terça-feira, 29 de maio de 2012


A  MUSA DE CAMPO GRANDE
        
Raquel  Naveira deve ter feito um pacto com Atena, Deusa das Artes. Dotada de uma versatilidade única, escreve prosa e verso, declama, leciona, tem um programa de TV e, em seu dinamismo, corre o país dando palestras, declamando, participando ativamente da vida cultural.
Nascida em Campo Grande, entende-se por  que recebeu o epíteto de Emblema Sagrado da Poesia Sul-mato-grossense. Laureada pela crítica, obteve Prêmios expressivos, com elogios de grandes escritores e críticos literários.
É advogada e professora; isto talvez explique sua lucidez e vasto conhecimento da língua portuguesa e a grande atração pela História, os heróis e seus feitos. Mergulha  nos mitos e lendas dos mais diversos países, na Arte e daí sai plena de inspiração para seus poemas.
Sua obra é rica e variada; entre outras,  citem-se: Via Sacra (1989), Fonte Luminosa (1990), Nunca Te-Vi (1991), Sob os Cedros do Senhor (1994), Senhora (1999), Casa e Castelo (2002). Sobressai-se também no gênero da prosa poética e seu livro infanto juvenil Pele de Jambo (1996) narra memórias da infância entre dois mundos, o campo e a metrópole, alicerçadas na  história, nos costumes e nas crenças, na linguagem dos brasileiros e dos paraguaios da fronteira.
A obra Casa e Castelo, de RN, traz poemas dos livros Casa de Tecla e Senhora. Poder-se-ia dar como característica dos poemas, a rica inspiração recriando Mitos, personagens históricas, grandes escritores e poetas e/ou telas famosas de pintores consagrados. É uma poesia atemporal, que vai da Mitologia Grega,  aos poetas românticos como Castro Alves, ele mesmo um mito de juventude, ousadia e beleza: o poema Carta a Antônio de Castro Alves, pelo romantismo e sensualismo forte, lembra a figura do herói biografado por Jorge Amado.
A obra de Raquel Naveira tem características muito marcantes, que realçam sobremaneira um grande sentimento telúrico, a clareza e a poesia dos rios e dos igarapés. Ela é  a Náiade do Pantanal, a fiandeira de histórias lindas. A grande poetisa se insere nas lendas, torna-se personagem viva e palpitante, no tempo circular e mítico. Ela parece sentir-se bem lá, no seu reino, nos castelos, entre muralhas, nos adros, nas justas,  com cavaleiros e seus brasões, arautos, trovadores e menestréis.
Raquel habita os Mitos, a história de países mágicos, convive com heróis e heroínas. Seu olhar perspicaz nada perde, perscruta. No belo poema Rosalía, em homenagem à poetisa Rosalia de Castro, de Santiago de Compostela (1837-1885). RN recria magistralmente, no poema, a figura, a vida, a obra e os infortúnios da maior poetisa galega, com cores fortes, texto rico e descritivo que se alteia, no final para o infinito, em uma visão macroscópica notável.
Enfim, poder-se-ia nesta breve abordagem realçar três características marcantes nos poemas da poeta Raquel Naveira: linguagem figurada riquíssima, plena de alusões históricas,  mitológicas e bíblicas; simplicidade linguística, um forte e delicado sensualismo, que valoriza muito o lirismo mágico desta poetisa notável.



