam pejadas de frutos. Na primavera, os campos se transformam em um inacreditável tapete de flores doiradas.
         Algum tempo depois que habitávamos aquela casa grande e sombria, o pomar já estava formado, com uma variedade de frutas nunca vistas na cidadezinha: maçãs rubras, várias espécies de laranjas, peras, ameixas do Japão e as outras, bem brasileiras, amarelas, caldentas, com linda penugem. Pessegueiros, os pés de carambola, baixos e arredondados, oferecendo seus frutos gomosos e meio ácidos.
         Sempre fui uma menina meio solitária, sem irmãos, tinha poucos amigos e preferia passar horas infindas deitada na terra morna do pomar, olhando com encantamento os frutos, oferendas coloridas e deliciosas. Meu encantamento pelas árvores, desde aquela época, dura até hoje. Elas têm personalidade própria, orgulhosas, altaneiras, outras pequenas, mais humildes. Quase entro em transe diante de ipês floridos, paineiras níveas ou róseas, exuberantes, ipês do jardim, palmeiras e coqueiros. A Natureza e o verde me fascinam.
         Às vezes penso que temos dentro de nós várias personagens, com tempo, espaço e características diferentes. Na Peça da Vida (escrita e dirigida por quem?) representamos, como podemos, nossos papéis. Não há ponto, ensaios, orientação definida. É tudo no happening, no acontecendo, dia a dia. Até que nos tornamos adultos, com mais capacidade de reflexão e, às vezes, não cometemos mais traquinagens. Somos personagens que se sucedem e vistas da plateia, agora, parecem artistas bizarros, meios desarvorados.
         O que tem a ver a professora, a mulher adulta, a escritora, a personagem madura de hoje, por exemplo, com a menina de oito anos, vivendo, pela primeira vez, no campo, fazendo travessuras, apostando corrida sobre a eguinha em pelo, com os cabelos soltos, sob o céu azul da Fazenda do Morro do Ferro? Ou, um ano depois, sentindo-se prisioneira no Colégio Sacre-Coeur, de Belo Horizonte, amordaçada na sua linguagem  coloquial, repleta de mineirices, quando na famosa Casa de Ensino só se podia falar em francês?
         Vieram outras épocas, mais mudanças de cidade e de Estado, novos pesadelos. Mas tudo me parece, hoje, um filme mal dirigido, com roteiro desconhecido e esta realidade só ressurge nos pesadelos, nos sonhos. Gostaria mesmo é de fazer uma viagem pelo Inconsciente, visitar o Id, pôr ordem nesses porões.

  
        

domingo, 14 de outubro de 2012

DESAGRAVO


DESAGRAVO  
Já se tornou muito comum escrever algo sobre o Professor, no seu Dia. Contudo, nessa época em que a figura do mestre anda tão desgastada, quando o magistério virou profissão de risco, parece-me pertinente uma mensagem de desagravo.
Como se não bastasse, a TV Globo está levando ao ar a minissérie Gabriela, obra famosa de Jorge Amado,  adaptação feita por Walcyr Carrasco, novelista de renome. Por conta mais do adaptador do que do romancista, entre as personagens há um professor, criatura infeliz, que mal ganha para subsistir, canhestro, inteligente, mas totalmente gauche, uma caricatura bizarra de um ser humano, na pior das profissões.
         Nos jornais televisivos há sempre notícias de agressões de alunos aos professores e de vez em quando, algum mestre, não suportando mais, revida os tapas e pontapés.  Muitas escolas são de péssima qualidade, o Ensino é fraco, há professores mal preparados e os jovens raramente se interessam pelo magistério. As causas não são somente a violência que grassa nas Escolas, mas também os baixos salários. 
Sei que os mestres jamais serão desnecessários, substituídos pelas novidades da alta tecnologia, como afirmam  algumas teorias falaciosas. Não acredito em tal tolice e enfatizo que nunca me arrependi pela opção profissional que fiz e até hoje, após ter lecionado durante cinquenta e dois anos, se preciso fosse, faria tudo de novo. Dar aulas, participar do desenvolvimento, da educação e da formação dos jovens continua sendo para mim, uma das mais dignas e nobres  profissões. Talvez o professor seja ainda uma das chaves para minimizar o cipoal caótico de alguns problemas sociais e educacionais. Por isso ele deveria ser levado mais a sério, tratado com dignidade e respeito.
Continuo otimista. Sempre que estou em uma reunião de jovens, ao perguntar-lhes o que pretendem seguir, fazer no futuro, quando alguns dizem que farão Letras, Geografia ou História, começo a vê-los como criaturas especiais, mais espiritualizadas e idealistas, alguém que acredita que pode melhorar o mundo. Sinto neles uma fagulha do fogo de Prometeu, uma dose de quixotismo.
Ora, recebi no final de setembro o Boletim Informativo do Centro do Professorado Católico. Interessante, com várias informações importantes, na última página vem um texto de John W.   Schlatter, famoso educador americano, poeta e filósofo. Senti necessidade de transcrevê-lo, porque sua maneira de ver os professores é a minha. Neste seu dia 15 de outubro, a homenagem é pertinente e soa como um desagravo:
Sou professor.
Fui muitas pessoas em muitos lugares.
Sou Sócrates, estimulando a juventude de Atenas a descobrir novas ideias através de perguntas.
Sou Anne Sullivan, extraindo os segredos do universo da mão estendida de Helen Keller.
Sou Esopo e Hans Christian Andersen, revelando a verdade através de inúmeras histórias.
Os nomes daquele que praticaram minha profissão soam como um corredor da fama para a humanidade: Buda, Confúcio, Moisés e Jesus. Sou também aqueles cujos nomes foram há muito esquecidos, mas cujas lições e o caráter serão sempre lembrados nas realizações de seus alunos.
         Cite-se, ainda, a asserção sábia e complexa do grande Guimarães Rosa, nosso Mago de Cordisburgo: Mestre não é quem ensina, mas quem, de repente, aprende.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

