domingo, 20 de abril de 2014

DESMITIFICAÇÃO E / OU A INOCÊNCIA PERDIDA

DESMITIFICAÇÃO E / OU A INOCÊNCIA PERDIDA

A pedidos, publico novamente esse
texto, em homenagem a 21 de abril.

Sempre me foi doloroso quando algum iconoclasta destruiu um mito que me encantou na infância ou na adolescência.
Mineira, eu amava a figura de Tiradentes, com as barbas e os cabelos longos, a corda grossa no pescoço, o ar de homem bom, que lembrava muito o Cristo. Ele era meu herói, o líder da Inconfidência Mineira, o homem que lutou pela liberdade do Brasil, contra o jugo português. Vibrava com sua valentia, quase a ponto de sair de peito aberto a gritar com entusiasmo: “Libertas quae sera tamen”!  Em uma aula trágica de História, no Colegial, o professor destruiu meu herói. Morreu sim, foi esquartejado, salgaram sua casa para que nada mais ali vingasse, mas ele era o mais pobre, o menos importante do movimento dos Inconfidentes. Como matar um Cláudio Manuel da Costa, ou o fidalgo imponente Tomás Antônio Gonzaga? Na Faculdade foi pior. Teses de pós-graduação punham em dúvida, mesmo sua morte trágica. Ele teria fugido para a África e escapado do castigo execrável.
Decepcionada, infeliz, detestei a nova realidade. Depois foi durante uma visita às Cidades Históricas de Minas. A certa altura, o professor de Literatura Brasileira, que fazia o tour conosco, disse: “Daquela janela, Marília namorava o seu Dirceu, que residia logo acima...”. Todos os versos, as liras do livro “Marília de Dirceu” vieram-me à cabeça, a doçura, a pureza do grande amor  dos dois  personagens  famosos. E o professor completou: “Marília, cujo nome, na verdade, era Maria Dorotéia, não amava Dirceu. Hoje ela seria chamada de “carreirista”, uma jovem quase adolescente, muito ambiciosa, atraída pela fortuna, fidalguia e pelo status de Gonzaga, o elegante português quarentão”. O professor tripudiou sobre minha tristeza. O nosso Dirceu também não a amava tanto assim. Logo que o movimento libertário foi descoberto pelos portugueses, o poeta escafedeu-se para a África, casou-se com mulher rica e analfabeta...
A vida desbotou, ficou mais feia, víboras da dúvida picaram-me o coração, envenenando-o. Com certeza, Romeu e Julieta não morreram jovens, pelo seu amor impossível, Abelardo não foi castrado, Heloísa nunca entrou para o convento. D. Pedro arrancou mesmo leoninamente os corações dos assassinos de sua adorada Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha? Dante amou a vida toda sua Beatriz, vista de relance em uma janela? Não morreu Fedra de amor, pelo seu Hipólito? Orfeu desceu aos infernos e resgatou Eurídice da morte?
Um mar de dúvidas. Tudo ficção. Lições falsas de beleza para que se engula a realidade insulsa, insípida, tediosa. Uma lástima. Um pesadelo.
De repente, a incerteza virou a maldita Hidra de Lerna, com suas cabeças hiantes. E o Cristo? Quantas versões surgirão ainda sobre a figura amada, tão carismática? Alicerçando-se nessa hipótese, escritores modernos têm publicado best-sellers com versões esdrúxulas sobre o chamado Messias.

Infeliz, com a alma cabisbaixa, argumentei com meus botões: Não seremos nós mitos, heróis da ficção de Deus? E quando o Diabo nos desmascarar, com sua sarcástica lucidez? O que sobrará da magnífica Criação? 

terça-feira, 15 de abril de 2014

MINIPOEMAS

MINIPOEMAS
I

Pedi à terra que me trouxesse você
Implorei aos pássaros, mensagens mil
O fogo foi o inimigo mais vil
É proibido amar semideuses.

II
Surjo dos cinzentos da vida
enfeitada / mordida / presa
por estranhas serpentes
que nascem em mim
em mim fazem ninho
e destruição.

III
Prometeu sem seu fígado
seria criatura comum
e não semideus.
por isso ele deve amar sua águia
até mesmo a dura rocha
onde vive seu castigo eterno.