segunda-feira, 21 de maio de 2012


RIBAMAR DE JOSÉ CASTELLO

            São cada vez mais raros os escritores estilistas, isto é, aqueles que têm grande riqueza de linguagem ou de procedimentos literários e não se preocupam apenas em contar uma bela história Em contrapartida,    nos Estados Unidos até Escolas Superiores que ensinam aos escritores como escrever um best-seller de sucesso, isto é, o tipo de romance de trama rica, que atrai o público, obras que dão excelentes adaptações para o cinema. É uma literatura chamativa e comercial.
            José Castello é jornalista, cronista, repórter literário , biógrafo e um grande romancista. Não é aleatório que ele já tenha recebido um Prêmio Jabuti e agora, com Ribamar ( Editora Bertrand Brasil Ltda. Rio de Janeiro, 2010), obteve, de novo, a expressiva premiação. É uma obra muito original, singular.  Nela, o romancista e o crítico se mesclam, pois, de certa maneira, o romance é uma análise profunda de Carta ao Pai, de Kafka.
            Os dois livros e as personagens se misturam em uma quase consubstanciação literária. Dois filhos sofrendo, procurando sua identidade e a do pai, criatura bizarra, incompreensível. O notável , porém, é que nesta procura, em     Ribamar o narrador / filho se transcende e se alteia ao universal, concretizando uma síndrome de solidão e de sofrimento.
            Outro procedimento literário notável é que o romance, em última hipótese, é uma metalinguagem. Como e para  que escrever, quando se tem a alma “fechada a cadeado”. As palavras são perigosas, traem. Ao serem usadas, a literatura se transforma em um caminho para o autoconhecimento. Todavia, ao mesmo tempo,  a literatura é uma chave. Instrumento inútil que não corresponde a nenhuma fechadura. Uma chave que atesta o fracasso de todas as chaves”.
            Seguindo as veredas sombrias de Franz Kafka, o narrador de Ribamar diz: “ Não chegarei a escrever o livro que escreverei”. Seguem outras assertivas amargas:  “Os filhos__ como os vampiros__ sugam as forças do pai”; ou “Diz-se que eles “se identificam”, mas o que se passa é bem mais violento: eles o “devoram”.
            Assim, Ribamar é um romance amargo, profundo, caminho único de uma procura, porque “Existir é vigiar”; surge também o paradoxo: “Falamos para não falar. A língua não como comunicação ou expressão, mas como castração”; porém, “só a literatura pode dar conta” e então, o livro deve nascer, como redenção.
            “Ler é expor-se” diz o narrador de Ribamar.  Nas orelhas do livro, Gonçalo Tavares alerta: é um livro que nos interpreta. Esta asserção pode  ser ratificada em outros textos de José Castello.  Durante a leitura do novo romance de JC, aprende-se muito o que é ler, como a literatura é um instrumento que pode ser usado pelo leitor perspicaz, como um dos caminhos para conhecer a si próprio.
             Romance rico e complexo, Ribamar apresenta, todavia, capítulos curtos e de leitura agradável. A linguagem pretensamente simples e clara, é também um paradoxo. O livro, na realidade, é um caminho intrincado, trágico, labirinto onde o leitor ingênuo  pode mergulhar em dúvidas abissais, sem respostas, nos emaranhados silogismos perigosos, quando tudo pode ser falso ou verdadeiro.
            Sempre que se lê José Castello, a sensação é semelhante. Ele mais  suscita questionamentos que os responde. No entanto, sai-se enriquecido da leitura. Contudo, ao comentá-la, tem-se a certeza de que só se arranhou um tesouro precioso. Boa literatura é assim: atraente, mas frustrante, porque se percebe que a sobra é um feudo cerrado.
            Comprovando isto, basta ler o final do romance    Ribamar. Pura ousadia, com ricas interpretações que nos lançam nas mais variadas
 elucubrações.



