segunda-feira, 25 de junho de 2012


AS TRÊS SEREIAS

            Elas residem no Rio, na Cidade Maravilhosa, têm profissões comuns, nada poéticas: uma é Dentista, a outra Analista de Sistema e a terceira é Psicóloga, conserta cabeças, cassa monstros do sótão de pessoas atormentadas. Cultas, simples, bonitas e esbeltas.
            Quando chegam, no entanto, à nossa casa, transformam-se. É o verde do gramado que esparge frescura nas almas? A leveza da murta, que dança na brisa e lhes dá o andar felino e macio? E a alegria, vem de onde? Da variedade de pássaros que acorda a casa, ao alvorecer?
            O mistério, todavia, é a grande piscina azul. Durante o dia, as três descansam, bronzeiam-se ou leem livros inteligentes, debaixo dos chapéus elegantes. À tarde, ao som de música dolente, bebem cerveja ou vinho em copos de cristal, joias seguradas com doçura pelos seus dedos longos.
            Contudo, o inusitado se dá à noite. Culpa da bela lua, do exagero de estrelas, da brisa que se torna quase fria? Elas se aproximam da piscina, apagam todas as luzes. Na escuridão, a lua fica mais ostensiva e as estrelas são diamantes que brilham no fundo escuro do firmamento.
             Em silêncio, elas se despem. Como sílfides poéticas, mergulham seus corpos nus nas águas tépidas. E nadam, brincam, riem. Como elas riem! Ficam horas nadando, ou descansando nas bordas, de costas, de olhos muito abertos, perscrutando o céu, tentando captar mistérios... Ao redor, o silêncio se faz, respeitando o momento mágico. Hora ou outra, um pio estranho de pássaro noturno, enquanto a mangueira, um pouco à frente, é uma mancha escura.
            Elas são reais?  Durante o dia, agendam-se e gostam também de nos presentear com guloseimas. Criam pratos sofisticados, doces coloridos e saborosos, bolos de frutas e castanhas. São fadas. Suas mãos fazem tudo de maneira simples, como se brincassem. E às vezes realmente brincam, dançam no gramado verde, tiram fotos bizarras. Quando lhes pergunto se não querem ir à cidade, ao Shopping, ao cinema, elas me olham espantadas e dizem : Sair daqui?! Estamos no paraíso!
            Os dias mágicos escoam-se rapidamente, com se na ampulheta de Cronos houvesse mais pressa. Sua estadia é uma metáfora da existência, em seu dinamismo inexorável. Tudo passa em um átimo. É fácil entender isto pela teoria do tempo psicológico.
            Uma semana depois, a magia acaba. As Sereias transformam-se novamente em profissionais aptas, mães cuidadosas, examinam agendas e cronogramas, vão para o aeroporto. A vida urge. O dia-a-dia exige a volta às obrigações. Começa-se novamente a se usar o celular, instrumento da praticidade.
            Lá do alto da escada, antes de entrar no grande pássaro metálico, abanam as mãos, já saudosas. É a vida prática, luta renhida, que as espera lá na grande Cidade, onde pousarão uma hora depois.
            Ficamos aqui, encantados, fortalecidos pelos dias poéticos, aguardando que breve, muito breve, as Sereias voltem e aumentem com elas a beleza lírica do nosso Shangri-lá, um pequeno paraíso.


