terça-feira, 27 de dezembro de 2011

DA MANJEDOURA AO CONSUMISMO

DA MANJEDOURA AO CONSUMISMO

            O mês de dezembro é atípico. Em semiótica, dir-se-ia que é eufórico e não disfórico: época de alegria e festas. Houve um tempo, em minha vida, que a família começava a festejar desde o dia primeiro desse último mês do ano: passeios, festas, compras, bons vinhos, champagne.
            É preocupante o que se fez com dezembro. O Natal, por exemplo, deveria ser uma data ungida de religiosidade, orações. Todavia, o monstro do Consumismo, com sua força, transformou o Dia Santificado, em uma época, cujas vendas batem todos os recordes, para a euforia do comércio.
            Algo positivo é o aumento dos empregos temporários, possibilidade de sobrevivência. Quanto às crianças, houve uma deformação total. Para elas, é quando se ganham presentes. O Natal torna-se o mais trágico fator que demonstra as grandes diferenças socioeconômicas.  Basta comparar os presentes das várias classes sociais.
            Outro sintoma da síndrome natalina é o pantagruelismo, quando se preocupa em beber e comer bem, e no exagero da gula, dá-se algo bizarro. Como nosso Natal é alicerçado em lendas europeias, tempo de muito frio, neve, renas, Papai Noel descendo por possíveis chaminés, acontece algo esdrúxulo.
            O Natal, no Brasil, é no verão, com muito calor e alguma chuva. Mesmo assim, as lautas ceias continuam ao estilo europeu, com castanhas, massas, vinhos, caldos quentes e chocolate. Como rever isto? A reunião familiar é algo positivo, mas enfatizando o amor, a união, a religiosidade.
            Quando o final do ano vai chegando, deveria também surgir a necessidade de fechar para balanço, no sentido conotativo. Antes do Novo Ano, em recolhimento, fazer uma auto-análise dos erros e acertos, preparando-se pra o ano seguinte. Em grandes metrópoles, tem-se o hábito, na passagem de ano, de picar papéis e atirá-los do alto dos prédios.
            Ora, o ato tem um significado diverso: expurgar o acessório, limpar a alma das tolices cometidas expulsar sentimentos de ódio, de tristeza e de falimento, pensamentos pessimistas, inseguranças, tristezas. Entrar no ano seguinte com o pé direito e tudo que a metáfora da expressão inspira: coragem, otimismo, alegria, fé, sonhos, muitos sonhos.
            Os que se despedem do Ano Velho e entram no Novo com as mesmas fraquezas, com a lama ainda vestida com os farrapos da tristeza, das antigas frustrações, os eternos medos e a descrença, não podem esperar muito. Será, de novo, uma dramática e morosa descida aos infernos.
            Assim, as festas natalinas, os réveillons, tudo é motivo de alegria, porque lembram renascer, recomeçar, vencer barreiras. Imagine o Primeiro do Ano com uma faixa, onde estão os dizeres: Vida Nova! É um Templo de Possibilidades, que tem no umbral, não o aviso do inferno de Dante: “Lasciate ogni speranza voi ch’entrate” (Deixai toda esperança, vós que entrais) , mas uma mensagem de mudança, de vida nova.
            Poder-se-ia até imaginar o Templo do Ano Novo, com as seguintes palavras no limiar de sua grande porta: “Deixai toda a infelicidade, que, porventura tivestes”. É só dar, com firmeza, um passo, munido das mais firmes intenções e uma nova era recomeçará.

           

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

DO QUE AS MULHERES GOSTAM

DO QUE AS MULHERES GOSTAM
                                                                                                                                
                     O título é de uma deliciosa comédia de Mel Gibson. O recado aos leitores, no entanto, é sobre tema diverso. Já expus neste espaço minha opinião a respeito dos livros de auto- ajuda, uma pseudo-literatura que é mero paliativo e não leva a nada. Difícil entender, todavia, o sucesso de tais livros. Entre as explicações, as mais plausíveis são carência afetiva, baixa-estima e fragilidade intelectual.
                        Outra literatura bizarra e questionável são as revistas masculinas, que proliferam dia a dia. Interessante notar que a editora chefe e articulistas, em geral,  são mulheres que se põem a dar conselhos sobre como devem ser os homens modernos, táticas de conquista, dicas para eles se tornarem irresistíveis. É de um ridículo atroz toda receita simplista que pretende moldar os seres humanos, gostos, predileções; é um amontoado de receitas esdrúxulas. Assim, já se tem até um termo para designar o homem moderno perfeito: metrossexual, hétero sensível, delicado, sentimental, que não se envergonha de ter gostos femininos, fazer compras em Shoppings, cuidar da pele, unhas, cabelos. Raia à imbecilidade quando estipulam que o novo macho deve depilar-se, ser, por exemplo, refinado conhecedor de vinhos, um verdadeiro enólogo.
                         E as tolices continuam: o macho perfeito, século 21, procurará suavizar os instintos, ser compreensivo, gostar de diálogos sobre a relação do casal. Jamais permitir que a agressividade o domine. Incoerentemente, quanto mais estimulam que se suavize a testosterona, nos homens, dão conselhos feministas às mulheres, para que sejam guerreiras, tigresas, turbinadas, valentes, resolvidas e, se possível, até com um curso de defesa pessoal.
                          É muito estranho que também revistas femininas famosas e outras recém-lançadas aconselhem vivamente como os homens e as mulheres devem ser, rotulando-os como cyborgs. Os ingênuos e não precavidos principiam a ter preocupações se seus corpos são como se usa, modernamente, se serão atraentes, felizes em suas conquistas. Enchem-se as Academias de ginástica, faz-se poupança para aumentar os seios, empinar as nádegas, fazer lipos.
                            Essas vítimas incautas não percebem que jamais se leem conselhos sobre o cérebro, como ser mais culto, ter conversa atraente, tornar-se uma companhia agradável. Não há literatura nem cursos especializados sobre inteligência, sensibilidade, conversas cativantes, personalidades fortes e autenticidade. É a massificação das mentes, a banalização dos valores inversos.
                             Já foi dito: quando alguém surpreende o outro, acontece uma conquista. Nesse mundo globalizado, onde tudo se copia, esta jamais se concretizará, se os parâmetros forem sempre ter um corpo “sarado” e ser uma enciclopédia de conhecimentos inúteis e supérfluos, que nada têm a ver com a verdadeira essência humana.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O POEMA DE JOSÉ MARTÍ

