terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

ELY VIEITEZ LISBOA: FONTE DE CONHECIMENTOS


Hoje, ocupa este espaço a grande escritora Raquel Naveira, com seu comentário sobre meus livros Replantio de Outono e Tempo de Colher.


ELY VIEITEZ LISBOA: FONTE DE CONHECIMENTOS
                                                  (*)Raquel Naveira

Belos livros: Replantio de Outono (poemas) e Tempo de Colher (crônicas). Nos dois títulos os temas recorrentes: as estações; o plantar e o colher; a alegria de ceifar os feixes de trigo, quando se plantou a semente com esforço e lágrimas. Algo que dialoga com o bíblico Eclesiastes, pois há tempo para tudo debaixo do sol.  
Em Replantio de Outono, quanta sensibilidade, quanta observação da natureza , quanta fragilidade que na essência é força: a borboleta, os passarinhos, os cachorros, o céu azul, o ipê florido...
Ely bebe nas fontes portuguesas das cantigas medievais de amor e de amigo, pois “Luta vã, a alma do amor serva/ vive, sangra, goza em êxtase/ dolorosa vassalagem”.
O tom dos poemas às vezes é de prece, outras vezes de sensualidade, como no Cântico dos Cânticos, o poema epitalâmico em que o rei Salomão canta para sua amada Sulamita: “Ah, Senhor meu/ Entra que a casa é tua/ E eu, escrava apenas/ Jamais senhora”. Há maior liberdade do que servir como escrava, doar-se submeter-se por vontade própria? Humilhar-se a ponto de, como nova Maria Madalena “ungir-te os pés com doces óleos/ Enxugá-los com meus cabelos”?
Grande é a erudição de Ely, o seu mergulho nos clássicos e na mística: Dante, Santa Teresa de Jesus, Lope de Vega, mitologia greco-romana. E os contemporâneos: Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector.
Os concisos  minipoemas atingem alto grau de lirismo e oralidade, pois “lábios são pétalas que voam”.
Lindo e ousado o diálogo com o Cristo vivo, o “Cristo da Trindade fugido”. Diálogo entre Irmão e irmã, Deus e mulher. A poeta abriu a porta para o Homem de olhos mansos, cheios de Amor.
Morte/vida, angústia/esperança se mesclam nas tramas que nos envolvem, nos campos de batalha de nossas mentes até o Apocalipse.
E se poemas têm cor, os de Ely são verdes como ramos de magia verde viva atirados sobre Jesus na entrada de Jerusalém. Eu mesma fiquei iluminada de verde quando li esses poemas.
As crônicas de Tempo de Colher são maduras e deliciosas. Identifiquei-me com elas: a urdidura das narrativas, a espontaneidade, as reflexões, a lucidez, a compaixão sem julgamentos, o poder curativo e catártico que delas emana. Pura vontade de viver. A escritora e a professora de Estética em Ely são indissociáveis na observação da beleza e da dor do cotidiano. Segundo Freud, lembra ela, “o belo é uma sublimação de representações recalcadas e a obra de arte, o símbolo de um desejo.”
Ely revela garra, otimismo, capacidade de enfrentar problemas e desafios sem olhar para trás. É dona de uma personalidade corajosa, animada, alguém que crê que a vida deve ser rica, sem ócio e passividade.  
Toda sua inquietação, sua sede de agir, de produzir, de sonhar e amar; toda gama de atos, palavras e exemplos estão expressos nessas vigorosas crônicas.
Fernando Pessoa disse: “Tudo é ousado a quem nada se atreve”. Ely é ousada.  Pertence à raça dos assinalados, dos que olham para o alto, em direção a grandes realizações. Não tem medo de polêmica, não muda os seus valores, busca a cada linha o equilíbrio espiritual de quem sabe viver por Amor, acima das circunstâncias e dos sofrimentos.
Na poesia e na prosa, Ely é fonte de conhecimentos acumulados e aspirações que se renovam sempre.  Alguém que alcançou um coração sábio

(*)Raquel Naveira. Emblema sagrado da poesia sul-mato-grossense.  Presença marcante nos meios culturais e na mídia do Estado do Mato Grosso do Sul. Escritora fecunda, tem 16 obrass literárias publicadas.