PIRATININGA


PIRATININGA
               
                Às vezes coisas boas acontecem. A enteada querida convidou para conhecer sua casa nova, em Piratininga. Consultei a geografia. O local é um bairro de Niterói, Rio de Janeiro.
                Sempre aprendendo. Quando a nave alçou voo, veio a mensagem da aeromoça: Passaredo significa bando de pássaros. Fiquei encantada com o substantivo coletivo. Uma hora e quinze depois, aterrissávamos no aeroporto do Galeão. Do carro, eu observava as belezas da cidade, hoje Patrimônio Universal. Realmente, o Rio é uma das mais belas cidades do mundo. Parece um cartão postal diferenciado.
                Como nada é perfeito, PC, que gentilmente nos foi buscar, ia nos orientando sobre as belezas e as mazelas da cidade famosa. O trânsito, problema globalizado, um pesadelo. Nos morros, as incríveis favelas, imensas, famosas, coloridas, lembram quadros inusitados, pintados por algum artista talentoso.
                No dia seguinte fomos a Piratininga. A casa grande, sólida, a praia belíssima, a perder de vista, inacreditavelmente vazia, apesar do domingo. O mar, um poema azul. Levaram-nos à incrível Praia do Sossego, de inacreditável beleza. O bairro chique de Camboinhas, com os Condomínios de luxo, surgiu assim, não mais que de repente, em poucos anos.
                À tarde, após o almoço, eu descansava, quando me lembrei que levara comigo o livro de Mário Quintana, Nova Antologia Poética. Lugar perfeito, para ler o grande poeta. Deliciada, fui lendo os poemas, quando deparei com uma estrofe muito pertinente, todavia melancólica: “Antes, todos os caminhos iam./Agora, todos os caminhos vêm./ A casa acolhedora, os livros poucos./ E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”.
                Fechei o livro e fiquei a cismar, neste reencontro com Mário Quintana. Por que a idade nos traz tantos fantasmas? Lá fora, o pessoal jovem tocava violão, cantava alegre, desprevenido... Na mocidade, todos os caminhos parecem róseos, as veredas têm mais flores que espinhos. E é bom que seja assim. O caminho se faz caminhando. Não se deve alertar contra possíveis alçapões na vida. É preciso que cada um, ao encontrar os seus, saiba como enfrentá-los. A teoria jamais é a mesma, a vida não admite receitas nem rascunho. É ali, no vivendo, no embate.
                Continuei lendo Quintana. De repente, uma estrofe linda: “Cada palavra é uma beleza morta espetada na página. / Por isso a palavra escrita é sempre triste”... Amarguras de poeta. Ele, contudo, parece ter esquecido do ditado latino, que afirma: As palavras faladas voam, as escritas permanecem. Realmente, quem escreve, pratica uma ousadia. Lembrei-me da ex-aluna querida, que acabou de ler meu romance epistolar, Cartas a Cassandra: “Perdi o sono, tentando distinguir o real e a ficção nas Cartas.(...) Confundir os leitores, pobres ex-alunos, é este seu prazer, seu ofício. Vocês, escritores, propositadamente alteram datas, nomes, recriam a realidade, embaralham as cartas. Cassandra é você, escrevendo para a outra para exorcizar seus fantasmas”.
                Ah, doce Jacy, não tente entrar neste cipoal de conceitos. Nem o próprio autor (ou autora) conhece bem os limites da ficção e/ou da realidade em suas obras. Ele escreve por uma necessidade ingente, coloca no papel a SUA realidade, alicerçada no Inconsciente, na sua vida, nos livros que leu, na  criatividade. Que leitor poderá delimitar o que é ficção, o que é real? Acho que só Deus.      Talvez, nem Ele, que tem coisa muito mais séria que fazer.