O POEMA DE JOSÉ MARTÍ
            José Martí (1853/1895) é um poeta cubano famoso. O Mártir da Independência recebeu o epíteto, pela sua vida ativa na política, as lutas e prisões, desde muito jovem. Sua ideologia alicerçada no marxismo e leninismo tem muitos adeptos até hoje, em Cuba.
Martí dedicou-se ao estudo do Direito, obtendo o doutorado em Leis, Filosofia e Letras da Universidade de Saragoça (Espanha), em 1874. Tornou-se um grande poeta e é citado como precursor do modernismo ibero-americano. Escreveu centenas de poemas, novelas, dramas, cartas e artigos de jornal. A letra da música Guantanamera, conhecida internacionalmente, foi retirada de um poema de José Martí. Sua obra completa tem 73 volumes e em 1958/9, foi construído o Memorial de José Martí, na Plaza de La Revolución, em Havana.
Pergunta-se talvez por que se resolveu falar sobre José Martí. Na realidade, gosto muito de um poema seu, que foi declamado em um filme sobre a Revolução Cubana. O texto, que eu conheci na época da Faculdade, sempre me encantou. Se o coloco aqui em espanhol é por três motivos: a beleza da língua, sua facilidade de compreensão e para dar um voto de confiança a um projeto muito importante__ a Lei nº 11.161, de 2005, já sancionada e aos poucos sendo implantada. Trata-se do ensino obrigatório do espanhol, nas escolas; é facultativo no Fundamental e obrigatório no Ensino Médio. O comentário do poema também poderá elucidar a compreensão da língua de Cervantes:
“Cultivo uma rosa blanca / en Junio como en Enero, / para el amigo sincero / que me da su mano franca. / Y para el cruel que me arranca / el corazón com que vivo,  / cardo ni ortiga cultivo: / cultivo uma rosa blanca”. O que me encanta no poema? O lirismo, a simplicidade, o ritmo, a metáfora principal.
Cultivar “uma rosa blanca”,  de junho como em  janeiro, é valorizar  o símbolo de beleza, da pureza e da bondade; para o “amigo sincero” é algo belo, mas cultivá-la também para o inimigo, para o mau, o cruel  que lhe arranca “el corazón”, centro da vida, é uma mensagem de paz muito expressiva, um antídoto contra o ódio, a vingança. Diz o poeta para quem quer matá-lo, em várias acepções, que ele não cultiva “cardos” (espinhos) nem “ortiga” (urtiga), planta que simboliza aridez, rudeza, veneno.
Sempre tive dificuldades com o sentimento terrível do ódio. Ele só pode lançar raízes por motivos muito graves. E o pior: ele é mais nefasto para quem odeia, do que para quem é odiado. Por isso é um bumerangue e fere mais a quem o cultua. É ridículo, mas já me aconteceu de achar que odiava alguém e esquecer. Passando pelo pretenso inimigo, eu o abracei, alegre e só depois me lembrei do ódio antigo. O tempo cura todas as feridas e cicatrizes. O ódio é uma chaga da alma. Ele também passa, desaparece, esfuma-se.
Impressiona-me quem é capaz de alimentar raivas e ódios por longos anos. É um vício do espírito, ou seria do coração? Todos deviam tentar o cultivo de uma rosa branca. José Martí, o poeta, tinha uma alma excelsa. Como filósofo, legou-nos pensamentos notáveis, como o que segue abaixo: “La libertad no muere jamás de las heridas que recibe. El puñal que la hiere lleva a sus venas nueva sangre” ( A liberdade não morre jamais das feridas que recebe. O punhal que a fere leva às suas veias novo sangue.”).
                       

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A PRETENSA ERA DA COMUNICAÇÃO

A PRETENSA ERA DA COMUNICAÇÃO
            Hoje, com o desenvolvimento tecnológico, a Internet, os celulares, nossa época recebeu o discutível epíteto de Era da Comunicação. De fato, com a tecnologia, a Comunicação tornou-se mais rápida. A Televisão nos traz notícias e imagens do fato ainda acontecendo.  Tudo é célere, em um átimo. Os telefones são modernos, aparelhos quase perfeitos, a comunicação por e-mails algo prático. Mas tudo é feito através da Máquina. O Homem, sem perceber, não nota que as mensagens vão ficando cada vez mais curtas, práticas, superficiais e banalizadas.
            No Twitter, no Facebook, no Orkut há “notícias” tão idiotas, que raiam ao absurdo. É o cantor, o músico ou o jogador de futebol que noticiam sobre o que comeram, o que fizeram, quem amam, a quem odeiam. Daqui a pouco vão comentar com quem dormiram, que hora foram ao banheiro, como estavam seus gases, ou suas bexigas... E o pior é que sempre um grande público se interessa por tais vulgaridades. Processo idêntico é a atração de pessoas por programas imbecis, como o BBB. Várias vezes perguntei a alguns alunos por que viam o programa. Eles responderam que gostavam de saber da vida alheia... Não percebiam a encenação falsa, o jogo das situações esdrúxulas, as baixezas?
            Em artigo anterior eu já citara a perquirição de Anezaki Chofu (1873), suscitada por Paulo Morand, poeta, escritor e educador francês (1881/1976): “O telefone, o telégrafo, o rádio, a Internet possibilitam, a ponto de tornar inquietante, a troca rápida das comunicações. Mas que é que nós temos a comunicarmos? Cotações da Bolsa, resultados de futebol e histórias de relações sexuais. Saberá o homem resistir ao acréscimo formidável de poder de que a ciência moderna o dotou ou destruir-se-á a si mesmo manipulando-o?”. Meio profético, o grande intelectual já percebera o perigo, porque o homem acabaria por tornar-se mais superficial, apegado ao supérfluo, em detrimento do essencial.
                        Este mesmo texto denunciava que conviver muito com as Máquinas robotiza o homem, ele se coisisfica, se reifica. O Progresso tecnológico alimenta o sedentarismo e o Diabo, com sua esperteza vulpina, ensina que a Máquina é também excelente instrumento para o crime. Quem quiser argumentos é só assistir aos jornais televisivos, diariamente. O mundo moderno globalizou-se e grande parte dos seres humanos parece cópia carbonada, agindo de maneira idêntica, com os mesmos valores inversos e uma ganância por bens materiais, que acaba por ser sua perdição.
            Parece um paradoxo. Quanto mais os grupos, as gangues, a multidão se junta, maior é a solidão humana. A filosofia não é nova. Já se disse que se quiser ficar só, misture-se a uma multidão. Ela é acéfala e perigosa. Quando o assumir individual desaparece, o perigo é maior. E o grande problema é quando se usa esta pretensa união para o mal.  O Flash Mob, por exemplo, é uma chamada à multidão, para dançar, ou em nome da arte. O movimento é então algo positivo. Mas ele pode também ser usado para encontros  nefastos, brigas, desafios. Aí é coisa do Diabo.
            Enfim, o homem, cada vez mais refém da Máquina, continuará um ser solitário, infeliz e vazio, cheio de tédio, na pretensa Era da Comunicação. Ora, no início de outubro deste ano, morreu Steve Jobs, um gênio que mudou a história dos computadores e também do cinema, da música. Não se pode negar a importância da parafernália eletrônica que sua genialidade criou, fez evoluir. Mudou  o mundo sim, mas acirrou a obsessão dos aficionados por tais aparelhos. Eles se tornaram mais
reféns ainda da Máquina e do sedentarismo.
            Como evitar o exagero do uso das máquinas,  usufruir de suas benesses, sem correr o risco de depender tanto delas? Este é um dos grandes desafios modernos.

