domingo, 26 de maio de 2013

RECADO À MINHA MÃE

RECADO À MINHA MÃE
         Daqui a dois dias fará um ano que você se foi, minha querida. É estranho. Após a dor pungente da separação, o vazio de seu quarto, a casa empobrecida sem seu sorriso bonito,  fico a pensar nas lições preciosas que me deixou. Você partiu docemente, com o rosto nas mãos de seu genro, eu ali, ao seu lado. Sua respiração foi ficando cada vez mais fraca e se foi, silenciosa como uma flor.
         No seu velório, chamava atenção a paz de seu rosto, a pele bonita, o cabelo cor de trigo emoldurando uma face incrivelmente bela ainda, para quem estava com noventa e cinco anos. Você sempre foi assim. Vaidosa, cuidadosa com o corpo, elegante, com as lindas pernas sempre de meias, o quadril grande, os seios volumosos, a cintura fina, sem sinal de barriga.
         Os anos não tiraram sua beleza, o brilho dos olhos escuros, a alegria, as mãos esguias, com unhas bem tratadas. Apetite de menina, sábia, lírica. Quando fui a primeira vez para a Europa, lembra-se? Você me escrevia todos os dias. Éramos  sim muito amigas, quase irmãs, não mãe e filha. E guardo seu exemplo de esposa que ama o companheiro. Parece-me vê-la ainda, todas as noites, na Biblioteca, meu pai deitado em seu colo, contando-lhe coisas do trabalho, você alisando-lhe docemente os cabelos.
         Você sempre o amou com o entusiasmo da juventude, seu belo espanhol de cabelos ondulados, corado e aqueles incríveis olhos meio esverdeados, que às vezes, pareciam cinzentos.  Para mim, era o exemplo maior de um grande amor. Sua história é linda! Quando ele chegou da Espanha e a conheceu, na pequenina cidade mineira, apanhou uma rosa vermelha e lhe ofereceu: “Para a moça mais bonita da cidade”...
         E a pobre prima dele, preterida, nunca os perdoou. Ela não sabia que há destinos selados? O amor dos dois uniu o pequeno Pueblo de Pardesoa, onde ele nasceu, e a cidadezinha de Minas. E os dois se amaram a vida toda. Vocês não se casaram na Igreja. O padre era implicante e casmurro. Muitos anos depois, quando você melhorou de moléstia grave, ele perguntou-lhe feliz o que você mais desejava. A eterna apaixonada não titubeou: Casar na Igreja! Ele só exigiu que não fosse  em Ribeirão Preto. Onde já se viu? Dois velhos! E lá fomos nós para Sacramento. Eu fui sua madrinha. Bizarro, não? Você estava linda e nervosa, sob o belo véu cinzento de renda. Eu amo sua história!
         Hoje, no entanto, fiquei só com a saudade, um sentimento lírico, meio doce e triste. Fico horas na varanda, diante do verde, das flores, minhas duas Labradoras aos meus pés. E nós falamos de você, quando tomava sol ali. As duas cachorras, que a amavam, vinham lamber-lhe as mãos e muitos pássaros pousavam tão perto, que pareciam seus amigos.
         É assim que rezo, converso com Deus, sobre você. Eu Lhe falo de sua alma pura, de sua fé, da sabedoria. Peço a Ele que me passe um pouco dela e permita que eu continue sonhando com você, o que acontece muito. À noite, você vem visitar-me, está sempre sorridente, alegre e carinhosa. Eu acordo feliz com sua visita, revigorada. Parece-me que não partiu. Sim, tenho certeza de que está ainda  aqui comigo.
Doce mãe, amiga querida! O que fiz para merecê-la? Que Deus me faça tão sábia quanto você. Sei que está feliz, agora com seu grande amor, para sempre, amando-se, passeando entre nuvens doiradas, sem o fantasma da separação. Um dia quero estar aí com vocês. Estaremos finalmente reunidos. Mas que não seja breve. Você pode me conseguir um atestado de garantia, para mais uns dez ou quinze anos por aqui?