domingo, 6 de abril de 2014

MEUS OITO ANOS

MEUS OITO ANOS
       Sempre me fascinaram as diferenças de opções, gosto e maneiras de ser dos seres humanos. Isso enriquece a vida, dá mais sabor. Por isso, citemos a famosa frase francesa: Vive la différence!
          O título acima, no entanto, não fala dos versos de Casimiro de Abreu, poeta romântico, de um lirismo leve, de adolescente. É um poema famoso, recordando sua infância, “os tempos que não voltam mais”... Um dia desses, assim, não mais que de repente, pus-me a fazer um balanço de quando, em minha vida, fui mais feliz e o porquê. O resultado da pesquisa pessoal e muito íntima, surpreendeu-me.
          Não foram os primeiros anos, na peq uena cidade mineira onde nasci, nem a adolescência e mocidade, em Ribeirão Preto, os quatro anos de Faculdade, em Belo Horizonte, os passeios por todo o Brasil, com meus colegas universitários, um ano morando em Paris e depois, quando fazia inúmeras viagens em toda a Europa. Por que a certeza de que aos oito anos, em um ano apenas, quando vivi em uma fazenda no Morro do Ferro, tudo me encanta até hoje?
          Como para se olhar uma pintura, um quadro, tem-se que fazer um afastamento, para ver as minúcias, os pequenos detalhes, distancio-me dessa idade, focalizando-a. A menina que contemplo não tem nada a ver com a mulher de hoje. Os cabelos lisos, quase loiros, de um castanho muito claro, vão soltos, até a cintura. Usa às vezes calças compridas, ou vestidos folgados, que não atrapalham os movimentos.
          Levanta-se muito cedo, antes de clarear o dia, para ver a mãe trançar massas de rosquinhas, sobre as quais, antes de irem ao forno, ela as pincela com gema de ovo. São para vender no armazém de seu pai, ali perto; ela faz também queijos macios, cheirosos, muito brancos, em formas altas, com o leite das vacas da fazenda. Depois, a menina sai correndo,  para se encontrar com os amigos, uma penca deles, filhos do empregado. Tudo é alegria e surpresas inesperadas, nos passeios pela redondeza, pulando o riacho lá no fundo, correndo, fazendo traquinagens.
          Na hora do almoço, o ritual era sempre o mesmo: enchia o prato com arroz, macarrão, batata e frango e ia trocá-lo com os meninos do empregado. No deles, o arroz e feijão atraiam e era bom comer com eles, depois da negociata. Analiso-me. Nunca mais senti uma amizade tão sincera. Desconhecíamos a falsidade, a maledicência, a intriga. Era um  sentimento sincero e fraterno que nos unia.
          À tarde, não era tão divertido: frequentava-se a escolinha rural, com o professor Sancré, muito velho e distraído.  Éramos umas vinte crianças. Para ir “ao banheiro”, eufemismo da casinha de madeira, ao lado da escola, com um caixão sobre a fossa e um buraco no meio, onde se sentava, havia um ritual. Para obter licença “de ir lá fora”, pedia-se ao professor e virava a folhinha na parede. Três ou quatro de nós tripudiávamos com a senha e ficávamos mais de meia hora, brincando na redondeza.
          Eu ganhara uma eguinha castanha, de crinas aloiradas. À tarde, eu montava-a em pelo, sem arreios e corria pelos pastos, cabelos soltos ao vento, com meus dois cães queridos, Bonifácio e Negrinha, correndo atrás,  barulhentos, latindo de alegria. Em que tempo longínquo, no passado, onde está aquela menina ingênua, que não conhecia perdas, mortes, os alçapões da vida?
                    Entendi então, por que nos meus oito anos eu era intensamente feliz, um sentimento puro, céu sem nuvens:  inocência diante do futuro, do amadurecimento, das obrigações, das decepções e dores–porque  amadurecer dói; e principalmente uma sensação de euforia, da grande liberdade

que fazia minha alma criar asas... 

domingo, 30 de março de 2014

LIVROS & VIDA

LIVROS & VIDA

Os livros têm vida própria e biografia. Muitos escritores já tiveram a experiência: surge um projeto de conto ou romance, ele cresce, vai tomando forma e muitas vezes ele pega as rédeas como se tivesse vida e acaba por ser independente, tendo pouco do plano inicial. A sensação é esta: o escritor é levado pelo texto, torna-se instrumento de suas leis e verossimilhança ficcional.
             Já se comentou que a ficção não é fantasia, mas recriação da realidade. O chamado real é matéria da ficção, alicerce, alimento. Dá-se então um círculo vicioso fatídico: a ficção copia a vida e após, esta realidade influencia a sociedade. Nos “reality shows” tão em moda e de qualidade discutível, o processo se complica. Cria-se uma falsa realidade imitando a vida e os telespectadores identificam-se com a ficção, como se ela fora real.
            Na literatura também há mistérios indevassáveis. Livros rejeitados em concursos literários escusos tornam-se obras famosas. O episódio mais pitoresco deu-se com Sagarana, de Guimarães Rosa. O Mago de Cordisburgo, ao terminar seu livro Sagarana, hoje famosíssimo, entrou para um concurso em cuja Banca estava o nosso Graciliano Ramos. Inacreditavelmente, o premiado foi Luís Jardim, escritor medíocre que o tempo engoliu.
            Há outros acontecimentos sem explicação lúcida ou lógica. Humberto de Campos gozava grande popularidade e pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Lembro-me de que um de seus livros mais lidos, “Sombras que Sofrem” (1934, ano de sua morte), encantou gerações. De repente não se leu mais Humberto de Campos, que foi posto em um injusto e bizarro ostracismo literário. Como? Por quê?
          Outro caso insólito, na literatura brasileira, deu-se com o escritor José Mauro de Vasconcelos (1920 / 1984). Nasceu em Bangu, bairro do Rio, foi um dos escritores mais lidos no exterior. Com uma biografia insólita, cheia de peripécias inacreditáveis, ganhou fama como escritor, principalmente com Rosinha, Minha Canoa, livro utilizado em curso de Português, na Sorbonne, em Paris. Meu de Laranja Lima (1968) foi adaptado pela antiga Tupi e pela Globo, como novela televisiva e também levado ao cinema. De um estilo simples e sensível, foi lido em muitas línguas, com enorme sucesso. Por que não se lê mais José Mauro de Vasconcelos?
          Outros casos estranhos continuam. O romance João Ternura, de Aníbal Machado foi considerado excelente pela crítica literária da época. Como diz Luiza Vilma Pires Vale, é a história de um homem e o Rio de Janeiro: o homem perdido da / na Cidade. Com uma trama sempre atual, ela mostra a falta de adaptação da personagem central e o modo de vida da grande metrópole. O protagonista não consegue integrar-se no cotidiano da cidade, sente-se um estrangeiro. Há uma forte influência sartreana na obra. O autor levou duas décadas escrevendo o livro, que ficou no limbo muitos anos. Após, obteve sucesso. Mas a pergunta se repete: Quem lê João Ternura hoje?