           

sábado, 3 de dezembro de 2011

MISTÉRIOS E DÚVIDAS

MISTÉRIOS E  DÚVIDAS
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Um poema francês diz que o mundo é um templo rodeado de grandes pilastras que guardam mistérios insondáveis. De vez em quando, sutilmente, algumas verdades são ciciadas, mas quase nunca ouvidas. Pergunto-me se fatos insólitos, estranhos, não seriam uma tentativa de nos elucidar a verdadeira realidade?
Lembranças bizarras e inexplicáveis às vezes incomodam, porque sempre voltam e não têm respostas. A amiga, intrigada, confidenciou-me: Quatro vezes encontrei um amigo ou amiga, que há muito não via. O primeiro, surpreendido por mim, em sua sala de trabalho, estava conturbado, estranho e explodiu, gritando que eu fechasse a porta e o deixasse só. A segunda, em um encontro casual, conversou longamente comigo, fazendo confissões íntimas e totalmente inesperadas. O terceiro, na rua, de repente, parou-me, olhou—me expressivamente com seus grandes olhos azuis, como se quisesse falar-me algo importante. Ao aproximar uma pessoa, ele se retraiu e seguiu seu caminho. E o último. Pediu-me que conversasse com ele, logo, sem muita demora. Eu não pude fazê-lo. Todos os quatro, após nosso encontro, morreram, no dia seguinte. E o mistério reinou para sempre.
E outros fatos que não se explicam? Eu dava aula em um Colégio, no terceiro andar. Âs dezoito horas, os alunos se foram e o funcionário, pensando que eu também já tinha descido, apagou todo o prédio. Antes que eu o chamasse para acender a luz, percebi, encantada, a luz forte pelo vitrô. De fora, a árvore alta, aos pés da qual, pouco tempo antes, durante um movimento de greve, Glaura, nossa colega, tivera uma síncope e morrera ali mesmo. As folhas da árvore farfalhavam agitadas, senti a impressão nítida muito forte, da presença de Glaura. Cheguei a dizer alto seu nome... Não tive medo. Pelo contrário, experimentei uma enorme alegria, como se fora escolhida para o breve contato.
 Recentemente, um amigo me contou que vivenciara uma experiência muito estranha. Ele trabalhara em um manicômio e uma noite, muito tarde, ao entrar no banheiro coletivo, todas as torneiras começaram a jorrar. Logo após, também os chuveiros abriram –se, despejando água com abundância. E ele, muito espiritualizado, sem medo, sorriu o disse alto: “Se querem brincar comigo, é bom parar!”. Ao mesmo tempo, fecharam-se as torneiras e os chuveiros. Ele me narrou isto, porque na véspera, ao adentrar no mesmo local, sentiu pequenos beliscões no braço direito. Disse-me que não se preocupou, porque se fosse no esquerdo, era mais perigoso... Não entendi a explicação e o mistério continuou para nós dois.
São tantas coisas inexplicáveis! O amigo medium, quando entrou pela primeira vez em meu apartamento. “Que delicioso perfume de rosas!”, ele exclamou. Eu, sempre meio cética, nada disse. Penso que tudo é mistério, as premonições, as telepatias. E as superstições? Não estarão alicerçadas em alguma verdade?
No fundo, até a fé. Os Livros Sagrados afirmam que é preciso crer sem comprovações. O pobre São Tomé foi repreendido, porque queria sentir algo palpável, comprovando a ressurreição do Mestre. Quantas vezes temos que acreditar, sem meter a mão nas chagas da vida? Por isso e muito mais, fico com Cervantes: Yo no creo en  brujas, pero que las hay, las hay”.
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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A LITERATURA NA POLTRONA

A LITERATURA NA POLTRONA
Acabei de ler a obra mais recente de José Castello. A Literatura na poltrona é o título e estou fascinada. São textos já publicados no mensário literário Rascunho, nas Revistas do Brasil e na Florense do Rio Grande do Sul. É um livro imprescindível para quem já escreveu ou pretende escrever um livro.

Em julho de 2011, no CORES (Congresso Regional de Escritores), José Castello veio a Ribeirão e em sua palestra enfatizou que ele não é um crítico literário. Ele escreve textos e crônicas, comentando livros. Na realidade, os especialistas em crítica literária escrevem textos complexos, impessoais, eruditos. José Castello é um escritor que comenta livros. Em textos criativos, apaixonantes, ele aborda obras que o impressionaram.

Lendo A Literatura na poltrona, com o subtítulo de Jornalismo literário em tempos instáveis, aprende-se muito sobre grandes escritores e poetas, suas angústias e suas dúvidas. Abordam-se questões como “Qual é a situação ideal para escrever?”, ou “Por que se escreve?”. Há afirmações impressionantes: “Livros que devoram pessoas. Pessoas que encontram partes preciosas de si não em outras pessoas, mas em livros. Romances e poemas que penetram, em segredo, a mente de seus leitores __ e que estragos eles fazem! Escritores que se buscam (e que se encontram!) em outros escritores.”

 Há mensagens preciosas: “Para que mais alguém lê um livro, senão para se transformar? Ler mecanicamente, por obrigação, ou para dizer que li, isto nunca me interessou” (pág. 15). Chegar de mãos vazias e encontrar um tesouro. Raramente alguém elevou tanto a importância das obras literárias.

Ler é um ato íntimo, insubstituível. Por isso, e muito mais, não se pode ler literatura como mero entretenimento. É um mergulho em regiões abissais, de onde se sai enriquecido. Se para o escritor “escrever é atravessar um inferno”, para o verdadeiro leitor, é um batismo, um insight, uma experiência única.

“Ao escritor resta, como ponto de partida, a perplexidade”.      Não existe outra maneira de escrever. É uma busca, uma procura, a tentativa de entender o mundo e a si próprio. E quando acontece o Encontro, a Comunhão entre Livro e Leitor, os grandes mistérios ficam menos assustadores, a vida parece ter mais sentido. É uma bela história de amor. Assim como pessoas, há livros inesquecíveis. Um escritor jamais está satisfeito com o que escreve. Cada livro é um parto, com dores e alegrias. E a relação entre um livro e seu leitor se assemelha à relação erótica: passa sempre por alguma sedução, a do leitor.

Todavia, o grande escritor não faz concessões. Ele não escreve para o leitor, mas para acalmar sua própria alma conturbada. Há escritores mais complexos, mais difíceis, como Franz Kafka. Ele e Clarice Lispector são exemplos de escritores que incomodam. Ninguém pode lê-los impunemente. Na poesia há também poetas duros, secos; seus poemas são lâminas afiadas. É o caso de João Cabral de Melo Neto. Cerebral, lúcido, atento, para ele o poeta “deve agir friamente, com a precisão dos engenheiros e meticulosidade dos cirurgiões. Deve escrever com o martelo e o bisturi”. Nada de lirismo. Nada de emoção.

Na prosa e na poesia, no entanto, movidos pela paixão ou guiados pelo cérebro, há algo que os torna grandes: o talento. Este não pode faltar, para que suas obras sejam dignas, de valor e consigam permanecer incólumes através dos séculos.