segunda-feira, 18 de junho de 2012



O SOM DA PEDRA
           A Arte tem seus mistérios.  O mais complexo  e profundo talvez seja o talento. Ele é intransferível, inegociável.  É inerente à pessoa, independente de raça, status, cor, situação financeira. Ele pode, às vezes, hibernar, mas um dia eclode, como em uma epifania.
           A reportagem que fala sobre Zabé da Loca saiu na Revista Terra da Gente, de novembro de 2011. O autor é  João Correia Filho; desde o apelido dessa intrigante mulher,  sua história, o talento, tudo parece mais ficção que realidade. Ela aprendeu a tocar pífano com um de seus irmãos, passou a infância na zona rural de Monteiro, a 320 quilômetros da capital da Paraíba. Sua vida é luta sem tréguas, os detalhes de sua historia impressionam.
           Com cinco filhos, sozinha, ficou sem sua casa, que foi levada pela chuva.  Mudou-se então para uma local, uma gruta, perto da antiga casa. Isabel Marques da Silva virou Zabé da Loca, vivendo com os filhos sob duas grandes pedras que se equilibram  há séculos. Ergueu uma  parede de barro, a cama no chão batido,  mudou-se para a maloca, com alguns utensílios de cozinha em um baú.  História incrível. Na gruta viveu por mais de vinte e cinco anos,  todavia nunca abandonou seu instrumento.  A música era o alento para o viver sofrido.
           O articulista continua: “Mais de três décadas se passaram para que Zabé começasse a ver  vida e obra reconhecidas, a romper as fronteiras do mundo. Em 2009, ganhou o Prêmio da Música Brasileira ( antigo Prêmio Tim), um dos mais importantes da categoria no País,  ao receber a estatueta de Revelação do Ano, com CD Bom Todo, lançado dois  anos antes.  Foi aplaudida de pé por Maria Bethânia, Milton Nascimento e Elba Ramalho, aclamada como vencedora. Músicas como Limoeiro, Balaio da Onça e Borborema revelavam ao Brasil um pouco do universo da pifeira e do imaginário musical do interior do Nordeste”.
           Pedro Paulo  Carneiro fez um documentário sobre o Mundo Encantado de Zabé da Loca.  A pifeira semeou esperança no sertão. Desde 2008,  há um belo projeto para crianças,  que aprendem a tocar pífano,  caixa,  zabumba,  prato e a marcar passos da mazurca, dança tradicional que estava desaparecendo na região.  São mais de oitenta crianças, as aulas acontecem  nos arredores da casa de Zabé da Loca.  O Governo ajuda um pouco e Zabé ganha algum          dinheiro com seus shows. Desde que recebeu o título Mestres das Artes,  recebe dois salários mínimos mensais, verba destinada a figuras importantes da cultura popular paraibana. JCF esclarece ainda: Apesar dos poucos recursos, uma das conquistas do citado projeto é a banda mirim, formada por cinco jovens entre 13 e 15 anos. Eles já se apresentaram na região e sonham alto.
           Em um mundo globalizado repleto de falsos valores artísticos, glorificados pela mídia, Zabé da Loca é uma figura excelsa. Fisicamente miúda, o rosto, um mar de rugas. E seu pífano,  instrumento mágico,  é um semeador de esperança. De onde virá tanta força e beleza,  dessa criaturinha iluminada? Ela é um poema de Deus.                                       
                                                        

domingo, 10 de junho de 2012


FLASHES

QUADRO I
         Ela veio vindo pelo longo corredor. Eu a reconheci. Trinta anos a mais. Sofrimento e preocupação na face triste. Estava com o filho no Hospital. Estranhamente, atrás da figura em primeiro plano, vinha outra, em um magnífico vestido verde-cana, com decote amplo, aureolado de plumas. Ela valsava pelo salão iluminado, nos braços do marido. Ele, esguio e elegante, em seu smoking vinho, guiava-a em rodopios pelo salão. Quadro perfeito harmonizando com a música bela, as luzes.  O ambiente alegre contagiava. Momento inesquecível. De repente cessou a música, apagaram-se as luzes e diante de mim ficou apenas a mãe preocupada, infeliz.
         Nunca a transitoriedade da vida me pareceu tão evidente. Os versos de Cassiano Ricardo soaram como uma profecia:  “No momento em que se nasce,/ já se começa a morrer”. A grande lição fatídica da inexorabilidade.

QUADRO ll
         Imagine a manhã fresca e azul, com um céu opalino. Tudo inspirando um belo dia. Entro no quarto de minha mãe e paro estarrecida. Ela estava imóvel, respirando apenas. Foi feito tudo para acordá-la. Em vão. Aferimos a pressão. Muito baixa. Pareceu-nos que ela estava meio febril. Meia hora depois, a Ambulância veio buscá-la. Hospital, sala de emergência, exames, raios-x. Ela estava com uma infecção urinária grave. Diante do quadro, o médico resolveu, por segurança, interná-la na UTI Geral.
         Durante três horas fiquei na Sala de Espera, aguardando notícias. Visitas só às 16:30h. Fui tomada de grande tristeza pelo inesperado. Ela estava tão bem na véspera. A vida pareceu-me um jogo perigoso, sem regras fixas, quando tudo pode acontecer.
         Ao meu lado, em cadeira de rodas, um homem idoso, bonito ainda, muito triste, aguardava ser atendido. As filhas, solícitas, perguntaram-lhe se queria algo, estava com fome ou frio. Ele nada respondia, alheio, com um rosto de pedra. Senti que ele vislumbrava a seriedade do momento. Era chegada a hora do acerto de contas pelos anos vividos. A idade sempre cobra em hora inesperada. E sem direito a reclamações, entrada na justiça. É sempre uma situação inegociável.

QUADRO III
         Melancólica, alma cinza, ambiente pesado.  Ao redor, dor e preocupação, cada um com sua cruz. Foi aí que uma mulher simpática, jovem ainda, saudável e sorridente, fez-me um pedido inusitado: pode tomar conta de meu bebê? Vou lá dentro pegar uma receita... Aceitei, com o coração aos pulos, diante da criança linda que ela me entregou. Anjo dormindo.
         Quando ela voltou, conversamos. Rose, seu nome, e sua história incrível. Pedro, o garoto de onze meses, era seu quinto filho. Mas tinha oito. Adotara três sobrinhas. O irmão desnaturado abandonara mulher e as três filhas, em uma longínqua cidade de Goiás. Passaram até fome. Rose, que morava em uma chácara espaçosa e cheia de verde, construiu uma casinha para a nova família. Comprou uma mesa de três metros. O café da manhã e as refeições eram pura alegria. Só Deus entende como o marido e ela davam conta. As crianças frequentavam escola, a cunhada ajudava na lida. Tudo corria bem.
         Impressionou-me a simplicidade como Rose encarava os fatos, com uma generosidade sem alarde. Rose, uma história, sua bondade, era um antídoto contra as mazelas do mundo. A vida podia ser mágica. O autor do roteiro de nossa existência é um grande artista que entremeia tristezas, alegrias e os finais são sempre inesperados. Tudo faz parte da Grande Peça.