          Assim, no mundo literário esses mistérios continuarão para sempre como enigmas inextricáveis.  Há outros que se pode até tentar uma explicação plausível. Como os seres humanos, os livros têm suas lutas, com ascensões e quedas. Entende-se, por exemplo, que o romance Ulysses, de James Joyce, ou Nove, Novena, de Osman Lins, tenham hoje poucos leitores. É devido, em parte, por sua extrema complexidade. Ora, reina no século XXI a banalização, homens e mulheres são reféns de uma preguiça mental arraigada, é a era do superficial, do fácil, do atraente, do óbvio, do rápido, do fast-food literário. 

domingo, 23 de março de 2014

VISITA INESPERADA

 VISITA INESPERADA

          O homem procura a felicidade com obsessão. Talvez ela não exista, ou esse pobre macaco glabro erre nas opções. Vicente de Carvalho eternizou a problemática, quando diz: “Essa felicidade que supomos, / árvore milagrosa a que sonhamos / Toda arreada de dourados pomos, / Existe, sim, mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos.”
          Muitos incautos pensam em encontrá-la em coisas materiais, como dinheiro, bens, ou na fama, no poder. Tudo é efêmero e traz, no final, o ressaibo do tédio e da desilusão. Não é apenas na sede de poder, mas em todas as ambições, é preciso lembrar sempre que, acima de cada cabeça obcecada há, perigosamente, uma Espada de Dâmocles.
          Ora, a idade madura, às vezes vista como castigo, traz alguns privilégios e um deles é reconhecer os valores essenciais, ter uma espécie de feeling para o que realmente é importante na vida. Uma boa opção talvez, sem exageros, é ser presentista, viver à exaustão, o momento presente. Admirar a filosofia de Horácio, o Carpe Diem, ver com acuidade, certos frutos doces e magníficos, como colheita de uma seara lúcida e aureolada de sonhos.
          Sabe-se que a experiência é ao portador, porém diante de tanto ceticismo, ouso relatar uma descoberta que talvez possa embelezar um pouco a complexa vida moderna.
          Troquei uma vida de quarenta e sete anos, em apartamento, sempre por segurança e praticidade e vim para a minha Pasárgada: casa ampla, com clima mais ameno, muito verde e logo se formará um jardim ainda em projeto. Chego a ver as buganvílias de cores variadas enfeitando as cercas frescas de murta; virão as gérberas, as prímulas, rosas e árvores ornamentais como os ipês, um flamboyant, as quaresmeiras de roxo vivo, acácias e um gracioso chorão. Ao redor da piscina muito azul, os coqueiros anões, com sua alegria tropical. A horta de tenras folhas, o futuro pomar pejado de frutos doces.
          Os animais completam a beleza harmônica e transformam o local em um santuário ecológico: duas cadelas labradoras, cor de chocolate, de lindos olhos verdes, curiós, cujos cantos são puro violino, com suas femeazinhas à espera de gala, os beija-flores visitam o pequeno bebedouro de água açucarada, borboletas várias, de cetim, enfeitam a tarde. Em uma árvore vizinha, quatro maritacas jovens, ruidosas e um sabiá. Bem-te-vis coloridos saltitam e se aproximam, em meio a uma enorme variedade de pássaros. Gaviões voam, dando um toque de mistério e de perigo, enquanto soturnas corujas, estátuas imóveis, filosofam ao anoitecer.  A beleza e a paz alimentam a alma.
          Há pouco tempo, uma visita pitoresca, muito inesperada: um mico estrela tem vindo comer a banana que deixamos para ele. Domingo de manhã, na sua galanteza, fez-nos uma visita. O irrequieto amiguinho deve morar nas matas cerradas, cor de jade, que bordejam o rio, aqui perto.

          Namoramo-nos de longe, eu encantada, ele arisco e cuidadoso. Pela hora inteira que estivemos juntos, tão próximos, chego a crer que ele voltará. Deixei-lhe, então, junto às frutas, um recado: “Volte sempre. A casa é sua”. 

domingo, 16 de março de 2014

PROPAGANDA & CRIATIVIDADE

PROPAGANDA & CRIATIVIDADE

          Propaganda sempre me fascinou, desde que ela seja perspicaz e inteligente. Tive problemas com ela, no passado.
          A primeira vez, eu dava aulas no Cursinho. Entrei na Sala dos Professores, criticando uma Propaganda de extremo mau gosto sobre oferta de móveis. Um professor abespinhou-se, atacando-me: “Vejo que você não entende nada de propaganda!” E continuou explicando que os móveis oferecidos eram para pessoas de baixa renda.  Eu me rendi e silenciei. Ele devia ter razão. Era o autor da Propaganda...
          Outra vez, chamei a atenção dos alunos para uma Propaganda, com verdadeiro abuso de símbolos sexuais, ao anunciar lençóis. Aparecia um casal fazendo sexo; depois a heroína descia do quarto, para um lanche. Pegava um ovo, quebrava a parte superior e nela surgia a figura de um hímen rompido. Logo em seguida, ela molhava várias vezes, no orifício do ovo, uma torrada de forma evidentemente fálica... Os alunos me criticaram. Eu via coisas demais, inventava...
          Já briguei por causa de uma Propaganda imbecil, que mostrava pessoas idosas fazendo travessuras, como crianças, ou com começo de Alzheimer. Mas sejamos positivos. Há Propagandas inteligentes e criativas, verdadeiras pequenas obras-primas. Quando morei em Paris, antes dos filmes exibiam, durante duas horas, propagandas muito boas, atraentes, em uma sessão que se chamava  Séance,  que atraia  grande público.
Vamos agora para o Facebook, um grande sucesso.  Postam, às vezes, versos, poemas, textos, brincadeiras, com ironia. É um meio de comunicação leve, ameno. Raramente surgem matérias sérias. O espaço é um oásis no deserto da vida moderna, tão conturbada. Se assistimos aos jornais televisivos (é preciso estar informado, dizem...) eles  começam  sempre com  desastres, mortes, violência, prisões. É raro dar uma notícia boa, positiva. Muita gente começa a fugir deles.
Voltemos ao  Facebook. Esses dias, alguém postou algo muito inteligente, fazendo a paráfrase da famosa frase de  Descartes: “Penso, logo existo”. O cartaz dizia: “NÃO PENSO. NÃO EXISTO. SÓ ASSISTO”. Genial! Haverá uma crítica mais sintética, sábia e ferina contra a alienação, alimentada pela  Televisão,  com  seus  programas  escusos? A assertiva final, com o verbo assistir, após duas negativas, denuncia uma realidade terrível e perigosa, expressando em duas  palavras, mencionando  um  grande  problema universal, efeito  “dangerosíssimo”, como diria  Drummond, de  um problema  atual:  a  má  qualidade  da  Programação da TV,  em  geral,  quase na  sua  totalidade,  é  a  causa  maior (e globalizada!)  de  um hábito  que  robotiza  o homem, coisifica-o,  o  imbeciliza e  aliena.
É  uma  denúncia séria, verdadeira  e  preocupante.  Infelizmente¸ a profilaxia é utópica.  Só há dois antídotos para essa chaga moderna: uma Programação de qualidade e educar os telespectadores para que tenham mais bom gosto e abominem esse  fast  food  diário, que os  alimenta.
Sabe-se que mudanças estruturais e profundas necessitam de homens  corajosos  e  bem  intencionados, não  de quem  só  se  preocupa  com  o Ibope  de  uma  plateia  ingênua,  acomodada,  pouco exigente e,  aos  poucos,  reificada. O telespectador acaba virando um autômato, coisa, transformando-se em um mero e pálido  simulacro  de  um  ser  humano.
  Há