           

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

MUNDO ESFACELADO

MUNDO ESFACELADO
        Não é difícil fazer um esboço das características do mundo moderno. Como diz José Castello, no seu livro “A Literatura na poltrona”: “... o mundo ficou mais acelerado e mais feroz” e “mais instável e atordoante”.
            Outra característica de nossos tempos: a uniformidade e a repetição. Os seres humanos, os valores, as predileções, as maneira de agir, tudo alimenta o terror, o desamparo. É uma era suspeita, causa desconfiança, como denunciou Nathalie Sarraute, autora francesa do famoso romance “Bonjour Tristesse”.
            Os homens ficam meio padronizados, as virtude e vícios arrefecem, se bem que nosso Machado de Assis já comprovara em seu conto A Igreja do Diabo, as tênues diferenças entre os dois valores.
            É um conceito de domínio público, que amor e ódio são duas faces contrárias da mesma moeda. Só se pode odiar a quem se ama. Como alimentar este sentimento tão forte, por alguém que nos é indiferente? Uma pessoa neutra é como se não existisse. Como odiá-la? Ela não tem classificação alguma na gradação de nossos sentimentos.
            No poema Congresso Internacional do Medo, Drummond menciona ser este sentimento nosso pai e companheiro: ele é tão essencial que “sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”. Estranhamente, ele afirma que o ódio não existe. Em uma leitura mais ampla, pode-se entender talvez que o poeta nos fala do esfacelamento dos sentimentos, neste mundo aviltado, coisificado.
            É uma afirmação meio bizarra que tem certa lógica: o homem moderno vai ficando meio morno, incapaz de grandes paixões e ódios ferrenhos. Ele se apequenou. Nas notícias diárias dos jornais televisivos, custa-se a entender a brutalidade gratuita, a maldade irracional; é o efeito de uma causa maior, cada dia mais comum: o abastardamento dos pretensos seres racionais.
            Temos que sobreviver em um mundo assim, caótico, globalizado. E sem volta. A inexorabilidade do chamado progresso atual não tem terapêutica, nem retorno. Há soluções que amenizam: uma delas é a Arte.
            Assim, dentro do caos, quem faz literatura lança mão da mais eficiente função catártica, uma espécie de âncora. Por isso a produção literária não pode ser a antítese da crueldade do mundo moderno. Obras frouxas, adocicadas, com soluções prontas, falsas, são um engodo, não são literatura. Quando se escreve há que se ter a coragem de chafurdar no charco da modernidade.
            Ao se procurar a razão de por que escrever, é bom lembrar a assertiva de Fernando Sabino: “Eu escrevo para saber por  que escrevo”. E jamais se procurem razões mais brandas. Ainda é citando José Castello: “Escrever é atravessar um inferno”.
            Quem faz ou lê literatura com a mera finalidade do entretenimento, é um achincalhe, no primeiro caso e uma perda de tempo no segundo. Nas duas possibilidades, uma grande fraude. A boa literatura deve ser, no mínimo, um antídoto contra o veneno letal do mundo moderno.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

iNSIGHTS & ACHADOS

INSIGHTS & ACHADOS
O passado é uma ilha longínqua (ou um arquipélago?) que vem boiando na memória e, às vezes, lança âncora. São pequenos episódios, fatos pitorescos, lembranças.
Quando se vê um quadro, uma pintura, muito de perto, a visão borra, falseia a realidade, desvirtua, adulterando a tela. A manhã fria, a brisa doce, o céu de brigadeiro, a vida azeitada com sua rotina prenhe de afazeres essenciais, outros apenas acessórios. Por que os fatos antigos vieram pousar na memória, como borboletas brancas, aparentemente surgidas do nada?
Meu aluno da quinta série do Curso Fundamental, miúdo, mirradinho, não aparentava mais de dez anos. Olhou-me sério e perguntou: Por que coisas ruins acontecem? Eu o fitei preocupada, diante da possível resposta tão complexa. Antes que eu ensaiasse uma hipótese, ele disse: Não será porque a gente gosta só da banda madura da fruta? Abismada, questionei se ele entendia a beleza da metáfora que criara.
Meu pequeno discípulo ficou atarantado com o termo metáfora; tentei explicar-lhe, mas todo o mistério permaneceu. Anos mais tarde, lembrando-me do episódio, fiz um poema, que acabou sendo premiado em Concurso Literário: “O homem, incauto, inocência, / procura sempre viver / no lado maduro do fruto, / e no verde, no ácido acre / morrem suas esperanças e sonhos, / apodrecidos, às vezes, na espera fatal. / Planta a árvore, nega o fruto? / Que é a vida se não houvera / ao menos uma só vez / rica seara, doirado trigo / que enfeita o vento carregado de azul? /O terreno da esperança / é demasiado fértil. / Há risos de bonança / em plena tempestade. / Diante da sempre frugal colheita, / o homem, animal que sonha, / não aprende, não aceita o bruto / da realidade cansada de repetir. / Ele ama, inteiro, persistente, / o lado maduro do fruto.”
O professor, na garimpagem diária, às vezes encontra uma pepita valiosa dentro da bateia. Aplicando, certa vez, uma técnica simples, na aula de redação, pedi aos alunos que trouxessem gravuras de revistas, para se inspirarem. Um aluno da sexta série do antigo Primeiro Grau, trouxe várias ilustrações dos quadros de Portinari. Entre elas, ele escolheu a famosa tela que mostra garotos jogando futebol com uma bola feita de farrapos, perto de um cemitério com vários animais ao redor.
Eis o incrível texto que ele produziu, em classe, inspirado na tela: “Os mortos escapam das tumbas, querem correr... As almas cansadas querem brincar, olhar para o luar negro; há uma alegria sem fim. Relembram brincadeiras esquecidas. Saem do cemitério, avistam o campo. Pegam um trapo achado ali, embrulham. As suas mãos rasgadas pelo tempo amarram correndo, querendo brincar.
De repente o piar das corujas os avisa que o sol vai sair. Os meninos correm para as portas do cemitério, entram nas tumbas e ali ficam, por mais um século sem fim.”
Bem que o Mago de Cordisburgo já afirmou que, em uma surpresa, o mestre  pode, às vezes, aprender com o aluno. Na primeira experiência, quando lancei o Laboratório de Literatura, após um ano aplicando técnicas, explorando a criatividade, recolhi alguns conceitos que eles redigiram, elucidando sua arte de criar, em contato com textos de autores brilhantes: “É uma experiência que me fez viver e conhecer melhor o ser humano”. (V.L.P.G.); “O Laboratório de Literatura estará criando loucos sublimes, gênios ou monstrinhos?” (W.W.P.); “O Laboratório de Literatura é um dos únicos lugares onde eu posso ser eu mesma; aqui não preciso usar máscaras e sei que aquele que ouve é meu igual e me compreende”. (M.A.P.M.); “O Laboratório de Literatura é a fonte rica onde toda semana venho buscar alimento para minha vida enfadonha”. (D.J.F.).