QUADRO IV
         A Grande Lição: neste mundo bizarro  há um grupo do Mal, capitaneado por Lúcifer, que conquista seus asseclas pela falta de caráter, pelos vícios e a ambição. Do outro lado, um exército diferente, talvez abençoado por Madre Tereza de Calcutá e outros santos.  No conto A Igreja do Diabo, quando o Demônio se frustra, porque  não consegue entender os homens,  Deus, sabedoria infinita,  esclarece que o absurdo e a incongruência fazem parte da essência humana. Altruísmo e egoísmo, amor e maldade, tudo muito misturado. A opção de se engajar no primeiro ou no segundo exército, depende de que? Mistério maior. De novo é um grande poeta, Fernando Pessoa, que me responde: “Não procures, nem creias. Tudo é oculto”.

terça-feira, 5 de junho de 2012


EM PLENA MADRUGADA

            Nunca duvidei que temos um Anjo da Guarda. O meu é atento e amigo. Desde muito jovem, tive provas de que ele me dava avisos, até me tirava de possíveis enroscadas que, sem sua ajuda, aconteceriam fatidicamente.
            Depois, na idade madura, percebi algo insólito. Ele não só me avisava silenciosamente, mensagens vinham como intuições, mas, certa vez, falou-me a viva voz: “Vá resolver isto agora, antes que seja tarde!”. Fui e de fato era o Dia D, para evitar um grande problema.
            De tempos para cá, ele ficou silencioso, tive a impressão que ele se afastara. Anjo da Guarda tira férias? Em uma madrugada recente, às três horas da manhã, acordei em estado de grande lucidez e um problema me veio à cabeça. Durante duas horas analisei-o, pesei prós e contras e a solução veio, clara, simples e eficaz, como uma lição bem dada. Rezei agradecendo e após, adormeci profundamente.
            Sempre fui meio cética diante de verdades místicas. A fé em Deus não. Ele reina poderoso. O entusiasmo pela figura de Cristo é enorme, sua beleza, integridade, capacidade de doação, capaz de morrer pelos pecados alheios, dando oportunidade de salvação aos piores pecadores. O que vai além disso é cipoal cerrado, névoa densa, fog.
            Há pessoas assinaladas. Ou ingênuas? Têm uma fé de carvoeiro, forte, inabalável. A minha é tênue, fraca, muito humana, sujeita a lapsos e quedas. Dificuldade de aceitar os chamados desígnios de Deus, quando me parecem muito trágicos.
            Foi um bálsamo quando descobri, na Bíblia, livro que leio sempre, embora não aceite a bibliomancia, a figura de Habacuc, profeta questionador, que interpela Deus, quando acha que os Seus desígnios são terríveis. Eu também cheguei a “brigar” com Ele, quando grandes desgraças se abateram sobre mim.
            Assim, criatura imperfeita, espiritualista, mas repleta de dúvidas, sempre me atraíram as questões metafísicas. Certa vez, dando aula na Faculdade, percebi que uma aluna seguia, boquiaberta,  meus movimentos, na lousa. Perguntei-lhe qual a razão do espanto. Ela respondeu que havia um espírito de luz, que me seguia, de uma lado para o outro, na classe. “Espírito de que cor?”, perguntei-lhe, brincando. “Azul!”, respondeu ela muito séria.  Na realidade, gostei da ideia. Mesmo sem acreditar muito, era belo saber-se seguida por um ser luminoso.
            É assim a vida. O concreto, palpável nos rodeia. E os mistérios? Existirão? Lembro-me então da teoria francesa, que o mundo é um templo rodeado por mistérios indevassáveis. De vez em quando, o homem capta, em um sussurro, alguma mensagem, parte deles.
            Meu Anjo da Guarda é um mensageiro particular? Conforta-me a possibilidade de sua existência, neste complexo mundo. Continuo mais Habacuc que Jó, Tenho muita dificuldade de aceitar , humildemente , o que me acontece. Gosto de pensar, analisar, tentar entender. Coincidências existem? De quem a culpa, quando desgraças desabam sobre nós, ou na nossa história o script é mudado?
            Assim, racional, mas sempre com grandes dúvidas, prefiro a via do meio e adotar uma filosofia parecida com a de Cervantes. Não há determinismo, nem destino. Mas que os mistérios existem, existem.