domingo, 23 de fevereiro de 2014

CILADAS DO AMOR

CILADAS DO AMOR

O Amor é um sentimento complexo. Só os seres humanos o conhecem, mas ele sempre surpreende. Cantado em poemas e canções, desde tempos imemoriais, ele continua fascinando.
A Lírica de Camões tem poemas sobre o  Amor, famosos há  séculos  e  sempre  atuais. Ele diz sobre os  paradoxos desse  sentimento que  atrai  e  amedronta: “Tanto do  meu estado me  acho incerto, / Que em vivo ardor tremendo estou de  frio, / Sem causa  justamente choro e rio, / O mundo todo abarco e nada aperto.” Os Amantes têm tudo e nada, experimentam glória e perdição. Eu mesma, em um poema,  com o título Antissentimento, tento deslindar esse  sentimento misterioso,  onde, paradoxalmente, afirmo  que quem   conhece o Amor acaba  por  experimentar céus e infernos, perda  da paz, felicidade e medo, alegrias e dúvidas, insegurança. Os Amantes são seres privilegiados, porém o prêmio que  devera  ser  alegria, tem  alto preço: “ Só nostalgia, amargura, a dor dos assinalados em desgraça./ Dos mortos na dúvida,/
Sufocamento sem fim / Porque o epílogo fatal, / Prova sempre, efêmero e  falaz, / Que o amante sorve  o veneno / Todavia não morre do mal”.
          Por que introdução tão longa? Afinal, como diz o título, eu só queria narrar duas histórias verídicas sobre o tema e em ambas reina o inesperado, uma trama sem autor, intrigante. Vamos aos fatos.
          Nosso herói se casara com uma moça inteligente, séria, sensata, que lhe deu uma bela filha. Mas algo o incomodava: a esposa não era muito bonita. Mas ele também não.  Depois de alguns anos, começaram a se desentender, veio o divórcio.
          Aborrecido, nosso herói prometeu a si mesmo: quando se casasse de novo, seria com uma mulher bela, linda. Queria acordar feliz e realizado, olhar ao lado e ver uma deusa de beleza, uma perfeição. Afinal ele conseguiu encontrar sua eleita. Ela era uma obra-prima da Natureza.
          Ora, felicidade tem seu preço. E às vezes muito alto... A nova esposa gastava muito, em tolices, roupas, sapatos, perfumes importados, joias. Um poço sem fim. Ele suportava tudo, encantado com a mulher divinal, belíssima, que dormia com ele, todas as noites.
          Ela exagerou. Começou a gastar com sua família, que era numerosa: dentista para os irmãos, Colégio para as irmãs, planos de saúde para o pai, a mãe e a récua  toda. Ele se desesperou, vendo todo seu dinheiro escorrer-lhe pelos dedos. Um dia ela o abandonou, deixando uma dívida  imensa. Dez anos depois, nossa pobre vítima arcava ainda com inúmeras prestações, um pesadelo. Nunca mais ele se casou e não entendeu nunca a cilada do destino, o preço da concretização de seu sonho.
          O segundo caso tem também uma vítima, uma cilada do Amor. A prima miúda e insossa desfilava pela cidadezinha, apresentando o belo espanhol que viera da Galícia, para se casar com ela. Mostrava o moço lindo, magro, alto, de bastos cabelos meio ondulados e uns inacreditáveis olhos esverdeados, que às vezes eram meio cinzentos. Apresentou-o a todas as moças, menos para  Lena. Também, ele não iria se interessar por aquela moça alta, pestanuda, de sobrancelhas cerradas, peitos volumosos e quadris grandes.
          Cidade pequena é uma ilha, onde todos se encontram. A prima apresentou Lena ao jovem espanhol. Olharam-se e o mistério aconteceu. Ele apanhou  uma  rosa vermelha  no jardim ao lado, ofereceu a Lena,  dizendo: Uma rosa à mais linda moça da Cidade. Ela corou e aceitou a prenda. Três meses depois casaram-se na pequena igreja da cidade mineira.


