sábado, 30 de março de 2013

A FÁBULA DAS APTIDÕES



A FÁBULA DAS APTIDÕES

         A Fábula é um gênero literário aparentemente simples, um apólogo ou uma narrativa alegórica em prosa ou em verso, da qual se tira uma lição de moral.
         Esopo (grego, VI a.C) e Fedro (latino, 15 a.C.- 50 d.C.) foram recriados magistralmente, em verso, pelo imortal La Fontaine. quem, de forma inocente, ache que a Fábula é um gênero literário infanto-juvenil, historinhas para criança. Ledo engano! Mesmo que as personagens sejam animais, é uma narrativa sobre os seres humanos, com morais sábias, profundas e universais. Para comprovar isto, basta reler, entre outras, as fábulas ¨Os animais doentes de peste¨ ou ¨A jovem viúva¨, de La Fontaine, que demonstram respectivamente que de acordo com sua posição social você será julgado e que toda dor é efêmera.
         Há uma fábula moderna de autor desconhecido, que eu intitularia ¨A Fábula das Aptidões¨. Sua temática detecta um problema sério e eterno: a Escola distante da realidade. O texto, conotativamente, é uma lição preciosa.
         A Fábula é rica de significados. Dedico-a aos Professores para uma meditação. Espero que leiam o texto no nível mais profundo, captando seu significado maior. Talvez se possa entender melhor uma das razões precípuas entre as complexas causas da atualmente tão preocupante e discutida falência do ensino. Segue abaixo a parábola para reflexão.
         Certa vez os animais resolveram preparar seus filhos para enfrentarem as dificuldades do mundo atual e, por isso, organizaram uma escola. Adotaram um currículo prático que constava de corrida, escalar, natação e voo. Para facilitar o ensino, todos os alunos deveriam aprender todas as matérias.
         O pato, exímio em natação (melhor mesmo que o professor), conseguiu notas regulares em voo, mas era aluno fraco em corrida e escalar. Para compensar esta fraqueza, ficava retido na escola todo dia, fazendo exercícios extras. De tanto treinar corrida ficou com os pés terrivelmente esfolados e, por isso, não conseguiu mais nadar como antes. Entretanto, como o sistema de promoção era a média aritmética das notas nos vários cursos, ele conseguiu ser um aluno sofrível e ninguém se preocupou com o caso do pobre pato.
         O coelho era o melhor aluno no curso de corrida, mas sofreu tremendamente e acabou com esgotamento nervoso, de tanto tentar a natação.
         O esquilo subia sempre com rapidez e conseguia belas notas no curso de escalar, mas ficou frustrado no voo, pois o professor obrigava-o a voar de baixo para cima e ele insistia em usar os seus métodos, isto é, em subir nas árvores e voar de lá para o chão. Ele teve que se esforçar tanto em natação, que acabou por passar com nota mínima em escalar, saindo-se mediocremente em corrida.
         A águia foi uma criança problema, severamente castigada desde o princípio do curso, porque usava métodos exclusivos dela, para atravessar o rio ou subir nas árvores. No fim do ano, uma águia anormal, que tinha nadadeiras, conseguiu a melhor média em todos os cursos e foi a oradora da turma.
         Os ratos e os cães de caça não entraram na escola porque a Administração se recusou a incluir duas matérias que eles julgavam importantes, como escavar tocas e escolher esconderijos. Acabaram por abrir uma escola particular junto com as marmotas e, desde o princípio, conseguiram grande sucesso.
        
        

         