           

domingo, 30 de outubro de 2011

ADEUS A DJALMA CANO

ADEUS A DJALMA CANO
                       Tenho muita dificuldade de enfrentar mortes de pessoas queridas. Quando elas são muito idosas, é um pouco mais fácil. Todavia, quando morrem prematuramente, tenho a impressão que houve erro no calendário de Deus. Sei que isto é meio herético, mas como entender quando são jovens, ou antes dos setenta anos?
                       Amigos, alunos, meu sogro, uma tia, um tio, meu pai... Ele se foi aos sessenta e quatro anos, em 1974, um homem forte, dinâmico, verdadeiro mastro de navio, alicerce, porto.
                       Dia 17 de setembro, recebi um e-mail da escritora Jair Ianni. Ela, infeliz, tristíssima, comunicava-me a morte de Djalma Cano. Fiquei chocada, nada sabia de sua doença, da cirurgia. Sessenta e quatro anos! Lembrei-me do Djalma inteligente, sensível, excelente professor, escritor, cantor, poeta e dramaturgo.
                       Ainda sem nada entender e aceitar, peguei o livro “Sarça Ardente”, do Grupo Flamboyant, Funpec Editora, 2002, abri na página 23. Djalma Cano: Médico, professor de medicina, ator de teatro amador, editou seu primeiro livro, “É poetempo de poesia”, em 1997. Tem três livros de poesia e um de contos, no prelo. Participou da Antologia “Uni/Versos” (1997), do Grupo Flamboyant. Está na coletânea “Poeta de Gaveta”, nº 6, editada pela Universidade de São Paulo, “campus” de Ribeirão Preto, com o conto “Silêncio”, em 1999. Foi premiado com o primeiro lugar do 1º Concurso Literário de Poesia e com o primeiro prêmio do 1º Concurso Literário de Conto, ambos do Centro Médico de Ribeirão Preto, em 1999.
                       Eu não conhecia bem o cidadão, o Dr. Djalma Cano, seus familiares. No seu dinamismo, Djalma era membro da Alarp (Academia de Letras e Artes), lecionava na Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp). Ator, apresentou a peça “Conc(s)erto de Senhoritas”, com o grupo teatral Boca no Trombone, em agosto de 2011; integrou o elenco de “Chá de Caridade”, comédia da Companhia Serotonina.
                       Eu admirava muito o poeta; seus poemas eram ricos de um sensualismo belo e lírico. Na citada Antologia, “Sarça Ardente”, Djalma demonstrou ser um exímio contista, explorando o gênero do miniconto, tão em voga hoje. O miniconto é uma condensação artística de criar, em poucas linhas, uma grande história.
                       Ele publicou nesse livro quinze minicontos, mostrando-se uma grande maestria em condensar um conto em tamanho reduzido, onde se pode ver a ousadia, o sonho, a posição social da personagem, a tristeza e o desencontro dos pais. O final aberto, moderno, tudo faz do miniconto “Partida”, uma pequena obra-prima.
                       Waldomiro Peixoto, escritor e poeta, que também pertencia ao Grupo Flamboyant, enviou um e-mail melancólico e delicado. No texto, palavras sensíveis: “Nem sei o que dizer. As partidas prematuras são sempre dolosas. O Djalma estará de mãos dadas com a Herbênia e com a Silvinha, do Grupo Flamboyant. Todo homem é mortal, mas nem todo o homem é mortal. O Djalma continuará vivo no coração e mente de quem o conheceu de perto”.
                       Se todos ficaram muito tristes com a sua ausência, deve ter havido festa no céu. Dizem até que Djalma já está escolhendo um elenco de anjos para uma nova peça. E não parou de fazer poemas. Hosana, Djalma Cano!


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

TEMPOS POÉTICOS

TEMPOS POÉTICOS
                   O livro “Antes Mesmo do Sonho”, de Carlos Roberto Ferriani, surpreende. Talvez porque é hábito aliar à ideia de médico, mais como cientista. Mas o nosso poeta está muito bem acompanhado, junto a outros discípulos de Hipócrates: os mineiros Guimarães Rosa e Pedro Nava, o primeiro, um dos maiores nomes da Literatura, o segundo, grande memorialista.
                   Há pouco tempo perdemos Moacyr Scliar, o brilhante médico gaúcho, que deixou uma obra literária riquíssima; e não podemos esquecer do poeta maior Miguel Torga,  pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha. Assim, não é de se estranhar que o médico Dr. Carlos Roberto Ferriani goste de escrever poemas.
                   Seu premiado livro é sensível e inteligente. Dividido em seis partes, traz subtítulos de tempos verbais e, evidentemente, a escolha não é aleatória, tem uma conotação gramatical, mas, sobretudo, filosófica. O primeiro, Pretérito mais-que-perfeito, é um tempo que exprime a vida que podia ter sido e não foi, para citar Manuel Bandeira.  Por isso, Ferriani  usa linguagem simples, quase lúdica, traz reminiscências, um erotismo leve, fala da infância e até faz alusão ao poema “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu, poeta da segunda Geração Romântica, no Brasil.
                   Aliás, em todo o livro há alguns temas populares, com uma linguagem pertinente, com gírias, corruptelas e coloquialismos. Há que citar as epígrafes excelentes, que antecedem cada “subdivisão gramatical”: “Solidão é o que inverte do que nada sabemos ser nossos vãos.” (pág. 36) ; ou “A profundidade das palavras não está no modo como são ditas, mas na alma que representam” (pág. 80).
                   Após poemas sobre perdas, “Livre Arbítrio” é mais maduro, uma nova tomada de posição (pág. 40). Às vezes o poeta deixa uma falsa impressão de descuido gramatical e/ou do vocabulário, todavia, de repente, brinda-nos com um verso notável, de criatividade linguística : “Fisgado pela saudade / Nesse instante poente” (pág. 45); é preciso enfatizar a adjetivação do substantivo, com a conotação de triste, envelhecido, acabado.
                   Às vezes, como a primeira estrofe do poema “Decisão” (pág. 48), ele nos brinda com uma poesia realista e belas metáforas: “Decidi que estamos embora / Eu de você e você de mim / Não adianta mais o coito a sós / Um ao preço do outro / sem semáforos”.
                   O livro surpreende, inclusive, pelo desequilíbrio. Na página 53, após um poema denso e sintético, profundo, surge outro repleto de coloquialismos e gírias. Outras vezes há um tom confessional, humano e sincero: “Tu            és meu vício por onde rondo / Minha paz na guerra dos dias meus” (pág. 60).
                   Apesar da pretensa falta de compromisso vocabular, CRF usa às vezes termos raros, como “acovilhar” (pág. 69), ligados à Botânica, “a Zoologia como “mentraste” (pág. 120) e “Falena”, ou termos de origem latina: “Mancípios” (escravos) e pede até emprestado ao grande Rubem Alves, o neologismo “escutatória”(pág. 155).
                   Enfim, aqui e ali, estrofes    muito belas. O livro “... Antes Mesmo do Sonho Tempos Poéticos” é rico e variadíssimo. Muito complexo, da mesma essência da alma do autor. O Criador e a Criatura. O mistério se repete sempre.
                   Depois de amanhã, dia 25, na Paraler, às 19 horas, nosso poeta estará lançando seu primeiro romance: “Fragmentos de uma Vida”. É importante ler, com atenção, o romance de Carlos Roberto Ferriani, para conhecer mais uma obra deste homem de inteligência rica e facetas artísticas múltíplas.