domingo, 19 de fevereiro de 2012

AS CRÔNICAS DE VASCO


AS CRÔNICAS DE VASCO
        Quando recebi o livro “Crônicas & Agudas”, de Vasco Pereira de Oliveira ( Editora Legis Summa, 2011), sabia que encontraria textos de primeira qualidade. Não me decepcionei e  gostei do título inteligente, um jogo semântico criativo.
            A Crônica é um gênero leve, dinâmico, que aborda principalmente o cotidiano e dá ao autor  liberdade  mais ampla. Mas sua aparente facilidade exige arte para que o texto não se torne comum. Vasco conhece bem a arte. Suas cinquenta e duas crônicas são variadíssimas e se pode conhecer a erudição do autor, por alguns temas alicerçados em obras literárias famosas, outros de cunho científico, da Natureza ou aflorando fatos do dia-a-dia, reminiscências e confissões.
            Quando o cronista é um poeta, há textos em que os gêneros se mesclam. É o caso de Vasco Pereira de Oliveira. Suas crônicas são, às vezes, poesia pura. Há tiradas que são verdadeiros poemas. “Tenho bebido o orvalho, aspirado o osso da brisa, e fumado a alma das plantas desde o começo do mundo. Em vão: perdi meu faro ainda feto, semente”.
            No livro há achados notáveis, como a assertiva em epígrafe, na crônica “Uma História Real” (pág. 71): “Metade da vida é ilusão, a outra metade invenção; real é a morte”. Outra muito expressiva, com narrador em primeira pessoa, é Biografia de uma Árvore. O texto é pois uma personificação, uma verdadeira alegoria, pelo encadeamento de metáforas, uma prosopopeia.  O título é homônimo de uma obra poética de Carpinejar, publicada em 2002. Ele usa o mesmo procedimento literário, do empréstimo (ou seria uma homenagem?), batizando uma crônica com o título Tempus Fugit , aludindo ao  famoso livro de Rubem Alves.
            Os temas são variados, filosóficos, metafísicos, às vezes com uma abordagem surrealista, como em “A Arca de Noé”(pag.36).  Na crônica “Sobre Dores e Dentes” (pág. 65), o autor esbanja criatividade; o tema é comum, corriqueiro e parece não muito pertinente à Arte. VPO, no entanto, faz uma abordagem lírico-filosófica-odontológica muito original, realmente inusitada, que surpreende o leitor: “O tatamento do canal é uma tentativa de desvendar  alma do dente, ou do paciente. Furam, perfuram, retiram a vida em busca da alma. Não conseguindo, desistem e fecham o buraco para que a alma não escape. Lacram seu túmulo sem inscrição, não há epitáfio para um dente morto”.
            Muitas vezes o poeta pede licença ao cronista e produz um lirismo doce e delicado. Como quando fala dos ipês e suas florações. Um final que lembra Drummond e faz da crônica “Novamente os Ipês” (pág. 86) uma pequena obra-prima: “ Quando nasci, um anjo__ desses preguiçosos, inúteis e obesos que ficam sentados em sofás de nuvens__ me perguntou  que eu gostaria de ser quando crescesse. Ipê, respondi. Para escrever uma crõnica sobre os ipês e desejar que ela ficasse grudada nos olhos de algum leitor desavisado, pelo menos até a próxima florada”.
            Não se sabe se o Anjo realizou ou não o pedido do autor, visto que a angélica critatura  era bonacheirona e comodista. Mas algo é certo: em cada obra de Vasco Pereira de Oliveira, o cronista e o poeta estão presentes. Em  “Crônicas & Agudas”, o conteúdo, a forma, tudo são matéria de Arte, nas mãos do Artista Maior. Ele é o demiurgo que, aparentemente,  cria do nada.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