RABISCOS NA ROÇA


RABISCOS NA ROÇA

Conheci Nilton Chiaretti há muitos anos, quando ele era um adolescente. Depois, nunca mais tive notícias dele. Veio a vida, cada um no seu caminho. Eis que, há pouco tempo, tive uma grande surpresa. Nilton, hoje um homem maduro, mandou-me um e-mail dizendo que gostava de escrever. Enviou-me vários poemas para minha avaliação.
Foi muito agradável. Lendo-o, lembrei-me do grande Manoel de Barros. Não é uma comparação, todavia ambos amam a Natureza e brincam com a semântica, com uma liberdade linguística notável e criativa. Outros poemas foram surgindo, encantando-me sempre.
            Aí aconteceu.          Dia 29 de janeiro de 2013, ele lançou seu livro             Rabiscos na Roça (Edição do Autor, São Paulo). Aos poucos fui conhecendo a fonte de tanta sensibilidade. Nilton é músico, nasceu em Jurucê, filho e neto de lavradores. Na infância teve, pois, contato com o campo e em 2000 regressou à vida campestre, como pequeno produtor rural, na região de Batatais.
            Ora, o gênero da poesia alicerça-se na linguagem nova, como eu digo no Prólogo do seu livro. E continuo: É dar ao conteúdo uma outra roupagem, alimentada principalmente pela conotação, pelo ritmo. Pode-se perceber de maneira contundente que Nilton Chiaretti é um verdadeiro poeta. Ele classifica sua obra como poesia caipira, por várias razões. É um olhar novo para a vida do campo, seus hábitos, bichos, plantas, sentimentos, sonhos.
            Fortemente telúrico, nosso Poeta, como todo talento verdadeiro, apresenta características muito suas. A principal é a liberdade da linguagem. Surge um festival de neologismos: Palavrear, avoar, aventar, luou, enluada, embandeiradas. Ele brinca com os verbos e às vezes usa, com liberdade, a linguagem coloquial.
            Ainda do Prólogo: Lendo alguns poemas de N.C., experimento a impressão de que ele tem uma visão transformadora, com uma pureza intocada, que o faz ver mais longe, na essência das coisas. Nos seus temas variados, na descrição da vida e dos hábitos do campo, descobre-se um mundo mágico, às vezes através de uma visão microscópica enriquecida de cores e cheiros, em belas sinestesias.
            Nilton Chiaretti, em seus poemas, emprega uma linguagem figurada riquíssima, repleta de sinestesias, hipérboles e personificações. Seus neologismos são abundantes. Usa, deliberadamente, as corruptelas “   prá”, “pro”  , que realçam o coloquialismo, mas também há textos filosóficos e emprega termos eruditos, como “    síncrono” (pág. 26). O lirismo e o erotismo surgem com muita delicadeza, assim como algumas pitadas de ironia
            Sem exagero, às vezes sua linguagem lembra a de Guimarães Rosa. Há uma grande riqueza e comparações, histórias de amor, temas do dia-a-dia do campo, vários poemas narrativos, como Céu (pág.82), deliciosa estória metafísica. No último poema do livro Rabiscos na Roça, há uma alusão ao   Autopsicografia, de Fernando Pessoa; Nilton usa então a figura da preterição. É uma declaração de amor à sua verdadeira musa.  Ele e o famoso autor do Cancioneiro inspiram-se nas poesias líricas medievais, portuguesas e espanholas. Nessa tradição poética há grande realce do ritmo e da métrica; há tanta harmonia, que são verdadeiras letras de música.
            Poder-se-ia ainda enfatizar a beleza no fechamento perfeito da obra de Nilton Chiaretti, assim como nos versos famosos do grande bardo português. Os dois poemas falam do porquê se escreve e da inspiração, de sua cosmovisão e da visão de mundo dos dois Poetas. 