                       
                  

domingo, 16 de outubro de 2011

MEU MESTRE INESQUECÍVEL

MEU MESTRE INESQUECÍVEL 

            Todo adulto tem, no seu íntimo, a lembrança de um mestre inesquecível. Variam as razões por que eles se tornam eternos. A grande figura que marcou a minha adolescência foi a professora de português Eugênia Vilhena de Morais, hoje nome de escola. Eu viera de Minas para o Santa Úrsula, um dos colégios mais famosos de Ribeirão, na época. Sua clientela era composta de meninas ricas, da alta sociedade ribeirão-pretana, todas paulistas.
Mal reparam na minha insignificância, menina tímida da então 5ª série Ginasial. Foi Eugênia, com sua doçura, o sorriso de jasmim (tinha uma auréola sobre a cabeça?) que atraiu a atenção da classe, quando me perguntou: _ Onde aprendeu a escrever tão bem? Gosta de ler? Ruborizada, engrolei uma resposta, mas logo soube que ganhara uma amiga. Alimentou, durante quatro anos meu amor pela Literatura, emprestava-me dezenas de livros de sua própria biblioteca, ela os discutia comigo após a leitura. Na oitava série, eu escrevia melhor ainda, conhecia grande parte da literatura brasileira e portuguesa e jamais perdera o primeiro lugar na classificação mensal da avaliação do Colégio. Subia a escada, após a chamada e recebia medalhas, descendo orgulhosa como um general.
            Mesmo depois de deixar o Colégio, indo para o notável “Otoniel Motta”, onde fiz o Clássico, Eugênia era minha grande mestra. Professora “avant  la lettre”, precursora que me abriu veredas e solidificou, para sempre, minha vocação para o magistério e para a Literatura. Eu estudava na Europa, quando ela faleceu. Mais tarde, ao publicar meu décimo primeiro livro, um romance epistolar, primeiro no gênero na Literatura Brasileira, perguntei-me: Eugênia gostará dele?
            A vida é realmente bizarra. Lembro-me da primeira vez que vi o prédio  muito branco, como um cisne pousado no gramado. Que construção é esta, perguntei a alguém. É a Escola Estadual “Eugênia Vilhena de Morais”. Fiquei fascinada! E como se rezasse, disse, cheia de emoção: Juro que um dia irei dar aula ali!
            O tempo passou, lecionei no Colégio Santos Dumont e no Colégio Estadual de Jardinópolis. Um dia, quando as remoções ainda eram feitas em São Paulo, pessoalmente, em um episódio meio surrealista, quase inacreditável, consegui remover-me para o Eugênia Vilhena de Morais. Tenho certeza de que Eugênia intercedeu por mim, naquele momento, quando lhe pedi fervorosamente. No dia seguinte fui depositar flores sobre seu túmulo.
            No Vilhena lecionei vinte anos, até aposentar-me. Aposentada,  voltei ao Colégio, para visitar a Biblioteca, que recebera meu nome. Foi  muito pitoresco. Quando entrei na “minha Biblioteca”, uma servente limpava o chão. Olhei para meu retrato grande na parede. Definitivamente, eu não gostava daquela foto... A servente disse-me então: A senhora sabe, esta mulher aí da foto foi professora aqui. Ela não morreu ainda não... Não gosto é do nome dela, muito difícil. Dizem que ela era meio louca. Seus carros eram sempre brancos e tinha lugar marcado no estacionamento: logo à entrada. Chegava bem antes de começar a aula e ia lá para a Sala dos Professores conversar com o retrato da Dona Eugênia. Não é uma loucura?
            Muito atenta, ouvi o relato da servente, que era verdadeiro... Eu gostava mesmo de confidenciar meus problemas à Eugênia. Ela era de total confiança e muito compreensiva. Saí, disse adeus à servente, sem me identificar. Quando fui me afastando de carro, olhei para trás e vi, com saudade e melancolia, o flamboyant na porta da minha eterna Escola. E pareceu-me que, entre os galhos verdes e alegres, balouçando na brisa, Eugênia sorria acenando, com seu eterno sorriso de jasmim.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

AS LUAS DE MARA SENNA

AS LUAS DE MARA SENNA

               Em um encontro do Núcleo da UBE de Ribeirão Preto, estive com a poetisa Mara Senna. Eu já conhecia seu primeiro livro e sabia dos prêmios que ela conquistou após, em vários concursos. Mara é uma mulher jovial, sensível, culta e uma grande poetisa. Depois da reunião, fui reler seu livro e o achei tão bom que não pude deixar de escrever algo sobre ele. O título: “Luas Novas e Antigas”. Disse ela que  está reunindo novos poemas para sua segunda obra. É uma tarefa ousada, visto que em suas Luas Novas e Antigas há textos excelentes.
               São poemas curtos, sintéticos, plenos de lirismo. O que encanta nos textos de Mara Senna é a poeticidade delicada. Ela aborda o cotidiano, fatos comuns do dia-a-dia, porém usa uma linguagem figurada rica e expressiva. Assim, cada poema transforma-se em uma pequena obra-prima. Em “Luz das Letras”, (página 17), suas alusões lembram Monteiro Lobato, sobre a gravidez de um texto. Em “Amara”, (p. 18), MS alude ao “anjo emprestado” de Drummond, em um novo contexto.
               Em “Guardados” (p.19), há um enfoque inteligente sobre as opções e a inexorabilidade do tempo. Mara brinca, às vezes, com a gramática, violentando os verbos, quanto ao complemento. No verso “E eu chovi assim o dia inteiro” há uma violentação gramatical, com efeito poético inteligente e expressivo.
               Em um poema de apenas seis versos, é abordado um problema metafísico que aflige toda a humanidade. São os assombros sobre as eternas dúvidas humanas, tema usado no famoso poema de Fernando Pessoa, sob o heterônimo Ricardo Reis: PARA SER GRANDE, sê inteiro”....
               No poema “Ainda bem”, na página 26, há um jogo semântico interessante: “Ninguém mais ouve” (...) “mas que ainda não houve”. Às vezes a poetisa é tomada de ceticismo: “Está comprovado:/ não há crime perfeito / nem beijo roubado./ O amor-perfeito / é só flor./ Mas flores murcham; / só resta Deus”. Aliás, a religiosidade é uma constante no livro. Outros achados: a capacidade de sintetizar grandes problemas, empregando expressões populares. Exemplo desta técnica é o excelente Poeminha do final do ano passado (p. 35):” Final do ano, / aí vai meu currículo:/ andei em círculo, / morri na praia, / fugi da raia,/ Ano que vem eu mudo”.
               Enfim, Mara Senna, que já ganhou vários prêmios e participou de antologias de peso, é realmente, uma grande poetisa. Realce-se o poema “Sedução”, com o qual participou da Antologia Ave, Palavra!, (Funpec Editora, 2009); de maneira criativa, usa a riqueza dos nomes de flores, em um jogo semântico repleto de sensualismo.
               È preciso enfatizar também outra constante do livro “Luas Novas e Antigas”: excelentes alusões mitológicas e bíblicas, com grande pertinência. Veja-se o belo poema Partida (p.83): “Naquele dia, / eu te dei as costas com a naturalidade/ De quem partia por pura vontade./ Se olhasse para trás,/ teria sido fatal./ Nunca fui mulher de Lot,/ pra virar estátua de sal”.
   Mara Senna é inteligente, criativa, culta e tem um grande talento:
Colocar todo o universo humano e a sensibilidade feminina em pequenos poemas, profundos, plenos de universalismo.