domingo, 12 de maio de 2013

COMO SE COMEMORAR OITENTA ANOS


COMO SE COMEMORAR OITENTA ANOS

                Ele é um menino de setenta e nove anos. Por que menino? Pelo entusiasmo, o otimismo, o exacerbado amor à vida. Diz sempre: Tomara que a prorrogação da partida seja bem longa e o Grande Juiz perca o apito para finalizar o jogo da minha existência.
                Muito religioso, aceita os desígnios de Deus com mansidão. É grato e humilde. Enfatiza muitas vezes: Eu recebo muito mais que mereço. Não frequenta Igrejas nem Centros. Faz orações em profundo recolhimento. Em contrapartida, brinca muito, dá risadas homéricas.
                Sem exagero algum, ele realmente é um workaholic. Não para o dia todo, conserta tudo em casa e fica feliz quando há algo a fazer, mesmo se tarefa árdua, sábado ou domingo.
                A união familiar é um dos seus valores mais sólidos. Adora a vida em família. Saudosista em extremo, tem uma memória peculiar. Lembra de episódios, nomes, locais desde sua tenra infância.
                Homem intenso, espirra alto, cantarola letras inteiras de músicas antigas. Foi músico. Quando jovem, tocava Sax Tenor na orquestra de uma cidade onde morou durante muitos anos. Aluno excelente, desde o Fundamental, contudo leu poucas obras literárias, até que oito anos atrás, viúvo, casou-se com uma escritora e acabou sendo seu secretário. Ele brinca: Leio toda sua obra, que passa pelos meus dedos, quando digito seus originais.
                Há pouco tempo, em uma reunião familiar, suas filhas, que residem no Rio de Janeiro, disseram com entusiasmo: O senhor  vai completar oitenta anos. Há que se fazer uma grande festa! Ele refugou. Não quis, seu desejo era outro. Há um ano começara a escrever textos sobre sua vida, desde a infância. Como disse ele, em entrevista na TV, fora picado pela Mosca Azul da inspiração. Queria publicar seu livro.
                Os sonhos se realizam. Nosso herói não gosta de ficção. Optou, portanto, pela Literatura Testemunhal e começou a escrever crônicas e contos sobre episódios bizarros de sua vida. Publicou alguns no jornal. Os leitores gostaram.
                Assim, dia 18 de maio acontecerá o Lançamento de Do Fundo do Baú (Editora Funpec). O evento será no Hotel Nacional. Amante do passado, ele começou a rever cenas, fatos, episódios bizarros de sua infância e da mocidade. Vasculhou seu baú de guardados e, à noite, varava a madrugada no Computador, relembrando e teclando.
                Realmente, comemorar oitenta anos com um lançamento de livro é algo expressivo. A obra será um documento vivo de sua rica história. Não são memórias, mas narrativas de acontecimentos insólitos de sua atribulada vida.
                Ele quis usar uma epígrafe e, ao invés de citar algo de um autor famoso, ele redigiu uma pequena confissão que, em síntese, é sua minibiografia: “Quando pensei que a estrada tinha terminado, o horizonte mostrou-me que a caminhada estava apenas começando.”
                Na Terceira Idade, em geral fica-se nostálgico, relembrando acontecimentos bons e ruins, que são guardados no cofre silencioso da alma. É uma pena. Confissões ricas, de vidas interessantes, concretizadas em uma experiência repleta de sabedoria, vitórias e derrotas, são documentos preciosos. É justamente na Terceira Idade que escrever é uma função catártica eficiente. Afinal, todo ser humano é uma prova viva da mais complexa obra da Criação.

domingo, 5 de maio de 2013

OS CONCEITOS E SEUS MISTÈRIOS


OS CONCEITOS E SEUS MISTÈRIOS       
         
     Como os seres humanos são tão complexos, seus conceitos não poderiam ser diferentes. Até mesmo as palavras, na Comunicação, mudam de sentido com o tempo, algumas até desaparecem. Hoje, alguém poderia mandar uma pessoa calar-se, fazer silêncio, dizendo-lhe “Caluda!”? Ou exprimir espanto e admiração, falando: “Cáspite”? Quem se lembra do sentido primeiro do termo “formidável”, usando-o como sinônimo de enorme, imenso, que dá medo?
      Assim também são os conceitos. Um dia desses, brincando com alguém de quase oitenta anos, que vai publicar seu primeiro livro, eu lhe disse: “Oh, meu escritor bissexto!”. Ele estranhou. Disse-lhe eu então que era aquele que escrevia apenas um livro. Temos exemplos famosos. Aníbal Machado levou mais de vinte anos escrevendo o romance João Ternura.
       Sentindo que a morte se aproximava e estando o livro pronto, pediu ao seu amigo Carlos Drummond de Andrade, que tomasse conta de sua obra. E Drummond assim o fez. Um ano após a morte de Aníbal Machado, em 1965, João Ternura foi publicado e tornou-se uma obra famosa na Literatura Brasileira.
        Durante muito tempo usei a expressão “escritor bissexto”, despreocupada, até que recentemente fiquei sabendo que Manuel Bandeira, por modéstia e humildade poética, às vezes dizia que ele era um Poeta Bissexto, isto é, que só fazia um poema, quando a inspiração vinha... Ora, então podemos dizer que Clarice Lispector é uma Poetisa Bissexta. Famosíssima por seus romances, a escritora brasileira mais traduzida no mundo, ela, de vez em quando fazia um poema.
      Lembrei-me de um fato literário pitoresco. Guimarães Rosa escreveu um livro de poemas, Magma. Apesar de obra premiada, ela foi praticamente banida da bibliografia do nosso Mago de Cordisburgo, um dos maiores escritores brasileiros, o romancista que criou uma linguagem nova, um mundo mágico inigualável. Como poeta, ele era apenas bom. Mas como o autor memorável do Grande Sertão: Veredas ou de Sagarana, ele é único. Guimarães Rosa é, pois, um poeta bissexto.
      Outra observação interessante: em Literatura, na realidade, há autores que não têm predileção pelo gênero da prosa ou do verso. O primeiro requer mais lucidez, realce de argumentos, criação de núcleos narrativos, tipos de discurso, personagens. O segundo é muita inspiração, sensibilidade, estado de alma, linguagem figurada. Mas está longe de se ter uma definição exata, de haver  limites entre os dois gêneros. E aí está a obra magnífica de Maria Carpi, que consegue ser grande na prosa e no verso.
      Em qualquer gênero, há que se ter TALENTO, uma dose de criatividade, de sensibilidade, conhecimento rico da língua na qual o autor se expressa. Alguém dirá: há outras coisas a se discutir, como por que se escreve, o papel da inspiração e do conhecimento profundo das PALAVRAS, até onde há realidade e/ou ficção no que se escreve. Mas isto é assunto para outro artigo. Não. Para um livro.