                                        CONFITEOR
                      
          De um conciliábulo insólito entre Deus e o Diabo, devo ter surgido. Só assim me entendo: sou um estranho animal maldito, fugido de algum Apocalipse de autor ignorado. Só oscilações e incoerências, feita de répteis e pássaros: o rastejar  repete-se continuamente, do voar não se prescinde. A execranda dualidade reflete-se no dia-a-dia, com projeções atávicas. Sou sempre o mesmo simulacro, carbono, um “bit” do grande computador da Criação, que se repete sempiternamente, preso a estruturas e limitações primevas. Para dar-me a sensação de liberdade, criou-se o mito do livre arbítrio: minhas dúvidas constantes, meus infernos repetidos me dizem que nem as grandes quedas ensinam a optar.  A escolha é sempre cega e precária. Os resultados funestos. Quem não aceitar minhas palavras, conte-me de que barro é feito: o meu é podre e perecível. A porta da saída é sempre a morte; o prêmio, a velhice; a glória, uma experiência tardia e estéril que, adquirida, não serve mais para nada, o espetáculo acabou.
          Fala-se num Deus lá em cima, cego, mudo, surdo e de mau gosto. Basta ver-lhe a obra. Dizem que Ele a fez. Ou então, a Divina Presença cansou-se da monarquia e exilou-se. E me perdi de vez, numa democracia inútil.
          Reorganizo as ideias. Parto de afirmações dos otimistas, inocentes que sofismam. Deve haver algo de bom neste macaco glabro, bípede, sem asas, que ainda ousa sonhar. Nós todos somos assim. A incongruência exaspera. Como renasce a esperança se conheço a outra face, as patas descuidadas, as mãos em acicate, o bisturi da língua?
          No entanto, ela teima, volta, repete-se com a intermitência da malária. Bumerangue. Escorraço-a como a um bicho pestilento: não desconheço o perigo do contágio. E como! Mas ela se insinua, serpente, animal ferino e se aninha em meu ser. Tomada, sentindo-lhe as unhas na garganta, o peso no estômago, a cabeça se perde, enxameando-se de desejos, num alude de sonhos. E eu, racional, ciente, veterana escaldada, íntima da dor e dos batismos de fogo, ouso ainda acreditar:
                        Na fidelidade, apesar das traições diárias;
                        No amor, mesmo com todas suas quedas;
                        No reinício, depois de tantos finais;
                        No ganhar, quando o mundo todo é um perder;
                        No construir, embora o homem seja  destruição;            No experimentar, ainda que todos os caminhos                        acabem em abismos;
                        No riso, diante de tanto esgar;
                        Na amizade, quando quem reina é a hipocrisia;
                         Na ternura, posto que toda pureza foi
                        conspurcada;
                         Na paz, em eterno tempo de guerra e de fome.
          E me flagelo, arranho, rasgo as carnes, diante de minhas lutas que se conflitam, maldades mancomunadas, pactos rompidos, conluios, acomodamentos rançosos, concessões letais, aceitações, degenerescências. E eu, de pé, agarrada à vida  como uma desconcertante árvore de raiz podre, recomeçando outra vez, deitando rebentos continuados da tragicomédia, quase sempre degenerada em farsa, firme, produtora, diretora, atriz coadjuvante, palco, cenário.
                        Minha grande arma: a teima.
                        Meu dínamo: o ódio à efemeridade.
                        Minha grandiosidade: a eternidade
                        de minha queda.

O SENHOR DAS MATEMÁTICAS


O SENHOR DAS MATEMÁTICAS

         Quando recebi o livro O Senhor das Matemáticas  fiquei meio triste. Eu queria ler mais poemas de Maria Carpi. Sua poesia me fascina. Ao iniciar a leitura, um susto. Que gênero era aquele? Quanta poesia, da mais pura, naquela pretensa prosa!
Dificílimo seria classificar os textos, que versam muito sobre os sonhos, sensações, sentimentos; episódios externos e internos. É que os olhos de Maria Carpi têm um filtro mágico que vê além de. Sua realidade jamais é a nossa, percebida só em primeiro plano.
Ao terminar o livro, li na contracapa, as palavras de Ivo Barroso, escritor e tradutor, nascido em Ervália, Minas Gerais, homem do mundo, cosmopolita, erudito, poeta: “Outro lance inédito é escrever sobre sonhos, não os sonhos que idealizamos, mas sonhos realmente sonhados, com sua nitidez ou seu enuviamento próprios, sonhos com ou sem sentido, numa narrativa-confissão quase psicana-lírica. Você consegue transformar em realidade legível, quase palpável essa “matéria de que são feitos os nossos sonhos”.
Realmente são duas características marcantes do livro: uma análise criteriosa, mais poética que criteriosa, do material dos sonhos, sem muita preocupação com seu conteúdo manifesto ou latente. Maria Carpi passeia pelos bastidores do seu Inconsciente, perscruta seus porões com uma curiosidade lírica. Freud tenta desvendar o Inconsciente humano, desenvolve um método para conseguir acesso ao ID. Maria Carpi habita-o, transforma-o em puro lirismo. Se Freud pudesse ter lido O Senhor das Matemáticas, rasgaria sua obra A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1899 e enlouqueceria de lirismo. Viraria poeta.
Interpretar os sonhos de Maria Carpi é um Décimo Terceiro Trabalho de Hércules, pela riqueza dos conteúdos manifestos e/ou latentes, pela sua complexidade. Ungida de religiosidade, a autora habita os textos bíblicos, com familiaridade, adentra neles, participa em narrativas na primeira pessoa, como no episódio das Bodas de Canaã (pág. 110, 111). Ela chega à Santificação divina do S       onho: “Ao sétimo dia, o sonho viu que o mundo era bom e descansou”. A religiosidade permeia em todo o livro, santificando-o.
         Outro belo exemplo dessa religiosidade é como Maria Carpi aborda o degastado tema Mãe; ela o faz com originalidade: “          Mãe dá-se em partilha e comunhão. Certa vez, em sonhos, sentei-me à mesa e tudo desapareceu.         Somente minha mãe a si própria distribuía. Ela era as espécies do pão e do vinho” (pág. 59).
Em meio à prosa, surge um belo poema, repetindo mais uma vez, a Profissão de Fé dos Poetas:     “A palavra sempre foi-me sobejo. /Avaro sou apenas de meu silêncio “(Pág. 22). Que mulher magnífica é esta, que se casou com a Palavra,  gera Poesias e as amamenta? E suas magníficas metáforas: “E senti uma grande abertura no tempo: o Improvável assinalou-me com a estrela na fronte, como a um cedro. Entro em ervas”(pág. 53).
Ivo Barroso diz que o poema mais belo do livro está nas páginas 120 e 121. Realmente o verso final é um achado: “Eu não me desculpo de morrer sem avisar”.     Mas a afirmativa é duvidosa. Difícil é escolher entre todos os poemas já escritos por M.C., nesse e em outros livros seus e dizer qual é o melhor, o mais perfeito.  Sua sensibilidade exuberante atrai e fascina.   
Maria Carpi é uma criatura feita de poesia pura

