domingo, 28 de julho de 2013

UM CASO DE AMOR


UM CASO DE AMOR

         Não se deve jurar que nunca se fará algo, nem que a vaca tussa, como se diz na deliciosa linguagem popular. E eu, genética e espanholamente convicta de minhas decisões, olhava de viés para o monstro tecnológico, adorado por muitos como o novo bezerro de ouro da Informática.
         Quando começou a sedução? Ouvia falar dos milagres, da rapidez, do modo prático da comunicação, das pesquisas. Para quê? Há os livros, eu dizia renitente. Um dia, um amigo preparou, no computador, o material do meu Laboratório de Redação. Achei uma graça: bonito, bem diagramado, com ilustrações! Eu caíra nos braços do sedutor dos internautas.
         Como em todo caso de amor, o início foi cruel! Desentendimentos, brigas, dificuldades muitas. Como entendê-lo?Ele era diferente de tudo que eu vira antes! Um dia, fiquei furiosa, bati o pé, tentei cem vezes fazer algo que não dava certo, até que uma figurinha esdrúxula, de Einstein, barrigudinho, apareceu na telinha e fez um gesto, abrindo os braços, a perquirir: Afinal, o que você quer? Senti-me como aluna repreendida por incapacidade, burrice, inaptidão.
         Em alguns dias, nós nos entendíamos, ele me obedecia dócil, eu finalizava as tarefas. Em outros, era uma odisseia. Eu me irritava, teimava tanto, que  meu querido companheiro de infortúnio rebelava-se. Travava, não respondia a nenhum comando, nada o obrigava a realizar minhas súplicas. Brigávamos. Ah, é? Eu o desligava diretamente, “no tranco”, tirando a tomada, cortando a energia.
         Ficava dias amuada, infeliz, como em toda briga de namorados. O bom senso vencia. O erro deveria ter sido meu e   não dele. Afinal, ele me dera surpresas bizarras e grandes alegrias. Como no dia em que o professor quis que eu entrasse em um “chat”, para conversar com as pessoas. Procurei uma sala de adultos, mais de 50 anos, entrei e escandalizei-me com os “nick-names” usados, audaciosos, pornográficos: “Cadela no cio”, “Garanhão”, “Bom de cama”, e similares. Desencantei-me, fiz mais uma tentativa, dialoguei com uma jovem que me pareceu lúcida e coerente. Era arquiteta. Perguntou-me, a certa altura: “E você, o que faz?”. “Sou professora de português e de Literatura”. Desastre. Ela escafedeu-se, dizendo: “Cruzes! Eu sou analfabeta!”. Em compensação, comecei a receber tesouros raros, valiosos: textos sérios, fotos belíssimas do mundo todo. Discute-se muito o paradoxal papel do computador, que une e afasta as pessoas, tornando-as comodistas e meio alienadas à realidade. Como sempre, os seres humanos devem encontrar o equilíbrio de tudo que a vida lhes oferece. Assim também o progresso tecnológico pode trazer benesses ou mazelas.
         Tudo ia muito bem entre mim e Bob, meu computador. Eu quase perdera o medo das máquinas. Aí aconteceu o inusitado. Uma noite, fui ao micro, conectei-me à Internet, abri minha Caixa de Entrada dos e-mails. Por Deus! A confusão parecia uma casa assaltada, quando bandidos destroem tudo! Misturaram-se os nomes, datas, meses, anos! Como organizar aquilo? O que aquele monstro fizera? Afastei-me, disse-lhe umas boas, jurei não me aproximar mais.
         Dois dias depois, o milagre. Computador tem Inteligência Artificial? Ele age por conta própria, sem comando? Bob pareceu sorrir, convidando-me para o armistício. Abri-o. Inacreditável! Ele reorganizara toda a centena de e-mails, por nomes, em ordem alfabética, assuntos e datas!
         Estamos em lua-de-mel. Mas estou sempre na defensiva. Ele é um bruxo? Yo no creo en los fantasmas, pero...