VOZES DAS SEMENTES


VOZES DAS SEMENTES

             Textos e sementes têm semelhanças. Escrever é uma semeadura. Escolhem-se as sementes / ideias provavelmente melhores, mais sadias, com possibilidades de bons frutos. Na realidade, quem escreve repete sempre a Parábola do Semeador.
                   E o Mestre dos Mestres (e por que não dos Escritores?) sabia, na sua infabilidade. Conhecia as dificuldades do plantio. Não jogava aleatoriamente as sementes, não ignorava as dificuldades que podiam vir da terra. É preciso primeiro amanhá-la, prepará-la. Às vezes as sementes são boas e por que não dão bons frutos? Culpa de quem, do Semeador?
                   Os perigos são mencionados com clareza. Há empecilhos-pássaros, que devoram a obra, leitores que são solo pedregoso, sem muita terra fértil e nenhuma profundidade e as sementes-ideias não criam raízes. O sol da Censura, da Ignorância, da Preguiça Mental, dos Preconceitos destrói, às vezes, qualquer possibilidade da colheita. Finalmente, os Espinhos, metáfora forte de todas as dificuldades de quem quer semear: o dificultoso parto dos livros, a sorrateira divulgação, que muito exige e às vezes oferece parcos resultados, o mau gosto do leitor, não por culpa dele, mas porque não cultiva o hábito de ler, ou tem pouca familiaridade com a linguagem, com as palavras, elas, tão perigosas, instrumentos e armas.
                   As ideias, as mensagens levantam voo (do cérebro ou do coração?) e partem com o ramo da paz (às vezes da discórdia) após os dilúvios dos acontecimentos. O escritor fica lá na Arca de seus Sonhos e Ideais, dialogando com Noé, o bem intencionado, o Escolhido do Senhor.  Nunca se sabe de algum possível e feroz caçador, que pode destruir o Mensageiro. Ou um tirano que queira alienar um povo, queimar seus livros.
                   Há um filme famoso, Fahrenheit 451, de 1966, dirigido pelo diretor francês François Truffaut, adaptado de um livro homônimo de Ray Bradbury. Montag, interpretado por Oskar Werner, é o herói que percebe o grande golpe da queima dos livros e se rebela.  O filme de Truffaut é muito sugestivo, como uma parábola e uma denúncia. Na década de sessenta já se alertava para a alienação pela TV, a inversão dos valores, a destruição do passado, da Cultura. O primeiro livro a ser destruído é o D. Quixote, de Cervantes. Após, quando o fogo aumenta, obras de grandes poetas vão desaparecendo nas labaredas. Realce-se uma cena antológica da velha senhora, que, apesar da proibição, tem uma casa repleta de livros. Ela morre queimada com eles, como uma mártir do idealismo e da cultura.
                   Assim, no grande filme, os livros continuam vivos nas pessoas que os decoram e vão viver em uma comunidade clandestina, rebelando-se contra a ditadura e a lei nefasta. Na realidade, quando qualquer pessoa lê, compreende e ama um livro, ela salva parte do tesouro da Civilização. O livro é vida, é alimento para o espírito. O Escritor é o apóstolo, os Leitores, seus discípulos.
                   Grande á a missão das Sementes e dos Textos. Criaturas vivas, prenhes de futuro, túrgidas de esperança. São mensagens, veredas, caminhos. É preciso compreender suas vozes. São recados de Deus aos Homens. Vida.    
                  

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

COMO CONHECI MARIA CARPI

COMO CONHECI MARIA CARPI
               A pergunta foi feita por Menalton Braff, grande escritor e eterno mestre: você já leu Maria Carpi? Foi uma grande surpresa, porque eu também não sabia que ela fora a primeira esposa de Carlos Nejar e é mãe de Carpinejar. Como estávamos na Paraler, encomendei  livros da poeta e alguns dias depois tinha em mãos: “A Migalha e a Fome”(Editora Vozes, 2000); “ As Sombras da Vinha” (Ed. Bertrand Brasil, 2004) e da mesma Editora, “O Herói Desvalido” ( 2006).
               Assim, durante um mês estive quase em transe, lendo a produção poética de Maria Carpi, poetisa nascida em 1939, na cidade gaúcha de Guaporé. Premiadíssima, reconhecida pelos intelectuais e críticos mais expressivos. Ler Maria Carpi é um susto. Há quem goste ou não de Drummond, porque ele é mais complexo que Manuel Bandeira; há os que preferem o último, justamente por sua simplicidade. Há leitores que amam a crueza de pedra de João Cabral de Melo Neto, o sensualismo de Vinícius de Morais, a criatividade popular de Manoel         de Barros, a candura de Mário Quintana, ou o lirismo delicado de Cecília Meireles.
               Todavia, não se pode comparar Maria Carpi com ninguém.  Alguém afirmou que ela compõe partituras, afinando-se com a espiritualidade de Soror Juana Inés de la Cruz ou Gabriela Mistral. Carpi é também mística, contudo é mais humana, mais profunda. “Sua métrica é a respiração. O herói de Maria Carpi é o próprio Verbo (...) A poeta medita e desdobra questões inquietantes da existência (...) Seu primeiro livro entranhou-se na Dor, o segundo no Desejo, o terceiro na Vidência, o quarto na Semente e após, disseca a Fome”.
               Quando se começa a ler Maria Carpi, mergulha-se , poeticamente, nas profundezas da alma humana, da grandeza e da pequenez do homem, em sua  luz e em suas sombras. É descobrir metáforas inusitadas e brindar nossa inteligência com um vocabulário riquíssimo. Poesia mágica, prenhe de universalismo, de religiosidade e de filosofia. Ela é a espeleóloga que nos descortina mundos insólitos, com um lirismo muito original, que não lembra nenhum outro e traz um perfume do novo.       Advogada,  erstreou madura na literatura, em 1990 e em menos de uma década, recebeu vários prêmios literários importantes. Talvez sua formação possa explicar a ousadia e estranheza da mescla de lucidez e misticismo, nos seus poemas, assim como o vocabulário riquíssimo.
               Textos quase bíblicos, com enjambements e a rica sinestesia, oferecem aos leitores, a receita mais bela do “pão vivo”, o Poema ; veja-se como elucidação dessa assertiva, os poemas 7 e 17 em “A Migalha e a Fome”; no poema 15 desta mesma obra, surge o texto forte, com metáforas dolorosas (pág.25); a opção pelos dísticos , pelos emjambements  é uma constante: “Eu que dispensei  o pão / e os olhos, agora comungo / a escassez.  Morrer é dar-se / de alimento”.
               No poema 19, da página 29, há uma estrofe de três versos, com belas rimas internas: “Não podes tomar-me essa fome / além do nome e do alvoroço, / sendo-me o rosto recolhido”.  O grande Thiago  de Mello, nas orelhas do livro “As Sombras da Vinha” , avisa que a obra não de fácil acesso. Que será luz para poucos olhos, sumo de uvas que só se abrem para conhecedores da vinha”.
               Enfim, Maria Carpi é a ousadia poética , com seus enfoques místicos, filosóficos e metafísicos dos temas, o vocabulário de uma riqueza inusitada, a linguagem figurada de rara beleza, a coragem de, semanticamente, usar todos os malabarismos  dos sentidos, dos significados, cânticos à fome de criar, até o nascimento do texto. “ Uma fome fora da fome. Não de carências que essas / se gastam. Ou de cegueiras / que se tateiam. Uma fome / em saciedade de estrelas. / O vazio sideral do estômago,  / na vacuidade dos signos. / A acuidade cetim do vazio / no arco sobre as cordas”.
    