CARTA ABERTA AOS HOMENS


CARTA ABERTA AOS HOMENS
  
                                           Pelo Dia Internacional da Mulher, dia 8 de março,                                                    bizarramente, aqui vai um recado aos homens.

         Perdão, senhores meus, se ouso adentrar-me em vosso feudo, mas em verdade, preciso falar-vos.
         Queria lembrar-vos, caso o tenhais esquecido, do começo, quando Deus, bem intencionado, deu a Adão uma companheira. Reparai que foi presente, coisa sempre ligada a muita ternura e amor. E mais: se vós lerdes com atenção o livro Gênesis, podereis talvez realçar certas minúcias que vossos descuidados olhos possam ter perdido. Senão vejamos: Eva foi criada enquanto Adão dormia; ela veio, portanto, da paz, da tranquilidade  do homem – consequentemente, só pode ser um fruto de essência doce, amante do silêncio e do tranquilo. Deus tirou-a da costela, do lado, como se, bom estratégico, delimitasse já o lugar do companheiro: nem acima, nem abaixo, mas ao lado, ao redor, junto. Interessante o pormenor bíblico: “... e fechou com carne o seu lugar”. Por acaso achais que Deus, sapiência infinita, perderia tempo em retoques inúteis? Seria Ele, apenas, um perfeccionista preocupado com sofisticada estética? Parece-me a mim, por lógica, que todo gesto divino seja muito expressivo e contundente: a vinda, a chegada da mulher, a descoberta, têm que ser aliadas à falta de dores e cicatrizes. Ela é, pois, o próprio antônimo do que seja sofrimento, ausência de beleza, remendo, coisa mal feita, asperezas. Seu reino é o belo, o doce, o liso, o perfeito, o macio.
Pensastes já em vossas companheiras, biblicamente? Algum dia parastes esta faina tresloucada e insana de trabalhos e conquistas para, com sabedoria, pensar no conceito da transubstanciação? Vede: “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne” (Gênesis, II, v. 23). A partir daí, homem e mulher foram (ou deveriam ter sido) UM. Analisai bem. Cada vez que vós tendes uma dor, a companheira que vos ama, sofre; vosso sorriso é sua alegria, chorais (se chorais), uma lágrima é dela. No amor não há EU: é um eterno NÓS, mesmo em se mantendo a individualidade.
“Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher” (Gênesis, II, 24). Reparai. O homem é quem deixa. Sempre cabe a ele o gesto, a partida, o ato e isso pressupõe o ousar, o perder, o fazer.
Assim, a receita era boa, os ingredientes certos, os atores bem escolhidos, o cenário perfeito. De quem a culpa, se a Peça fracassou? Muito cômodo jogar a responsabilidade sobre uma personagem secundária, coadjuvante de terceira, este pobre demônio travestido de serpente. Onde começou a separação? Por que os caminhos se divergiram, confundiram-se as línguas, desviaram-se os objetivos, deterioraram-se os desejos? Inventaram-se cadeias, as proibições, os tabus, surgiram ideias de posse, de mando, bizarras rotulações – dono, senhor – desvirtuando por completo as conotações primeiras de marido, esposo.
Voltando às origens, em busca da felicidade perdida, não se deveriam usar termos acidentais: não marido / esposo / amante / comborço / companheiro, mas tão somente os dois nomes essenciais, que dizem tudo: MEU HOMEM, MINHA MULHER. E se quisesse dar mais expressividade, HOMEM MEU, MULHER MINHA. Não achais que a simplificação poderia resolver tão angustiantes problemas milenares? Vós reclamais que as mulheres perderam, de Eva, a doçura edênica, os trejeitos de gueixa, despiram-se, para sempre, dos seus véus poéticos, que lhes davam ares de pomba, sutilezas de gazelas e levezas de borboletas. Cortaram os cabelos, puseram-se calças compridas, montaram nos automóveis, embrenharam-se na política, na administração e andam agora, por aí, até com feros cartazes, apregoando heresias contra o inimigo macho. Sim. Fizeram isto. Mas, pensais que são felizes assim? Falai com doçura a cada mulher, cuidai que vossas grandes mãos desastradas e afoitas aprendam de novo a lição da carícia, ensinai aos vossos lábios roçares veludosos e não ávidas mordidas, amaciai a voz, abrandai os mandos, sede menos senhores e mais companheiros, tentai ser fiéis (na medida do possível), usai o sexo como ritual maior e não sórdida orgia e vereis o milagre.
Não é pedir muito que experimenteis a receita, que vai repleta de intenções medianeiras e os augúrios mais honestos. E talvez possais vencer a mais bela das batalhas, reconquistando ad aeternum, o vosso éden e a companheira vossa.