domingo, 21 de julho de 2013

UM DOS MALES DO NOSSO SÉCULO

UM DOS MALES DO NOSSO SÉCULO
     
Há temas importantes que, por sua complexidade, devem ser evitados. É         o caso da falência do Ensino, síndrome de sintomas evidentes, facilmente comprovados, de diagnóstico simples e terapêuticas quase impossíveis, praticamente utópicas. Evito falar no assunto, embora me preocupe muito e, quando o faço, sinto-me um João Batista pregando no deserto. Então, por que abordá-lo? É a angústia diante de notícias, jornais televisivos, a realidade dura e cruel, como um tapa.
      Sabe-se que até a Década de Setenta havia poucas Escolas, principalmente as Públicas, um número diminuto de Faculdades; foi quando se deu a chamada Democratização do Ensino. Floresceram escolas dos Cursos Fundamental, Médio e Superior; elas se alastraram pelo País, mas descuidou-se da qualidade, como um grande prédio, de alicerce fraco. E a realidade está aí para comprovar: Ensino falho, alunos que no hoje Fundamental, às vezes não conseguem fazer as quatro operações e não sabem ler, nem escrever. Universitários mal formados, professores despreparados.
         Congressos, especialistas apresentam os diagnósticos cuidadosamente elaborados. As causas são apontadas: desagregação familiar, inversão de valores, falta de apoio político, problemas socioeconômicos gritantes. E a chaga terrível se alastra, com o adubo, o insumo maldito das drogas. É bem verdade que o problema é globalizado, com algumas diferenças. Discute-se exaustivamente a problemática em Congressos, no entanto não surgem soluções concretas.
       Detecta-se, no Brasil, que se lê muito pouco e o resultado é evidente: quem não lê, não escreve.  É bizarro conhecer bem a doença e o antídoto, todavia a cura continua difícil, principalmente por uma afirmativa frívola entre os jovens,  dizendo que  não gostam de ler. É preciso alertá-los, hoje mais do que nunca, que ler não é entretenimento, é necessidade ingente, é remédio contra a ignorância, é cura para quem fala mal, tem pobreza de vocabulário e não sabe redigir. E mais: ler, escrever e falar bem são instrumentos preciosos para o sucesso profissional.
    Por que falar nesse tema tão desgastado? É que tem surgido alguma esperança: as Feiras do Livro, muitas já famosas, Projetos estimulando a leitura, em Alagoas, em Roraima, no Pará e Rio Grande do Sul, onde se disponibiliza opção de leitura a bordo dos ônibus intermunicipais, a implantação de  Bibliotecas em várias cidades do País. Nas Escolas Estaduais e Municipais de Ribeirão Preto há alguns projetos de estímulo à leitura.   É necessário começar pela base, tentando formar pequenos leitores e assegurar que eles não percam o hábito até o final do Ensino Fundamental e do Médio.  Os pais e a Escola precisam ficar atentos a mais este problema.
     Ora, dia 8/7, no jornal A Cidade, saiu uma matéria preocupante: Por dia, 6 alunos largam a Escola, em Ribeirão Preto. Em 2012, dois mil e oitocentos alunos registrados, abandonaram os estudos.  São várias as causas, principalmente pela péssima qualidade do ensino. O problema é tão grave, que merece outro texto, um comentário mais minucioso.              
      Vejo na face do leitor um sinal de reprovação e muitas perguntas. Dirá: com tantos problemas e dificuldades que o povo enfrenta, em casa, na cidade, no País, como cuidar de mais esta tarefa árdua? Como estabelecer prioridades? Realmente, a vida é luta renhida, briga de foice na pinguela, tiroteio no escuro, batalhas contínuas, guerra. Mas quem disse que a vida é fácil? Não é. Hoje e sempre.



domingo, 14 de julho de 2013

DESMITIFICAÇÃO E / OU A INOCÊNCIA PERDIDA

DESMITIFICAÇÃO E / OU A INOCÊNCIA PERDIDA

Sempre me foi doloroso quando algum iconoclasta destruiu um mito que me encantou na infância ou na adolescência.
Mineira, eu amava a figura de Tiradentes, com as barbas e os cabelos longos, a corda grossa no pescoço, o ar de homem bom, que lembrava muito o Cristo. Ele era meu herói, o líder da Inconfidência Mineira, o homem que lutou pela liberdade do Brasil, contra o jugo português. Vibrava com sua valentia, quase a ponto de sair de peito aberto a gritar com entusiasmo: “Libertas quae sera tamen”!  Em uma aula trágica de História, no Colegial, o professor destruiu meu herói. Morreu sim, foi esquartejado, salgaram sua casa para que nada mais ali vingasse, mas ele era o mais pobre, o menos importante do movimento dos Inconfidentes. Como matar um Cláudio Manuel da Costa, ou o fidalgo imponente Tomás Antônio Gonzaga? Na Faculdade foi pior. Teses de pós-graduação punham em dúvida, mesmo sua morte trágica. Ele teria fugido para a África e escapado do castigo execrável.
Decepcionada, infeliz, detestei a nova realidade. Depois foi durante uma visita às Cidades Históricas de Minas. A certa altura, o professor de Literatura Brasileira, que fazia o tour conosco, disse: “Daquela janela, Marília namorava o seu Dirceu, que residia logo acima...”. Todos os versos, as liras do livro “Marília de Dirceu” vieram-me à cabeça, a doçura, a pureza do grande amor  dos dois  personagens  famosos. E o professor completou: “Marília, cujo nome, na verdade, era Maria Dorotéia, não amava Dirceu. Hoje ela seria chamada de “carreirista”, uma jovem quase adolescente, muito ambiciosa, atraída pela fortuna, fidalguia e pelo status de Gonzaga, o elegante português quarentão”. O professor tripudiou sobre minha tristeza. O nosso Dirceu também não a amava tanto assim. Logo que o movimento libertário foi descoberto pelos portugueses, o poeta escafedeu-se para a África, casou-se com mulher rica e analfabeta...
A vida desbotou-se, ficou mais feia, Víboras da dúvida picaram-me o coração, envenenando-o. Com certeza, Romeu e Julieta não morreram jovens, pelo seu amor impossível, Abelardo não foi castrado, Heloísa nunca entrou para o convento. D. Pedro arrancou mesmo leoninamente os corações dos assassinos  de sua adorada Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha? Dante amou a vida toda sua Beatriz, vista de relance em uma janela? Não morreu Fedra de amor, pelo seu Hipólito? Orfeu desceu aos infernos e resgatou Eurídice da morte?
Um mar de dúvidas. Tudo ficção. Lições falsas de beleza para que se engula a realidade insulsa, insípida, tediosa. Uma lástima. Um pesadelo.
De repente, a incerteza virou a maldita Hidra de Lerna, com suas cabeças hiantes. E o Cristo? Quantas versões surgirão ainda sobre a figura amada, tão carismática? Alicerçando-se nessa hipótese, escritores modernos têm publicado best-sellers com versões esdrúxulas sobre o chamado Messias.