domingo, 16 de fevereiro de 2014

MISTÈRIOS DA POESIA

MISTÈRIOS DA  POESIA
Um dia desses eu fugi para um mundo lírico, sem malas, mas com asas e aterrissei na Poesia.  A culpa é do Manoel de Barros, que diz coisas encantadas em seu mundo, só dele. Sua linguagem, as metáforas, até os neologismos, tudo é passaporte para o mistério poético.
Por Deus, que homem é este?! Em que mundo vive? Eu já conhecia a obra Poesia Completa de Manoel de Barros, da Texto Editores Ltda., publicada em 2010. Eu já me encantara, até escrevi um texto sobre o alumbramento em que mergulhei, quando li seus poemas.
Eis que a amiga querida nos presenteou com o livro Compêndio para Uso dos Pássaros, da mesma Editora, também de 2010. Ali, nas orelhas, ele, MB, confessa: “ Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão”.
Lendo e relendo essa obra encantada, descobri entre os poemas, nas páginas 37 e 38, definições de Poesia, algo que muitos poetas já tentaram. Manoel de Barros diz, no poema Experimentando a Manhã Nos Galos: “... poesia é / __é como a boca / dos ventos / na harpa / nuvem / a comer na árvore/ vazia que/ desfolha noite / raiz entrando / em orvalhos.../ os silêncios sem poro / floresta que oculta / quem aparece / como quem fala / desaparece na boca/ cigarra que estoura o / crepúsculo / que a contém / o beijo dos rios  /  aberto nos campos / espalmando em  álacres / os pássaros / __ e é livre / como um rumo / nem desconfiado”...
Li dezenas de vezes o poema, tentei adentrar na  semântica daquela inusitada linguagem figurada e estranhamente, em cada leitura, ricos sentidos se apresentavam,  como um lindo móbile, que mudava em cada olhar...  Esse é um dos grandes mistérios da Poesia. Alguém já disse que, ao criar uma metáfora, o Autor e Deus sabem por que e como ela foi criada, seu sentido primeiro. Depois de algum tempo, só a Suprema Sapiência poderá decodificá-la...
Fiquei obsessiva. Queria outras definições de Poetas assinalados, esses seres que têm antenas especiais para captar  o desconhecido mundo que nos rodeia. Mas por quem começar? Há tantos eleitos por Euterpe,a Musa da Poesia. Escolhi um critério. O grande Mário Quintana. Afinal, ele está entre os  melhores e, em 2014, vai ser homenageado pela Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto.
 Na Fortuna Crítica da obra Poesia Completa de Mário Quintana, (Editora Nova Aguilar, primeira edição, em 2005), vários nomes ilustres da Literatura Brasileira fazem depoimentos minuciosos, colocando nosso Poeta entre os mais     importantes do Brasil.
Abro o livro ao acaso e, na página 197, encontro uma raridade poética, que me atrai como um ímã: “Um poema como um gole d’água bebido no escuro. / Como um pobre animal palpitando ferido. / Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna. / Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema. / Triste./ Solitário./ Único. / Ferido de mortal beleza ”.
Fechei o livro, inquieta e frustrada. Desisti. Era procurar pedras preciosas em um tesouro imenso. Só me aquietou um pouco a alma, pensar que tentar definir Poesia é algo complexo e talvez muito individual. Aí, um Anjo Torto, que vive não nas sombras, como o do Drummond, mas na luz das possibilidades, me ciciou brandamente: “Sossega, minha amiga, porque há olhos que só veem a superfície das coisas.  Outros tentam aprofundar na essência.  Poucos possuem raios-x”.  Agradeci a lição preciosa e fui cuidar da vida.




domingo, 9 de fevereiro de 2014

OS OLHOS DE DEUS

                    OS OLHOS DE DEUS
(Texto inspirado em uma gravura de Dalí)
         
 Sobre o monte, os olhos de Deus. Ao longe, o mar. A figura feminina seminua, que se vai, envolta em rósea nuvem. Os olhos femininos de Deus, atrás dos óculos escuros, sérios. Através das lentes, montanhas ao longe e em primeiro plano, figuras masculinas? Contraste da cor ocre da terra e do auriverde do céu, onde nuvens formam desenhos insólitos. Almas que voam?
          A gravura é a anti-insciência humana. O homem ou Deus vendo: “Eternidade: os morituros te saúdam”. Os que vão morrer saúdam a desejada eternidade. Em um átimo, o milagre: “Eternidade: os morituros te beijaram”. O beijo da vida. Os homens não mais são animais que vão morrer. Morte, onde está tua vitória?
          Outro poema de Drummond: O Deus mal Informado. “No caminho onde pisou um deus”, que se perde em estradas, faminto de eternidade, saudoso de existência, “mas a estrada se parte, se milparte, / a seta não aponta destino algum, e o traço ausente / ao homem torna homem novamente.”
O homem é só insciência, derrota, má informação. Culpado até de não ter culpa, morre todo o tempo “no ensaiar errado / que vai a cada instante / desensinando a morte”; o homem, o sobremorrente (delicioso neologismo do Mago de Itabira). O homem, vítima, caça, que sempre foge veloz do tiro e do caçador.
          Drummond vaticina: “Não morres satisfeito, morres desinformado”, Dalí cria o único caminho da antimorte, o antídoto contra o veneno maior, a efemeridade. Só há uma maneira de ser eterno: a Arte. Quando o Artista cria, ele é um deus. De suas mãos demiúrgicas fluem mundos, em um novo Fiat Lux. Recria.
          Sobre o monte avermelhado, resquícios de vida marinha. Mistério do mar sobre a Terra. Água e terra se unem sob os olhos de Deus, aguçados e atentos. Os olhos miram um ponto fixo. O que veem os olhos? Sinédoque de que Criatura? Mistério? Se o Homem é insciência, cegueira, os olhos são de uma Criatura-não-Homem? E se ele foi criado à imagem e semelhança de Deus, os olhos são de um AntiDeus? Do Demônio? Daquele que vê? Os olhos de Dalí. Deus e o Diabo.
          A criatividade dos artistas, dos pintores, dos poetas me impressiona. Que levedo mais rico recebem na sua massa? Os assinalados são escolhidos? O talento nasce com os grandes artistas, uma espécie de perfume aureolando suas almas. O tempo só pode aperfeiçoar a técnica, o fazer. Fico, então, imaginando a cena: o Todo Poderoso mexendo as peças do grande jogo de xadrez da vida. Este brilhará. O outro conseguirá penetrar nos mistérios insondáveis da existência humana.  Àquele darei palavras para exprimir o inefável... O outro terá antenas que poderão captar o imponderável.
          Ao seu lado, um Anjo que pouco sabe  do Jogo da  Criação, interroga-O, abismado: E eles serão felizes, amados? Deus sorri diante de tanta ingenuidade angélica. Realmente, seria pedir demais... O pobre Anjo se afasta ensimesmado, perguntando-se: Então, o dom do talento é prêmio, ou castigo? Não recebe resposta alguma. É mais um mistério da Onisciência Divina.