domingo, 2 de outubro de 2011

O CATADOR DE PALAVRAS

O CATADOR DE PALAVRAS
Coração não tem cronômetro. Para mim, há muito pouco tempo, ANTÔNIO VENTURA era um adolescente sonhador, enamorado das palavras. Era poeta e ganhava todos os prêmios literários da cidade, no começo da década de 60. Contam que ele até fazia compras por conta do prêmio que viria e ele chegava sempre. O adolescente, meio nefelibata, que vivia cismando em cima dos livros de poetas consagrados, cresceu.
Sempre escrevendo, ganhou o Prêmio de Honra ao Mérito do Concurso de Contos, de âmbito nacional, promovido pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Santa Catarina. Obteve o primeiro lugar em Conto e em Poesia, Prêmio Governador do Estado (São Paulo). Virou quase uma lenda e chegou a ser chamado de Rimbaud brasileiro. Trabalhou como jornalista e crítico de cinema e teatro na revista O Bondinho.
Em 1972, o jovem sonhador, de cabelos longos, foi para o Rio de Janeiro, começou a vender seus poemas, em folhas mimeografadas, dentro do Teatro Ipanema. E assim sobreviveu até junho de 1975. Todavia, a vida é ilógica e inesperada. O poeta amadureceu, casou-se, cursou Advocacia, fez-se juiz.
Tive sempre notícias suas, que fundara um Grupo, em Mococa, para estimular a poesia e que estava escrevendo um livro, espécie de autobiografia literária. Afinal, em 2011, veio à luz, O Catador de Palavras, da Topbooks Editora, do Rio de Janeiro. É um livro instigante e diferente, com poemas de 1970 até 2010, além de artigos, comentários e ilustrações.  Traz uma apresentação             de peso, do poeta Carlos Nejar, da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia.
Seus poemas mostram a loucura e a ousadia da juventude, retratam sua formação literária, influências e a obra é um verdadeiro documento dos contatos de Antônio Ventura com Clarice Lispector e outros escritores famosos. Grandes nomes atuais reconhecem o talento do nosso poeta: Álvaro Alves de Faria, Mário Chamie, Saulo Ramos e Menalton Braff. O artigo de Antônio Carlos Secchin, com o título de            "Em nome da Beleza”, fecha o livro e elogia a poesia de Antônio Ventura.
Em O Catador de Palavras há poemas exemplares pelo lirismo universal, as belas alusões, como “Equus” (pág. 165), os nove primeiros poemas de “A Máquina do Tempo”, os quarenta e quatro minipoemas (das páginas 207 a 218), “Quatro Faces” (pág.239). O livro traz temáticas filosóficas, profundas, de um lirismo belo. Enfatize-se a beleza dos poemas reunidos sob o subtítulo PASTOR de NUVENS. Em “Oito Dias”, páginas 268/269, AV usa, no final, o procedimento literário dos poetas modernistas.
Impossível, em uma abordagem pela rama, fazer uma análise de O Catador de Palavras. O livro, em uma edição bem cuidada e de extremo bom gosto, ilustrado, contendo artigos jornalísticos de épocas variadas,  sobre Antônio Ventura, sua obra e sua Poética,  vai ser lançado agora, dia quatro de outubro, na Paraler, a partir das 19h30. Vale a pena conferir.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A INFÂNCIA REVISITADA




A INFÂNCIA REVISITADA

Não sou saudosista. Pelo contrário, tenho um pé atrás com pessoas que evocam muito o passado: elas não são felizes no presente, não administram bem a realidade. Talvez eu seja meio radical, mas não creio na falácia que se aprende com o vivido. Quando os fatos parecem se repetir, mudaram-se os tempos, os atores, hábitos, costumes, valores e tudo é um eterno happening: aqui, agora, o novo pedindo opções.
Há pretensas verdades que se cristalizam. Há que se duvidar e analisar sempre. Quando ouço dizer que a infância é a época mais bela, mais poética, digo sempre: Vá ler Freud.
Nasci em uma cidadezinha de Minas, saí de lá com seis anos e poucas vezes voltei. Nessas visitas rápidas constatei que minhas raízes desapareceram, a ternura erradicou-se, pouco sobrou. Da última vez, fui levar um tio saudosista obcecado.        Quando cheguei à rua da casinha onde nasci, só uma curiosidade me movia: ver os lindos canteiros de margaridas, defronte a casa. Todavia, o progresso fatídico nada perdoa. Por questões práticas, a casa foi reformada, o jardim desapareceu. Alguns quarteirões à frente, de novo a curiosidade me cutucou. Desta vez mais forte. Como estaria “meu” pomar lindo, pejado de frutas brasileiras e europeias, os pés de carambolas, seus gomos amarelos e ácidos, as macieiras enfeitadas de pomos rubros, doces, os inacreditáveis marmelos? No local, o coração apertou. O Moloch da economia e do lucro construiu várias casinhas de aluguel, vulgares, antiestéticas, práticas.
      Voltando da malfadada visita, lembrei-me de Fernando Pessoa: ¨Em tudo quanto olhei fiquei em parte. Com tudo quanto vi, se passa, passo¨. Também Drummond, falando de Itabira, filosofa que tudo se acaba e assim nossa vida. Em um artigo, Rubem Alves ratifica os dois poetas, melancólico, quando conta sobre a destruição do Pico da Pedra Branca, em Pocinhos do Rio Verde. Os poetas são grandes professores e cada poema é uma lição de vida inesquecível.
      Ora, há temas que nos tornam filosóficos, com pitadas metafísicas. Grandes dores são comuns a todos; frustrações, perdas, sensação de fracasso, inseguranças, tudo parece moldado do mesmo barro da condição humana. Variam só os portadores, lugares, épocas. Geralmente, essa cota negra da existência, preço a pagar, tem algo de fatídico e inexorável. As alegrias não. Dosagens diferentes, razões várias, elas dependem de sensibilidade, lirismo, decepção, gosto, antenas, filosofia de vida.
      Assim, os escritores e poetas ajudam a decifrar os mistérios que permeiam as pilastras do templo da existência humana. Não há mensagens explícitas. Às vezes são pistas, um cicio, um murmúrio. Aqueles que têm ouvidos atentos, ouvem. Os de sensibilidade embotada permanecem surdos. Os infelizes fazem ouvidos moucos