Infeliz, com a alma cabisbaixa, argumentei com meus botões: Não seremos nós mitos, heróis da ficção de Deus? E quando o Diabo nos desmascarar, com sua sarcástica lucidez? O que sobrará da magnífica Criação? 

terça-feira, 9 de julho de 2013

A HORA ÍNTIMA

A HORA ÍNTIMA


Há textos que parecem ter vida própria. Fazem parte do nosso Inconsciente e, de repente, nos vêm e nos possuem com uma força da qual não conseguimos fugir. Eles surgem nos sonhos, nas vigílias, ou, simplesmente aparecem como ondas repetidas, que voltam sempre, inexoravelmente. Aconteceu com o poema  A Hora Íntima, de Vinícius de Moraes, que me fez uma visita da qual não consegui escapar.
O título é notável, porque ele se refere ao seu velório. Inicia o texto com um dístico, uma interrogação muito criativa: “QUEM PAGARÁ o enterro e as flores / Se eu me morrer de amores?”. Sabe-se que poesia é inspiração e, principalmente, linguagem.  Nosso Poeta conhece bem essa afirmação. Assim, esmera-se nos dois versos. Começa com um sujeito indeterminado, que universaliza o tema. Preocupa-se, poeticamente, com o responsável pelas despesas de sua morte, mas une duas realidades diversas, uma trágica, grave _ o enterro, e outra supérflua: as flores. Os dois termos vêm unidos pela conjunção coordenativa aditiva, igualando-os.
Logo a seguir, em uma liberdade poética, violentando a sintaxe, usa o verbo intransitivo “morrer”, como pronominal. Sua causa mortis é lírica e ignorada pela medicina: Ele morre de amor. Assim são os poetas.  Só nos cabe lê-los, entendê-los e amá-los.
Não se preocupe, caro leitor. Meu sadismo não vai a tanto. Não vou continuar a análise gramatical, sintática e semântica do poema. Falarei apenas do belo conteúdo.
Ainda com o sujeito indeterminado, pergunta: “       Quem, dentre amigos, tão amigo / Para estar no caixão comigo?”. Há maneira mais forte, do que perquirir quem o ama tanto, a ponto de morrer com ele? A seguir, ele menciona uma galeria hipotética muito interessante, dos possíveis presentes no seu velório.
         Desfilam o ingênuo, o generoso, o bêbado, o lírico, que “virá despetalar pétalas”, no seu túmulo... O materialista, que acredita na reciclagem, joga na terra, um grão de semente... O covarde ora, os loquazes dirão palavras tão belas, que empalidecerão o mármore. Os filósofos, os que farão discursos oficiais, os simples, os que lá estão por “motivo circunstancial”, os resignados.
Há, a seguir, toques de erotismo, mulheres sofredoras pela perda do Poeta: “Quantas, debruçadas sobre o báratro / Sentirão as dores do parto?”, a criatura pálida, que “     tocará o botão do seio”, a que sofre tanto, que despertará receios, a que o ama perdidamente, que terá de ser arrancada, abraçada ao seu esquife, a estranha figura / A um tronco de árvore encostada / Com um olhar frio e um ar de dúvida”.
Surge ainda aquele que, com o “rosto sulcado de vento / Lançará um punhado de sal”, na cova de cimento do Poeta... É uma metáfora rica, como também quando ele menciona aqueles, de “maxilares contraídos / o sangue a pulsar nas cicatrizes”... E, às vezes melancólico, às vezes irônico, faz a pergunta final, repetindo o dístico, mas com uma mudança gramatical expressiva: No começo usa o futuro hipotético, no final, a locução verbal com o presente do indicativo, como auxiliar, o que torna o questionamento mais forte: “      Quem vai pagar”...
         Vinícius de Moraes é um poeta irregular, com alguns textos mais fracos e outros que são uma obra-prima. Sem dúvida, A Hora Íntima tem um lugar de destaque  entre os seus mais belos poemas.