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

AS GRANDES DÚVIDAS

AS GRANDES DÚVIDAS

Há dúvidas que são como moscas que incomodam. Vão e voltam sempre, sem respostas. O que é realidade, por exemplo. De perto, no presente, os fatos parecem ser vivos e reais. Com o passar dos anos, depara-se com nova face dos acontecimentos, totalmente mudados pelo tempo. Então, qual é a verdade? O que é falso?
Analisando a questão percebe-se que a proximidade do fato é como tentar ver um quadro, uma pintura, de muito perto. Ver-se-ão apenas borrões, com uma visão totalmente distorcida, os contornos ficarão comprometidos. É preciso certo distanciamento para apreciar um quadro, uma gravura. Provavelmente, na vida se dá o mesmo.
Outro argumento convincente é a insciência humana. Não se conhece o amanhã, nem mesmo o futuro próximo. Não se sabe o que poderá acontecer nas próximas horas. Há uma previsão, uma probabilidade, sempre com a possibilidade do acerto ou do erro. Ora, talvez esta seja a explicação mais coerente para comprovar a tese inicial.
Quando se está vivendo um episódio, um fato, pode-se conhecer  só a sua gênese, a origem dos acontecimentos. No presente,  aos poucos vai se desenrolando o script, sucedendo as cenas. Na vida, como na literatura, o final pode ser em clímax ou em anticlímax, isto é, o fim que se espera, ou uma frustração, diante do possível epílogo.
Ora, na literatura os grandes autores usam as duas mencionadas técnicas. Machado de Assis parece preferir o anticlímax, com términos inesperados, pessimistas, às vezes até niilistas, tudo negando, como o famoso final de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.  Em alguns contos, ele preferiu o clímax, como em A Cartomante, ou ao contrário, final inesperado, no famoso Noite de Almirante.
Alguns dos maiores autores de nossa literatura, como Osman Lins, tinha preferência pelo anticlímax. Ele foi mais além: criou narrativas com mais de um final. No cinema moderno têm surgido alguns filmes que usaram tal técnica, assim como a do final aberto, que é um corte inesperado, dando-se impressão de que a história não tem fim, poderá continuar como se quiser.
Na vida real, quando se está vivendo o presente, não se conhece o final da história. Assim, belos romances vulgarizam-se, quando não viram dramas ou farsas grotescas. Às vezes o vivido tem até happy-end, quando Deus inebria-se de lirismo. Vezes outras, os próprios heróis da história misturam papéis, fazem tolices e azedam a receita. Enfim, o sucesso da peça da vida depende mais da inteligência e do talento dos atores.
Algo, no entanto é certo: para se avaliar se o espetáculo de nossa existência foi bom, só com o distanciamento do ocorrido saber-se-á se vale a pena aplaudir, ou chorar lágrimas inúteis. Fecharam-se as cortinas, não há mais público, apagaram-se as luzes. Nas coxias restam só os frustrados artistas que, às vezes, terão a oportunidade de participar em outra peça. Senão, é a aposentadoria compulsória.