segunda-feira, 14 de maio de 2012


MINHA HEROÍNA

            Olho-a com carinho, para sua pele fresca, os olhos vivos, o cabelo cor de trigo. Nada diz que tem noventa e três anos. Às vezes brinca, diz coisas picantes, como se fora uma adolescente ousada. Adora ver homens belos, na vida, em revistas, na televisão.
            Acompanhei os longos exercícios com seu fisioterapeuta e fiquei surpresa: na sua idade, eu terei aquele vigor? Ela obedece ao jovem que orienta sua ginástica, os movimentos, como se ele fosse um semideus. Prefere vê-lo com camisas coloridas e não com seu uniforme de profissional da saúde. Várias vezes elogiou seu sorriso, o rosto brejeiro, a delicadeza que lhe dá as ordens ou a conduz no andador.
            Agora está na varanda. A brisa brinca nos seus cabelos e ela se encanta com o verde do grande gramado, das cercas vivas de murta, com as flores. Alguns pássaros ousados vêm quase aos seus pés. As duas cachorras labradoras, verdadeiras pumas de veludo marrom, com seus olhos felinos, esverdeados, chegam até ela e lhe lambem os pés e as mãos. Ela sorri enternecida.                     
            Há uma harmonia nas cores, no azul límpido do céu, nas primaveras e nas orquídeas, que florescem alvissareiras. À esquerda, um vaso de ciclamens e um pequeno pé de azálea trocam murmúrios. Tudo dá paz e a sensação boa que o local é um santuário. Momento mágico.
           De repente um bem-te-vi grande, de peito amarelo, pousa sobre o gradil da varanda. Ele sempre aparece, com sua fêmea e dois filhotes.  Ergo os olhos para as alegres maritacas que fazem algazarra ao redor do mamoeiro pejado de frutos maduros.
           Minha heroína tudo vê e compreende. É a paz que chegou, após tantos anos de batalhas difíceis, de guerra. Olho para ela. Pendeu um pouco a cabeça e parece que dorme. Ou reza? Depois levanta o rosto e seus olhos se perdem no horizonte. Só ela e Deus sabem o que está pensando naquele instante.
            Lendo o texto acima fico melancólica. Ele foi escrito há dois anos. O que mudou? Na aparência, minha heroína, minha mãe, não mudou muito. Um dia desses ela foi fazer exames rotineiros, no Hospital. Ao seu lado estava um paciente de 85 e uma mulher de 86 anos. Ela parecia filha deles. Sempre sorridente, calma, aceita suas deficiências pacientemente. Em casa, quer a televisão sempre ligada, come e dorme bem. Apenas algumas coisas mudaram, desde que quebrou um fêmur e depois o outro, tendo que tomar anestesia duas vezes.
            Já não é a mesma. Algo vem acontecendo com seus neurônios, ela entende muita coisa, às vezes reconhece poucas pessoas íntimas, mas perdeu a capacidade de verbalizar. Responde com monossílabos, afirma ou nega quando lhe ofereço algo. Continua vaidosa, gosta de roupas novas e no dia em que a jovem vem pintar-lhe os cabelos e fazer-lhe as unhas, fica alegre.
             Quando estou ao seu lado, fazendo-lhe companhia, fico a olhá-la no leito. Às vezes é ela que me fita durante muito tempo. Pela minha cabeça passam todos os anos que vivemos juntas, há muitas décadas. Tenho saudade da mulher alegre, brincalhona, muito vaidosa, que me acompanhava em viagens inesquecíveis ao exterior. Ou de infindáveis noites, quando, juntas, assistíamos a vários filmes, varando as madrugadas. Nunca fomos realmente mãe e filha, mas duas amigas inseparáveis.
            Sorrio para ela, ela corresponde. Faço uma oração pedindo a Deus que ela ainda fique bastante tempo comigo. Ela me olha muito e parece entender, confirmando o pedido.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

BUGANVÍLIAS


BUGANVÍLIAS


Para quem não sabe, o verdadeiro nome das flores conhecidas como Primaveras é Buganvílias. O povo, como sempre, optou por algo mais simples, menos pomposo, erudito. Por toda a cidade, as Primaveras coloridas enfeitam os muros, as casas, em um festival de cores. Elas são alvas, cor de palha, amarelas, róseas, vermelhas, cor de maravilha.
As flores são vistas de acordo com nosso estado de alma. Por isso riem, dançam ao vento, inclinam-se em graciosas reverências, pranteiam os mortos. Minha casa é rodeada de verde, protegida por cercas vivas de murta fresca, que brincam com a brisa. No chão, a grama esmeralda. Resolveu-se então enfeitá-la de pés esguios de Primaveras que, alegres,  em pouco tempo explodiram em flores. Há uma que nos presenteou com uma inacreditável penca florida, rósea, que permaneceu bela por um mês inteiro. Defronte nosso quarto, uma delas, de metro e meio de altura, encheu-se de campânulas rubras, sensuais e ousadas. Há arbustos pequeninos tão cheio de flores, que as folhas quase não aparecem. As brancas são um deslumbramento.
Na frente da casa, em um casarão lindo, cor de tijolo, sempre fechado e silencioso, Primaveras brancas invadiram a cerca, derramando-se sobre a murta. À direita e à esquerda, limitando nosso terreno, há dois pés de resedá, que vivem arqueados de florinhas arroxeadas.
Meu primeiro livro de poemas, “A Encantadora de Serpentes”, é triste e sombrio. Documento de tragédias. Lembro-me do menino de dez anos, pedindo-me para lê-lo. Mas, meu querido, disse-lhe eu, você não vai gostar, o livro é muito amargo... Jamais me esquecerei de sua resposta inesperada: Mas eu adoro livro amargo...
Realmente, o livro é um estado de alma. Indiscutível, é ser também a literatura uma válvula de escape. Escrever é catártico. Assim, um mesmo autor pode ter livros amargos, pessimistas, cheios de dor ou de alegria. Alguns anos depois de escrever A Encantadora de Serpentes vieram à luz dois livros de poemas: Paixão Desmedida e Cânticos de Amor ao Amado. O primeiro foi escrito durante um mês,  na Europa , em plena primavera. Como produzir literatura triste e cheia de dor, quando se está rodeada de tanta beleza florida, de bosques belos, céu azul, brisa doce brincando nos cabelos?
Outra lição que a literatura nos dá é sobre o dinamismo da vida, de tudo. Não há dor que não se acabe, nem atestado de garantia da felicidade. Assim, a filosofia de Horácio parece ser mais sábia. O Carpe Diem: aproveite o momento, viva à exaustão todo minuto do presente, quando a vida lhe presenteia com algum mimo, com alguma surpresa boa,  alegrias. Tudo é célere, efêmero, falaz. Como o próprio homem.  
Na página 77 do meu livro cinzento ( a alma também estava...)  há um poema com o título Buganvílias. As duas primeiras estrofes descrevem um muro branco, coberto de buganvílias “alegres, roxo-vivas, alvissareiras”. As duas últimas são o retrato da tristeza: “Coloridas primaveras nos meus níveos muros, / murcharam rápidas, sem doces eflúvios, / céleres, efêmeras, desvanecidas... / Para onde foram minhas pobres flores? / Por que tanta solidão no muro vazio, / no branco vago desta insulsa vida?”.
Olho para o passado triste, mas quem me consola é o presente poético, cheio de paz. A alma agradece.