segunda-feira, 1 de julho de 2013

RECADO AO LEITOR

RECADO AO LEITOR
Estou cansada de repetir: Você, Leitor, é um mistério. Nunca sei como agradá-lo. Se faço um texto inteligente, esmerado, cheio de conhecimentos linguísticos, você reclama. Um dia desses, alguém chegou a me falar, assim, nas fuças: Você pensa que está escrevendo para quem? Precisa usar vocabulário tão complicado? Por que não escreve para todo mundo, de maneira simples, compreensível? Quer que só meia dúzia leia seus artigos? E mais: Por que não fala mais de coisas suas, de sua história de vida? Pensa que o mundo é só Literatura?
Fiquei cabreira. Com raiva. Não sabe, por acaso, que é praticamente impossível, em Literatura, falar sobre a vida verdadeira, sobre fatos acontecidos? Isto é para jornalistas...  Eles são ricos demais, complexos, para serem contidos na cadeia da linguagem literária. Então, a gente inventa, faz ficção, interpreta textos, brinca de escritor... Vou lhe confessar algo, pura verdade, juro! Em uma das Feiras do Livro, há alguns anos, eu almoçava com a grande Adélia Prado. Ela me contou, então, sua história. Nasceu em Divinópolis, conheceu seu marido, quando ele e ela eram ainda crianças, apaixonaram, noivaram, casaram, tiveram filhos e netos. Babei de inveja. Por que a vida de Adélia era tão bem escrita, tão bem dirigida, como uma peça teatral sábia e bela?
À noite, em meu apartamento, fiquei pensando na minha história. É um texto mal redigido, o Diretor da Peça parece louco, sem a menor ideia de lógica, incoerente, meio maluco.  É estranho. Nunca entendi por que meu roteiro de vida é feito por épocas estanques. E cheio de armadilhas, alçapões. Infância: oito anos de paz, tranquilidade, alegrias, apesar do pacto com todas as doenças infantis da época. Não havia vacinas. Era ali no tapa. Sarampo, catapora, caxumba. As crianças de minha época só se livraram, pela graça de Deus, da paralisia infantil, como era assim chamada, hoje, a poliomielite.
De repente, não mais que de repente, a vida mudou. Tive até um ano no campo, um dos mais lindos, com muita liberdade, voando sobre minha eguinha em pelo, frequentando uma escolinha de roça, fazendo artes inocentes. Aí veio o primeiro castigo. Mudamos para Belo Horizonte e meteram-me em um Colégio francês, onde não se falava português e havia só meninas ricas. Foi um suplício. Eu, caipira, mineira, com meu linguajar de roça... Um dia fiquei de castigo, porque a freirinha besta disse que eu falara palavrão. “Falei uma ova!” Piorou. Ela não entendeu e fui suspensa. Graças a Deus, o inferno durou só uns dois anos e fomos para Paraíso, cidade linda, poética, onde tinha muitos amigos. Estudei no Colégio Paula Frassinetti, apaixonei-me lírica e platonicamente por um adolescente que parecia um príncipe. O amor terminou, quando mudei para Ribeirão Preto e o pobrezinho, semianalfabeto me mandou uma cartinha, em papel rosa, com um coração atravessado por espada, caindo sanguinho. Abaixo, a declaração desastrosa: Ely sou apaixonado por você. Morro por ti! Fiquei com raiva da falta de vírgula no vocativo e com a mistura de pronomes. Rasguei a carta e  nunca mais pensei no príncipe. Eu já era metida à besta, lia muito e escrevia bem, ou pensava que escrevia...
E vai a vida. Em Ribeirão, fui para o então mais famoso Colégio da época, o          Santa Úrsula, ainda na Rua São José. Mais tarde, quando na época, o chique era ter um namorado de boina amarela, calouro da USP, tive o primeiro amor verdadeiro, de boina amarela...         Mas chega de confissões. Você acredita, Leitor, eu queria mesmo era lhe falar sobre uma curiosidade linguística: Você sabia que dó é um termo masculino e comichão, feminino? Pois é... Mistérios gramaticais.

(*) Ely Vieitez Lisboa é escritora, tentando escrever algo leve, em tempo de guerra.