                            

domingo, 2 de fevereiro de 2014

PROCURA-SE

PROCURA-SE
                                       
        
          Uma Terra onde o Amor se alastre como planta viçosa e o Ódio jamais possa grassar, como praga maldita;
                Um Mundo que não seja alimentado por ideologias escusas, onde se respeitem opiniões contrárias, religiões e filosofias diferentes e que a liberdade de pensamento seja uma lei pétrea;
                Um Universo habitado por seres verdadeiramente humanos, que respeitem a Natureza, que sejam seus Senhores e não seus carrascos;
                Um País onde se amem os Homens, as Mulheres, as Crianças, os Animais e todas as criaturas vivas da Criação Divina;
               Um País, cuja Constituição tenha um só Artigo: o direito assegurado a todo homem de viver íntegra, total e dignamente;
               Um Mundo justo e elevado, onde não haja crimes hediondos e injustiças sociais;
               Um Presidente, messiânico ou não, carismático se possível, todavia um exemplo concreto de credibilidade;    
               Um Governador realmente eleito pelo povo e que, após eleito, não se esqueça de todo seu Programa de Governo e o realize integralmente;
               Uma Cidade onde haja um Prefeito competente, aberto, honesto, preocupado com os problemas prioritários que o cercam e não se perca na realização de projetos grandiosos e sem sentido;
               Senadores, Deputados e Vereadores que trabalhem para o povo e que ofereçam suas vidas ao serviço dele;
               Um lugar para se viver, onde os Profissionais sejam bem formados, ativos, dinâmicos, sempre atualizados, éticos, visando crescer e servir o povo;
               Um País livre da corrupção, da violência, da impunidade, do preconceito, dos sofismas, das falsas promessas, das Drogas;
               Um Povo pacífico, sem ser passivo, amante da Paz e da Verdade, cheio de Idealismo, avesso a mentiras, inimigo da ambição desregrada;
               Uma Sociedade cônscia, justa, amante das Artes, da Justiça Social e do Bem Comum;
               Uma Pasárgada, onde os Amantes, sem imposição da lei, de papéis e obrigações de estado, sejam livres para se amarem a qualquer hora, na grama, sob as árvores, entre as flores;
               Uma Imprensa sem censura, só com matérias de primeira qualidade, com leitores inteligentes, perspicazes e sensíveis;
               Uma Escola, onde os Alunos sejam o centro, a finalidade primeira, para que eles cresçam para a vida e só aprendam lições de sabedoria e de amor;
               Casa própria para morar, de preferência térrea, com jardim, muita flor, quintal e cachorro, sem obrigação de pagar IPTU;
               Amizade verdadeira, fraterna, compreensiva, cheia de amor e despreocupada com o julgamento dos pobres de espírito;
               Um Amor eterno, ou pelo menos infinito enquanto dure;
               Uma vida feliz, repleta só de bons acontecimentos, livre do tédio, das doenças, das desgraças, como traição, dor no dentista, imposto de renda, velório e  missa de 7º dia;
               Uma morte breve, doce e suave, após uma vida longa, fértil e plena;
               Um Sacerdote santo, para ajudar, quando chegar a hora derradeira e resolver todas as questões da Grande Viagem, inclusive o Passaporte;
               Uma fé ardente que creia em um Deus onisciente, sábio e bom, que conheça bem sua Criação e possa perdoar, entender todas as suas carências e fraquezas.


                

domingo, 26 de janeiro de 2014

UM FIO DE ESPERANÇA

UM FIO DE ESPERANÇA

É comum afirmar que o povo só aprecia o que é de mau gosto, superficial e vazio. Errado. Três depoimentos talvez possam comprovar o contrário, que há uma tênue esperança do surgimento de uma nova realidade.
Em janeiro terminou a novela O Cravo e a Rosa, em reprise, no programa Vale a Pena Ver de Novo, na Globo. Foi um sucesso, como da primeira vez, com ibope alto. Ora, a obra de Walcyr Carrasco e Mário Teixeira, com a colaboração de Duca Rachid, é uma adaptação da comédia de Shakespeare, A Megera Domada.  No texto, várias vezes dois protagonistas recitam versos de poetas famosos, principalmente do soneto de Camões: “O Amor é um fogo que arde em se ver; / É dor que dói e não se sente; / É um contentamento descontente, / É dor que desatina sem doer”. Jamais um poeta cantou os paradoxos do Amor, como o autor dos Lusíadas, cuja obra lírica é considerada uma das melhores da Literatura Universal. Sem sombra de dúvidas, a excelente novela também faz a apologia do Amor, único sentimento que pode trazer felicidade aos Amantes, cita frases célebres, é enriquecida de fina ironia. Apesar do maniqueísmo, outro ponto positivo da trama é realçar a figura do professor, em um enfoque positivo de homem pobre, todavia culto, honesto, íntegro e nobre.
Tento enfatizar que o gosto popular sabe também apreciar o que é bom, mais erudito.  O segundo depoimento é pessoal. Escrevo no Caderno C, no jornal A Cidade, há quase dez anos. Tenho liberdade de escolha dos temas. Também respeito os Leitores, que, para mim, são sempre um mistério. Vario de gênero nos textos, que são ora muito simples e accessíveis, ora bem jornalísticos, com linguagem mais denotativa, outras vezes mais literária, usando a conotação e assuntos mais complexos. Ora, aprecio muito a arte de Dalí, sobre a qual há críticas controversas. Conheço o Museu Dalí, em Figueras, na Espanha, na Região da Cataluña, Província de Girona. O surrealismo de Salvador Dalí impressiona, surpreende, atrai visitantes do mundo inteiro.
Há algum tempo resolvi usar minha coluna descrevendo um quadro de Dalí, comentando sua beleza, complexidade e criatividade singular. Confesso que se o assunto me agradava, todavia o artigo teria talvez poucos leitores. Para minha surpresa, tive um grande retorno, com e-mails e telefonemas dizendo terem apreciado o que escrevi e um recado me surpreendeu sobremaneira: “Sou borracheiro, entendo pouco de Arte, mas seu artigo foi um os mais belos textos que já li”.   Reelaborei o texto, completando-o e, a pedidos, brevemente voltarei a publicá-lo.
          O terceiro depoimento é mais convincente, pois fala do gosto do povo, do que ele aprecia. Em uma das Feiras do Livro, deu-se o encerramento com a Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto tocando músicas clássicas, na Praça XV. Era uma linda manhã fresca e azul; compareceu uma multidão de seis mil pessoas. O povo gostou muito, ficou em um silêncio quase religioso, aplaudiu com entusiasmo.  Foi um exemplo de bom gosto e sensibilidade.