terça-feira, 2 de outubro de 2012

CAMINHOS DE BICICLETA


CAMINHOS DE BICICLETA
          Tenho procurado conhecer  toda a vasta obra da grande escritora Raquel Naveira, um dos talentos literários  mais versáteis da literatura brasileira atual. Ela trabalha com maestria os gêneros prosa e verso. Caminhos de Bicicleta, (Miró Editorial Ltda. , 2010) é um livro fascinante. Nada mais adequado que citar as palavras sábias, no final do Prefácio da famosa escritora Renata Pallottini, apresentando a obra. “Caminhos de Bicicleta: caminhos simples, mas trabalhados.                                 
.Exercício e resultado, visão de mundo, acréscimo e objetividade. Um livro enriquecedor, multiforme, digno, vale a pena, e o leitor confirmará esta suspeita”.         
        Cada subtítulo é, inicialmente, uma crônica, seguida após, por um poema sobre o tema abordado O primeiro texto é um apanhado criativo e variado do que é ganhar uma bicicleta. Sob a ótica lírico-filosófica de Raquel Naveira, a bicicleta é mais uma vara mágica, um documento de emancipação, descoberta poética, ritual de passagem, a mais pura alegria. Como muito bem observa Renata Pallottini: “O modo de tratamento escolhido para esta seleção é subjetivo; trata-se do que marcou os dias da escritora; tudo é valioso, tudo pode ser motivo de divagação e de escavação na terra da ideia. Raquel não despreza nenhum assunto e não estabelece critérios. Tanto vale a origem de uma palavra fundamental em seu próprio nascimento, quanto o louvor a um herói, a um poema, a uma fadista”.
          Muito já se estudou, na literatura, sobre o olhar novo, a outra roupagem que o escritor cria, para temas já abordados inúmeras vezes. A alusão, por exemplo, à obra O Pequeno Príncipe, de Exupéry,  famosa no mundo todo, traduzida em muitas línguas, peça teatral, filme, surge aos olhos de     RN, na crônica e no poema, como algo original e mais universal. Assim é também quando ela aborda os Mitos, tema recorrente em suas obras. Raquel consegue sempre um enfoque novo.
          Em uma mistura aparentemente complexa, nossa Musa de Campo Grande ousa cantar também poetas famosos, de hoje e do passado, cidades, locais públicos e figuras importantes da política nacional, como Getúlio Vargas. Quando fala do grande estadista, usa a sugestiva figura de linguagem da preterição, fechando a crônica com a citação da famosa frase da carta-testamento.
          A ousadia literária da autora enriquece os textos com uma linguagem conotativa rica, faz incursões ao passado, quando encontra e conversa com Rui Barbosa, ou comenta o romance premiado de Luiz Ruffato, Eles Eram Muitos Cavalos, inspirado no famoso poema Dos Cavalos da Inconfidência, de Cecília Meireles. Há também crônicas dedicadas a mulheres notáveis, escritoras, escrivãs, poetisas, almas gêmeas em essência, da autora.
          Partindo de um seriado americano que marcou sua infância, Raquel aborda o tema da Feiticeira: “Nós, mulheres, temos ligações com as forças ocultas e com os espíritos (...) , fada druídica,  sacerdotisa, sibila de todas as criaturas, filhas de uma longa história registrada em nossa psique”. Neste e em outros textos, realça-se um erotismo lírico, que me encanta sobremaneira, a mim, com dois contos sobre este tema,  em A Senhora das Sombras, cuja primeira edição é de 1994.
          E seguem os caminhos de bicicleta de RN, trilhas reais e surrealistas, encontro com  Cidades, rios, recriação de episódios  históricos,  figuras míticas, escritores famosos como  a emblemática Rosalía de Castro, a Galega, mergulhos corajosos nas regiões abissais da própria Raquel, neste livro de uma riqueza ímpar, aureolado de grande talento.