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

OS MONSTRINHOS MEDONHENTOS

OS MONSTRINHOS MEDONHENTOS
Pedi emprestado o título deste artigo a Mário Lago, do seu livro infantil da década de 80. O herói da obra é um parto da montanha às avessas: deveria ser um monstro, mas nasceu com voz de anjo e de flor, quixotesco, idealista.
No livro do autor do samba “Ai que saudades da Amélia”, o pretenso monstro nasce bom e gentil. A parábola questiona posicionamentos sérios sobre a herança genética, podendo mesmo acirrar a celeuma entre    Rousseau e Hobbes, se o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, ou vice-versa.
            Ora, há pessoas ingênuas (ou acomodadas?) que se apegam a conceitos clássicos e jamais mudam de opinião, acreditando em falsas verdades de tempos imemoriais. Tomemos como exemplo o que se pensa sobre as crianças, uma visão sempre lírica: elas representam a pureza, seres ainda intocados pelos pecados, pelos vícios. São angélicas criaturas, imaculadas.
            No final do século XIX vieram à luz as teorias freudianas, que muito explicavam a complexidade humana. E os anjinhos perderam as asas e as auréolas. A criança, na realidade, é um monstrinho de egoísmo, movida a instintos, trazendo em si, em potencial, impulsos e Complexos, dos quais os adultos são reféns.
            A Arte, que sempre tenta inovar, procura os caminhos mais insólitos para alicerçar suas obras, na tentativa de melhor compreender os homens e o mundo. Assim, o cineasta espanhol Carlos Saura, nas pegadas de Freud, lançou em 1976, o filme Cría Cuervos.
            O citado filme foi tema de debates e teses de Psicologia.  A obra de Saura mostra que a infância nada tem da propalada beleza, não é uma época feliz. Muito pelo contrário, a narrativa é plena de amargura e sofrimento. A heroína, a pequena Ana Torrent, imersa em um mundo de decepções, rodeada de pessoas infelizes, reage com frieza estranhamente natural, que combina e repousa, com perfeição, com sua expressão de anjo, porém extremamente impassível.  O pano de fundo, como em outros filmes espanhóis da época, além de defender as teorias de Freud, pinta um retrato sombrio da Espanha, no regime de Franco.
            Algumas ideologias espiritualistas enfatizam o sofrimento como caminho para aperfeiçoar o homem, elevá-lo. Não em Cría Cuervos. A realidade cruel vai despertar na menina o que ela tem de pior, transformando-a em um monstrinho. Outros filmes espanhóis seguiram a linha de Saura, caracterizando uma estética pesada, densa, sombria, de um realismo cru e científico.
            Na realidade, sabe-se hoje que o ser humano traz, em sua carga genética, tudo o que há de melhor ou pior, além dos instintos, a força propulsora ou motivadora da personalidade. Para o Pai da Psicanálise, eles não são herdados geneticamente, mas se referem a fontes internas de estimulação corporal. No filme  Cría Cuervos, a personagem infantil é um pequeno monstro destruidor e vingativo, plasmado pelo sofrimento.
            Enfim, tudo que se vê, lê ou aprende nas Artes e na vida, tem a finalidade maior de compreender o homem, ser intrincado. Resta sempre ainda muita coisa obscura. Por isso é imperdoável o posicionamento simplório de quem usa rótulos definitivos e ingênuos, em se tratando da mais complexa obra da Criação.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A VISITA DO POETA

A VISITA DO POETA
            De vez em quando minhas raízes mineiras revivem, a mineirice e a famosa desconfiança diante de modernidades. Custo a usar portas pelas quais multidões já entraram. Depois de muito assuntar, acabo aderindo. Foi assim com meu Blog, que nasceu em julho deste ano. Até o computador. Faz pouco tempo que ousei.
            Se eu soubesse das visitas que receberia, do contato de pessoas queridas e/ou desconhecidas que vieram até mim, teria começado mais cedo. É belo o eliminar de distâncias, o correio virtual que abre caminhos. Desde adolescente, eu amava escrever cartas. Comunicava-me com vinte, trinta pessoas, do Brasil e do exterior. Missivas longas, repletas de entusiasmo.
            Não é casual que amei conhecer Madame Sévignê (Marie de Rabutin-Chantal), a Marquesa de Paris do século XVII, na minha juventude, quando cursava a Faculdade, em Belo Horizonte. Ela passou à história das letras francesas, graças à correspondência que manteve com sua filha, residente em Provença. A criatividade, o estilo único que lembra mais um jogo literário, as cartas de Me. Sévignê são verdadeiras crônicas da Corte de Luís XIV.
            Comecei então, na época, brincar com seu estilo, com cartas de várias páginas, mais uma conversa escrita; às vezes, só no final, nas últimas linhas, iam as notícias mais importantes. Impossível, hoje, brincar de Me. Sévignê. Estamos na era da Comunicação, do Twitter, com apenas cento e quarenta toques, da síntese, dos torpedos, dos pequenos e-mails com linguagem estropiada, coloquialismos, abreviações.
            De repente, deu-me vontade de criar um Blog. Ele seria sério, com a finalidade de uma comunhão literária entre os visitantes. E deu certo. Recebo recados de Brasília, de Bagé, na divisa do Uruguai, de Ribeirão Preto e de outras plagas. Portam comentários que são verdadeiros presentes. Em agosto, recebi um e-mail belo do jornalista e poeta João Augusto. Não o conheço; ele deve ser jovem, é gentil e, na sua mensagem, fala do seu segundo livro “Sem a sombra de um guarda-chuva”, da Editora Scortecci, obra a ser lançada em outubro.
            O prólogo do livro é poético. O poeta fala de si, com  a profundeza e sinceridade de quem sempre busca: “Se não sou o que me agrada, não me desencanto comigo. (...) O real não caminha pelas ruas,  não é visto à luz do dia. Mas ao sol sombreado das letras que gotejam no papel em branco. (...) Viver ainda é a arte de sentir, e não há razão para mais nada”. Pura filosofia e a valorização da criação literária.
            Seguem alguns poemas seus, que me encantaram. O primeiro e o que traz o título “Errata” são uma verdadeira Profissão de Fé, que muito ensinam, inclusive, desvendam o conhecimento linguístico do poeta. Há estrofes curtas, sintéticas que abordam os grandes mistérios e as dúvidas metafísicas eternamente sem respostas. Elas alimentam os sonhos, às vezes a razão maior do viver. Realmente os poetas são filósofos sábios e ousam tentar entender.
            O poema “Miséria” é um grito que alude à guerra eterna dos poetas com a palavra. Ela trai, esquiva-se, falseia. A sensibilidade do poeta tenta, com dificuldade, concretizar em palavras suas dúvidas abissais, seus medos, suas perguntas sem respostas.
            Muito prazer, grande Poeta João Augusto. Outras almas sensíveis e conturbadas seguirão sua luz. Esta é uma das mais belas missões dos poetas.