POEMA DO MAIS TRISTE MAIO


                        POEMA DO MAIS TRISTE MAIO
                 
                                               Acabou a idade das rosas!
                                               Das rosas, dos lírios, dos nardos
                                               E outras espécies olorosas:
                                               É chegado o tempo dos cardos.
                                                                       (Manuel Bandeira)

                  Todo poeta é um profeta e a poesia, profecias sibilinas da vida do pobre homem, neste planeta cruel. Na estrofe em epígrafe, Manuel Bandeira ainda é otimista, pois cita ter havido uma “idade das rosas” que findou. Entende-se. Na realidade, ela não existe, nunca existiu, nós é que, quando jovens, vemos a vida com olhos róseos e criamos sonhos, ilusões (benditas quimeras!) que mais tarde esboroam, implodem, tudo movido por força implacável. É bizarro porque o processo se repete sempiternamente. O adulto é o jovem que amargurou, vinho transmutado em vinagre, nos anos, pelas mais variadas causas. O amor, os relacionamentos, a profissão, os ideais, nada escapa à fúria do tempo e de suas traças malditas.
                  Parece mórbida esta repetição inexorável, com raras exceções. Por que, mesmo conhecendo o fim do filme da vida, o homem continua indo ao cinema da existência? Não há surpresas: o final é terrível, inesperado ou tragicamente delongado por alguma doença. A decadência vem cedo, os membros ficam mais vagarosos, degenera o sexo, rareiam os sonhos (e às vezes os cabelos), mudam-se as feições, embaça a pele, aos poucos surge toda uma síndrome irreversível.
                  A única explicação plausível é que o verdadeiro espetáculo não é aqui. Neste mundo conturbado só se dá o ensaio. Há, no entanto, algo bonito, comovente e lírico. Lúcido, sabendo de tudo isto, o ser humano ainda se permite alegria, arrebatamento, momentos felizes. Sabe-se que a felicidade está alicerçada no efêmero, no passageiro. Talvez o grandioso esteja nesta fragilidade. O destino do homem é belo como as tragédias clássicas, que têm regras imutáveis pré-estabelecidas, sempre com um final infeliz. É uma tragicidade bela e digna. Sonhar, mesmo sabendo-se fugaz, é algo excelso. Sublime porque, embora conheça lucidamente o processo implacável, o homem tem fé, acredita que, acabado o Espetáculo de nonsense, uma possível existência eterna, harmoniosa, alicerçada em outros valores, poderá vir. Assim, apesar deste mundo insólito, repleto de incongruências, falácias e um macabro festival de absurdos, onde tudo é falaz, transitório, os seres humanos ainda ousam sonhar, eles, que transitam entre o AQUI e o ETERNO, que desconhecem. Há algo de grandeza neste pobre animal glabro, racional, que ri e tem saudade da perfeição que nunca teve. É Cecília Meireles que canta liricamente estes rastros, pegadas que ficam do apenas almejado.  É quando fala, alegoricamente, nos dois dísticos famosos, abaixo:
           
                  Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
                  ao longe, o vento vai falando em mim.

                  E por perder-me é que me vão lembrando,
                   por desfolhar-me é que não tenho fim.
                 
                  A bela Cecília, com seus lindos olhos verdes e luminosos, nos deixa uma mensagem lírica da grandeza humana.