         

DA AMBIÇÃO


DA AMBIÇÃO
        

A ambição é um monstro voraz, de fome tantálica. Jamais seu apetite é saciado. Ela é onívora, come de tudo. Ilógica, irracional. O portador desse Moloch (hospedeiro?) tem uma filosofia incongruente e burra. Vê o homem como um ser eterno, um conquistador que levará com ele todos seus despojos de guerra. Partirá para o além (viagem e lugar duvidosos) com tudo que conquistou – riqueza, poder – e será recebido (por quem?) na Ala Vip, com glórias. É um homem realizado, cumpriu a grande missão: TER, acrescentar, aumentar, enriquecer.
         Parece impossível ser tão ignorante, mas a choldra dos ambiciosos viceja em todos os cantos do mundo. É algo endêmico na História e intrínseco aos seres humanos. Ela existe desde sempre. Faz parte da essência dos homens, desde o primeiro barro.    Deus deveria saber disso. Por que não aperfeiçoou a receita e eliminou tal falha?
         A realidade, contudo, é simples: quem pegou tal peste, foi inoculado por esse vírus, norteia toda sua vida para o adquirir, comprar, dobrar seu capital. Se tiver êxito e viver muito, aos 60, 70 anos será rico, poderoso, porque nesse mundo insano e perverso, o dinheiro sempre foi a chave mestra que abre todas as portas. Porém, um dia, inexoravelmente, chegará a hora de partir. Midas irá nu, sem conta bancária nas Ilhas Caimã ou Suíça. Partirá como chegou. Sozinho e desinformado. Quando o mistério das inúmeras verdades de fé for desvendado, não haverá mais regalias, conforto, status. Todos serão, finalmente, iguais perante a Lei Maior; seu estatuto, parágrafos e itens farão justiça.
         No famoso conto “Igreja do Diabo”, Machado de Assis abole a diferença entre vícios e virtudes; tudo é relativo. A ambição pode ser benévola ou maligna; a primeira é vetor que faz o homem crescer, enriquece sua vida, propicia benesses, faz o  bem. A segunda abastarda-o, torna-o vil, porque o vício maldito não conhece limites, só finalidades. O axioma famoso de Maquiavel, os fins justificam os meios, é o lema deste exército funesto, que ignora princípios morais e a Ética.
         Mestres, filósofos já abordaram esse tema, denunciaram a inversão de valores, todavia os ambiciosos fazem ouvidos moucos diante dos sábios ensinamentos. Eles gostam de pertencer ao time dos vencedores, não importa a partida que se disputa, é sempre um fracassado quem não enriqueceu. O binômio vitória/fortuna é inseparável. Veja-se o alerta do grande Pietro Aretino: “A ambição é o estrume da glória”. La Bruyère fala do refém desse mal: “O escravo tem um amo só, o ambicioso tem tantos quantos são úteis à sua fortuna”.
         Os poetas são também profetas; denunciam: Quando a Indesejada das Gentes chegar... Manoel Bandeira confessa, com clarividência e humildade: “Encontrará lavrado o campo, a casa limpa/A mesa posta,/ Com cada coisa em seu lugar”. É preciso analisar, com argúcia e precaução, os significados desses versos. Eles podem ser muito mais complexos e metafísicos. Cautela e precaução!
         Você amanhou a terra, plantou boas sementes? A casa está preparada, a mesa posta poderá receber convidados dignos? E a questão mais séria, mais preocupante: Deixou um legado de boas ações? Preparado para a Grande Viagem?



