domingo, 24 de novembro de 2013

RELEITURAS BÍBLICAS

RELEITURAS BÍBLICAS


A Bíblia é literatura de alta qualidade. Assim, todos os seus textos podem e devem ser lidos conotativamente, isto é, dentro de um contexto literário, que admite leituras diversas.  Pode-se até fazer releituras em um enfoque moderno, sem correr o risco de heresia, mas sim como um exercício intelectual. Deus deve gostar disso.

I


Era no Paraíso. Eva, formosa, com uma guirlanda de flores perfumadas, envolvendo seu corpo edênico, diz a Adão: Tome jeito, criatura! Você já é bem grandinho, para obedecer ao Pai. Não comer do fruto proibido, por quê? Cismado, Adão olha para a companheira que lhe oferece uma apetitosa maçã rubra. O que ela quer? Está sempre me colocando em uma fria... Ela não é confiável. Titubeou, tergiversou, não tinha vontade, a fruta não estava madura... E custava obedecer? Por que infringir a lei? Que diabo!
         Não chegaram a um acordo. Veio o divórcio. Só bem mais tarde, influenciados pelos Anjos, reconsideraram, senão comprometeria o vir- a- ser da humanidade.

II
        
Passagem irritante, boçal. Ninguém alertou que Sansão e Dalila tinham QIs de ameba, eram quase débeis mentais?
         Amantes. Dalila, traiçoeira e mau caráter, quer acabar com o Schwarzenegger bíblico. Como descobrir a fonte de sua força, para destruí-lo? Pergunta-lhe, cheia de dengo: – Sansão, de onde vem sua força? Ele, matreiro e desconfiado. A reputação de Dalila é conhecida. Não é flor que se cheire. Falsa, traiçoeira como cobra. Sabendo disso, nosso idiota musculoso tenta enganá-la. Seria necessário amarrá-lo com cordas de arco frescas, que ainda não tivessem sido postas a secar.
         Os filisteus caem sobre ele, nosso herói os arrebenta. A mulher viperina volta a perguntar. O imbecil mente de novo, usando a mesma falseta, mais duas vezes e o Blockbuster do Livro dos Juízes, sai ileso.  Não é que a víbora volta a atacar e o mentecapto confessa a verdade? A força está em seus cabelos virgens de navalha.  A messalina, Judas de saia (ou de véus?) adormece o parvo, recebe dinheiro pela sua iniquidade e transfere o encargo a um homem, para executar a tarefa, cortar as sete tranças da cabeleira de Sansão. Foi o primeiro caso de terceirização da História. Nada é novo na face da terra.

III

         Novo Testamento. Perguntaram a Jesus o que era a verdade. Ele olhou para o povão ao redor, agachou-se e pôs-se a rabiscar o chão. Os exegetas aventam mil hipóteses. Que significava o gesto? Por que o Mestre, onisciente, que tudo sabe, não respondeu? Eu, hein! Sou lá besta de meter a mão em cumbuca? Ele conhecia a cabeça e o coração dos homens...
IV
        
E há a passagem da primeira Multiplicação dos Pães. Com apenas cinco pães e dois peixes, Jesus alimentou uma grande multidão de mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças (olhe o preconceito!) e ainda sobraram doze cestos cheios de pedaços. Dizem que o Cristo teve problemas com o fisco e com o imposto de renda. Como explicar tal despesa diante de tão pouca receita? Mas essa é outra história.







domingo, 17 de novembro de 2013

PREMONIÇÕES

PREMONIÇÕES                            
                     Uma forte emoção na infância ou na adolescência pode influenciar ou tornar-se realidade, na idade madura? O que move essa força, como entender o mistério?
                     Desde que aprendi a ler, não parei mais. Era como se um dínamo me movesse. Dentre as dezenas de livros infantis que li, quando menina ainda, a história da Sereiazinha, de Hans Christian Andersen comoveu-me de tal maneira, que parecia um aviso.
                     A pequena Sereia apaixonou-se por um Príncipe que ela salvou da morte, em um naufrágio. A criaturinha só poderia ser feliz se, com uma poção mágica, trocasse a cauda pelas pernas, tornando-se humana; mas assim sofreria o castigo de ter dores atrozes, como se andasse sobre facas. Tudo fez para viver um grande amor.
                     Aos dez anos e na adolescência reli muitas vezes a linda estória e chorava rios de lágrimas. Por que esta estória me comovia mais que outras? Simbolicamente, era uma premonição, um aviso?
                     Talvez haja uma explicação mais científica para, bem mais tarde, eu sofrer tanto dos pés.         Toda minha família, do lado espanhol, experimenta tal desgraça. Aventou-se até a hipótese de ser uma síndrome comum entre os da raça espanhola, com todo tipo de mazela: má formação dos pés, calos, o pisar meio torto e defeituoso, piorando com a vinda dos anos, uma lástima.
                     Um dia alguém me disse algo bizarro, mas interessante, sobre o problema: pessoas do signo de Sagitário sofrem das patas... Sempre tento confirmar tal teoria. Ela parece verdadeira.
                     Voltemos à Sereiazinha de Andersen. Ela, no final, foi feliz, sacrificou-se, mas experimentava dores terríveis nos pés e nas pernas. Tive este destino, não por conta do amor, mas de Cronos, carrasco inexorável. Mas já na minha juventude, quando cursava o chamado Clássico, no Otoniel Mota, quiseram aproveitar, em vão, minha altura: logo eu saia da quadra, de padiola, com tendões arrebentados. Aliás, a Educaçáo Física, na escola, era meu pesadelo.
                     Assim foi a vida toda. Detesto todo tipo de esporte. Certa vez, o médico pediu que eu fizesse hidroginástica. Tentei. Era uma turma de velhotas. Eu entrava na piscina e enquanto o Instrutor ensinava vários movimentos, eu boiava deliciosamente, quieta, com meus pensamentos. A experiência durou pouco. Havia uma mulher, ainda mais velha que eu; ela era uma delatora e gritava: Olhem, ela não está fazendo os exercícios! Ralhei com ela: Não tem vergonha de ser um alcaguete? Aborreceu-me ir ali duas vezes por semana, perder tempo. Saí, porque outra coisa que eu detestava era, na hora da chuveirada, nos banheiros sem porta, ver aquela velharada nua, com as pererecas de fora. Um horror!
                     Retornemos à Sereiazinha. Por que eu sofria tanto com a história?  Seria premonição? Mistério. Pela vida toda tenho tido experiências estranhas: sonhos, pesadelos, avisos, como se eu fosse uma Sibila. Disseram-me que eu tinha mediunidade e que devia desenvolvê-la. Nada fiz. A vida tem mistérios demais. Para que mexer com o desconhecido de outro plano?
                     Precavida ou covarde? Nem questiono a resposta. Sou cautelosa e prática. Melhor cuidar dos assuntos aqui de baixo.