          Assim, volto a enfatizar: o povo parece gostar só do que é ruim, não tem capacidade de apreciar o que é belo, mais elevado e sutil. Não é verdade. Talvez seu propalado mau gosto seja fruto da falta de oportunidade de provar o que é bom.  A comida caseira, que lhe é oferecida todos os dias, principalmente pela Televisão, é um fast-food de péssima qualidade.  É hora de mudar o cardápio, pois o aforisma popular já denuncia: O mau hábito faz o monge.  

domingo, 19 de janeiro de 2014

LINGUAGEM E EMOÇÃO

LINGUAGEM E EMOÇÃO
         
Parafraseando a filosofia de Buffon, o vocabulário é o homem. Ora, a Estilística enfoca o problema na Linguagem Afetiva, de maneira pitoresca. Tal linguagem pode significar carinho ou desprezo. Tudo depende do tom, da pontuação, do contexto. Cachorro é um animal maravilhoso e pode-se até medir a cultura e a sensibilidade de quem convive com ele, valorizando-o. Uma simples exclamação diante do termo cachorro, dito a um ser humano, é ofensa gravíssima. O mesmo acontece com o termo vaca.
          A Linguagem Afetiva, quando conota sentido pejorativo, serve também para o humor, jogos semânticos. Há pouco se veiculou na internet, em um vídeo interessante: passa uma mulher de carro e ela grita para um homem, quando os veículos se cruzam: Cavalo! O herói, ferido nos brios, retruca: Vaca! No quadro seguinte, despenca literalmente um cavalo sobre o carro dele, ficando só as patas do animal por fora do para-brisa...
          A introdução é para comentar um episódio hilário, sobre mais um dos repetidos, no passado; o nosso então presidente, Luís Inácio Lula da Silva, usou no discurso de almoço de fim de ano, com 140 oficiais presentes, a expressão bando de generais”. Evidentemente, o pobre Lula nunca foi muito familiarizado com substantivos coletivos.“Bando” pode ser usado para pessoas e animais, mas no primeiro caso é sempre pejorativo, sinônimo de chusma, magote, choldra, joldra. Os importantes militares não perdoaram, dizendo do presidente, no jornal O Estado de São Paulo: “O beócio aproveitou sua forma de falar besteiras para praticar covarde agressão”. Não discutamos quem tem razão, qual foi a intenção do terrível lapso presidencial. Interessante é o adjetivo substantivado que os militares usaram: “beócio” (sujeito inculto e despreparado). Como se sabe, as palavras têm vida, exprimem status, estilo, caem em desuso. Quem ainda usa “beócio” é antigo, meio obsoleto, rígido, avesso a modernidades...
          Os exemplos continuam. Conheci uma doméstica que amava assistir a novelas de televisão, principalmente as de época. Quando isso acontecia e ela brigava com o filho, seu vocabulário era esclarecedor. De dedo em riste, gritava para ele: biltre, energúmeno, pascácio, parvo, lorpa, nécio!
          Alguns professores têm um vocabulário especial para  classificar, com ironia, alunos desatentos ou curtos de raciocínio : Rui Barbosa! De maneira mais sarcástica: QI de dois dígitos! Camarão! Espiroqueta! Filhote de jabuti com lesma!
          Quase todas as línguas são ricas, semanticamente, em termos ofensivos. Há os de baixo calão, conhecidos no mundo todo e alguns interessantes: Yellow e Chicken (covarde, poltrão, desprezível) em inglês; salaud, mufle, saligaud, cochon, butor, cocu (salafrário, cafajeste e outras delicadezas, em francês). A língua, no entanto, é tão pitoresca, que, até hoje, na França, dizer a alguém “merde”, três vezes, antes de um show, peça teatral, espetáculo, é desejar sorte.
          Assim a Linguagem Afetiva é dinâmica e movida a sensações, raiva, desprezo ou carinho. Há também gestos muito expressivos que falam mais que palavras. Veja-se o exemplo do deselegante piloto norte-americano, que, há algum tempo, fez, em público, um gesto obsceno famoso no mundo todo. Engraçado como a História se repete. Dizem que a queda de Collor começou quando ele foi flagrado por um fotógrafo fazendo o mesmo gesto, com o dedo médio...
          Sem ofensa, mas se meus queridos leitores acharem o assunto inócuo e pífio, ouso afirmar sobre minha tese: “Se non é vero, é bene trovato”.


domingo, 12 de janeiro de 2014

ANTISSENTIMENTO

                  ANTISSENTIMENTO

                    O amor não é bom
                    Ele quer o mal
                    Sente inveja e se envaidece
                    Da paz que se foi.
                    É jamais ganhar, só perder
                    Na dor, na dúvida, no medo
                    Da falácia, instável sensação
                    Da ânsia, do vazio, do oco
                    Da roubada alma.
                    É por vontade sonhar horizontes
                    E morrer sufocada entre montes
                    Grilhões do não saber
                    Quando ainda nem se viveu
                    E o fim já se delineou.
                    É servir, escravos os dois
                    Não há senhor / vencedor
                    Só nostalgia, amargura, a dor
                    Dos assinalados em desgraça.
                    Dos mortos na dúvida
                    Sufocamento sem fim
                    Porque o epílogo fatal
                    Prova sempre, efêmero, falaz
                    Que o amante sorve o veneno
                    Todavia não morre do mal.