A OUSADIA


A OUSADIA

         A ousadia é maior que a coragem; é uma virtude instantânea, que pode surgir de uma necessidade, de um impasse, de um repto. A ousadia faz parte da essência, do ser, é dom genético. O audaz nasce assim, rebelde, impetuoso, com medidas outras que os simples mortais. Os ousados estão um pouco acima dos homens e um degrau abaixo dos deuses. No sangue dos audaciosos corre uma seiva mais rica e o arrojo é seu cotidiano. O ousado é um demiurgo – ele cria do nada – de simples mortal, ele se alça, ascende, sobe. O ousado não conhece a verticalidade dos abismos, seu caminho é a ascese da conquista. Sinônimos de ousado: corajoso, intimorato, rebelde, temerário, arrojado, heróico, audaz. Seus antônimos: cético, pessimista, inseguro, duvidoso, descrente, medroso, covarde.
         O audacioso é um taumaturgo, um fazedor de milagres: ele modifica, de maneira positiva, o ambiente por onde ele passa; ele contagia, agiliza, dinamiza, crê nos frutos quando suas mãos ainda amanham a terra.
         O limite do audacioso é o azul, o infinito, as galáxias. Ele não se pertence; seu espírito não está preso em uma cadeia de carne. Ele se violenta. Ele se ultrapassa.
         O audacioso é uma mistura de sonhador, visionário, idealista e quixotesco; mas sempre em ritmo acelerado, com asas prontas para o voo.
         O audaz traz no sangue um pouco de loucura, de heroísmo, de desobediência: ele desconhece regras, ignora códigos, não nasceu para o aprisco, mas para o mistério dos vales e das montanhas longínquas e desconhecidas.
         O audacioso desconhece a palavra regressão, não olha para trás: sua meta é para cima, para o alto. Ele é um vetor direcionado para as grandes realizações. Quando se quebram asas, se destroem sonhos, quando os moinhos de vento são fantasmas concretos, o ousado não para a fim de se reabastecer, pois em um átimo, ele já reaprendeu a voar, substituiu os sonhos, assinou contrato com outras batalhas.
         O ousado não ama, não é terno, não é lírico. Ele tem paixões avassaladoras, corre fogo nas suas veias, seus sentimentos provocam queimaduras de terceiro grau e deixam cicatrizes eternas.
         O pai dos ousados é Prometeu, não Sísifo.  O primeiro foi capaz de ousar contra os deuses, deu o fogo aos homens, é quase o seu criador, sem levar em conta o castigo futuro: ignorou o Cáucaso, as correntes, a dor, venceu a águia, seu carrasco. Sísifo é renitente, esforçado, teimoso, pertinaz, mas falta-lhe o fogo da audácia. É triste que seja o segundo e não o primeiro, o símbolo do ser humano. O segundo é a regra; o primeiro é a exceção. O audacioso é um prêmio, um capricho, um requinte de Deus.
         Os poetas veem e percebem tudo. São magos, bruxos, gurus, criaturas encantadas. Fernando Pessoa disse: “Tudo é ousado a quem a nada se atreve”.  Há os que ousam e os que nem se atrevem, pois entre ousadia e atrevimento há uma escala regressiva. A vida é uma eterna ousadia. Há os que negam a ela o mais ínfimo dos atrevimentos.  Quem ousa é uma raça de assinalados. O atrever-se é uma concessão máxima de quem não sabe ousar.
         O Fiat de Deus foi uma ousadia. A rebeldia de Lúcifer, um atrevimento. Da insolência luciferiana nasceram todos os infernos, hoje batizados com os mais diversos rótulos. À ousadia sobra grandeza, ao atrevimento falta. Quando Deus criou os céus e a terra, ELE OUSOU. Após, o Senhor moldou barro, surgiu o Homem. Rezam as Escrituras que o Senhor soprou sobre o barro e deu o espírito à sua criatura. Este foi um sopro voluntário, forte, deliberado: dele surgiram os ousados.  Depois, cansado, cheio de dúvida talvez da validade da sua obra, Ele deu um suspiro de tédio e de desencanto: deste abortaram os cautelosos, os precavidos, os cuidadosos, os inseguros, os covardes.
         Enfim, os audazes são o sonho dourado de Deus e os não ousados, os parceiros do Diabo.