                     

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

CARTA ABERTA AOS MORTOS

CARTA ABERTA AOS MORTOS

            Dia triste o dois de novembro. Nada afugenta a melancolia. Dizem que há povos que, nessa data, fazem festa, tocam instrumentos musicais, sentam-se sobre os túmulos, a família toda e ri, conversa alegremente. Tem certa lógica. Os mortos estão mais felizes que nós, os vivos. É bem verdade que as crenças diferem. Os espiritualistas acreditam em uma vida post  mortem. Alguns até estabelecem lugares específicos, como prêmio, castigo ou o limbo, onde se espera o destino eterno. Outros dizem que há possibilidade de muitas voltas, até se resgatar os erros aqui cometidos. Os materialistas são radicais: nada há após a morte, só o vazio, o não-ser.
            Sabem, meus queridos, não tenho posição definida, vacilo às vezes diante de tanta teoria, possibilidades várias, hipóteses. Na verdade, ninguém voltou para ensinar. Mas quero acreditar que existe algo. Seria muito triste, de repente desaparecer, esfumar como uma brisa etérea.
            Eu não gostava de passar pelo grande Cemitério da Saudade. Confesso que virava a face para o outro lado, cismada, temerosa... Isto há muito tempo. Depois veio a vida, perdi tantas pessoas queridas que se foram para seu descanso eterno que, hoje, quando vou lá, sento-me no túmulo da família, envolvo-me no silêncio, sinto-me ungida de paz. Após fazer as orações, relembrar doces episódios, ponho-me a passear pelas alamedas, visitando amigos, alunos, conhecidos, notando que nem a morte consegue igualar os seres humanos. Há túmulos pomposos, outros tímidos na sua simplicidade desnuda. As esculturas escuras guardam com seriedade seus mortos. Pássaros voam, enfeitando o ar, as flores tentam dar lições de efemeridade.
            Invejo os que têm uma fé de carvoeiro, seguros, certos de seus posicionamentos, suas verdades. Eu vacilo, mudo, analiso, tento entender, mas as dúvidas voltam sempre como moscas renitentes. Confesso que leio muito a Bíblia, gosto do Livro Sagrado como literatura, tenho meus Santos de predileção, rezo. Para quem? Para um possível Deus, bondade suprema, que tudo vê, tudo entende e tudo perdoa. Faz bem para a alma acreditar.
            Em seu livro Boitempo, de 1968, Drummond parece obcecado com a morte e o que viria depois. Usa, com amargura, o neologismo “         morituros”, para os seres humanos, aqueles que vão morrer. Muitos poetas famosos abordaram o tema maior, às vezes, liricamente. O que mais atrai, no assunto, é sua dubiedade, o mistério, a dúvida. Sob a mesma temática, é bom lembrar o belo soneto de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, antes da morte, falando com o Cristo, diante do Crucifixo, colocando, inteligentemente, o Filho de Deus, em uma saia justa.
            Minha relação com os meus mortos é doce e acalentadora. Sinto-os sempre perto, sonho, falo com eles, conto-lhes alegrias e tristezas. Sua presença é tão forte, que amaina a amargura da partida. E rezo. Rezo muito e, por que não dizer, peço-lhes, às vezes, que intercedam diante dos Santos ou do Chefe Maior. Afinal, eles já cumpriram sua missão. E por que não podem ser Anjos-da-Guarda?  

            O Dois de Novembro é dia de recolhimento e muita oração. Existe algo melhor para a vida conturbada dos vivos? Hosana aos que já se foram e conhecem hoje todas as respostas.