                  CONFITEOR

                    De há muito eu te esperava
                    Sem saber que trazias
                    A chave de todos os mistérios.
                    Eras a resposta sagrada
                    Tesouro para mim guardado
                    Desde tempos imemoriais.
                    Hoje, quando me cobres
                    Com tuas asas de homem
                    De anjo? Transformas a vida
                    Em doce e manso happening
                    No paraíso só nosso
                    Ao nosso amor destinado.
                    Ah, Amado, é o verde, o silêncio
                    As flores coloridas que emolduram
                    Nosso ninho cálido, a brisa
                    Ou são tuas mãos tépidas
                    Que curam as chagas
                    Que a vida me presenteou
                    Como alçapões malditos
                    No inesperado das madrugadas?
                    Tu me tomas pelas mãos e dizes:
                    Vem, irmã, companheira, mulher minha,
                    O tempo dos sonhos e pesadelos
                    Tudo terminou. Sorris iluminado.
                    Como um deus, como meu homem.
                    Tu és plural. Menino, mago
                    Selvagem animal quando me possuis.
                    E tudo é belo, tem sentido
                    Porque sei que és meu
                    Nesta doce e mágica troca.
                                                
                                                     Ely Vieitez Lisboa

(*)Do livro Replantio de Outono, 2008.


                   
                             




domingo, 5 de janeiro de 2014

JANEIRO

JANEIRO

Os meses do ano têm características próprias bem definidas. Janeiro é sinônimo de recomeço, esperança da concretização dos sonhos falidos. Começamos o mês cheios de fé, boas intenções e promessas, nessa espécie de segunda chance.
          Jano (em latim Janus) foi um deus romano que deu origem ao nome do mês de janeiro. A figura de Jano é associada a portas (entrada e saída), bem como transições. A sua face dupla também simboliza o passado e o futuro. É o deus dos inícios, das decisões e escolhas. O maior monumento em sua glória se encontra em Roma. Jano foi o responsável pela idade de ouro da cidade italiana Lácio, trazendo dinheiro e agricultura à região. O seu nome também evoca  trocas e colheitas.
          Assim, talvez  janeiro seja o mais significativo dos meses; ele  acolhe dois signos, Capricórnio (de 22 de dezembro até 20 de janeiro) e Aquário (de 21 de janeiro até 19 de fevereiro). Todos conhecem um pouco de Astrologia. Conforme ela, o signo corresponde ao período do mês que a pessoa nasceu e traz características pessoais, como o agir em certas situações. Os capricornianos são mais orientados para o trabalho, a disciplina e a persistência. O signo de Aquário simboliza pensamentos avançados, tendência para o infinito, aceitação de vários pontos de vista, sabedoria universal inerente aos pensamentos e às ações.
          Como se vê, janeiro é um mês eufórico, termo usado na Semiótica, significando tempo feliz, que traz alegria. Um mês positivo, promissor, isto é, promitente, cheio de promessas, auspicioso, próspero.
          Ando com a bizarra tendência de analisar e acreditar em fatos complexos, sem prova científica, possibilidades inefáveis, até em superstições. A culpa é do meu signo. Os sagitarianos são positivos, versáteis e o desconhecido os encanta.  Mentes abertas, confiáveis, honestos, bons, sinceros, cheios de idealismo. Muitas vezes fui chamada de crédula, até de ingênua, por acreditar muito nas pessoas e no happy end dos filmes da vida.
          Não sou um Cândido, personagem de Voltaire (1759), nem tenho a Síndrome de Pollyana, pessoa exacerbadamente otimista, que vê a vida por um prisma róseo e com ingenuidade; esta Síndrome leva o nome da personagem de Eleanor H. Porter.
          Voltemos ao mês de janeiro. No último dia do ano, tem-se o hábito de, nas grandes cidades, jogar papel picado das janelas dos altos edifícios. É uma metáfora interessante, espécie de mensagem: eliminemos o supérfluo, as tristezas, os fracassos do ano anterior. É hora de recomeçar.
          Penso que a vida é um espetáculo teatral. Enquanto o Ano Velho que já teve seu papel principal na Grande Peça, agora fraco e alquebrado se despede, cheio de frustrações, o Ano Novo, nas coxias, símbolo de recomeço, espera, para iniciar seu reinado. O script da Peça é sempre muito parecido, mas é preciso sonhar, mola mestra da existência. A pergunta angustiante: quem é o Autor da Peça? Não seria o texto um happening,  procedimento teatral em que os atores vão criando seu papel sem trama pré-determinada? E qual é o papel do Diabo, quando se pressupõe, pretensamente, que o Diretor é Deus? Algo muito importante é a sonoplastia, a música que embeleza a Peça. Seu título: Esperança.
          No dia primeiro de janeiro, tudo recomeça. Há algo belo que se vê nessa Porta de Entrada do Ano Novo. Na Divina Comédia de Dante Alighieri, na entrada do Inferno há uma mensagem lúgubre.  Parafraseando o aviso, às avessas, no pórtico do novo Ano está gravado: “Mantende sempre a esperança, vós que entrais”.