terça-feira, 27 de novembro de 2012

DE PÁSSAROS E DE HOMENS


DE PÁSSAROS E  DE HOMENS

         Cada dia entendo menos o mundo. A pombinha fez o ninho bem em cima do carro. Despreocupada e dona do pedaço, não se preocupou com a sujeira toda que fez sobre o veículo. Quando meu marido descobriu o fato, cuidadosamente aconchegou as palhinhas sobre uma pilastra da garagem, cuidou de escolher o lugar abrigado do vento, pois lá estavam dois filhotinhos, com os bicos abertos, pedindo comida. Ficou muito preocupado. A mãe aceitaria a mudança? Abandonaria os filhinhos mal empenados?
         Logo foi uma alegria. A mãe sábia aceitou o novo local, aninhou sobre os filhos e lá ficou a nos olhar de olhitos muito abertos e atentos.  Mas desgraças acontecem. Não se sabe como nem o porquê, um dia depois, um dos filhotes apareceu morto, no chão. É algo triste e melancólico ver um filhotinho de pássaro morto, todo abandono, fragilidade. Lembrei-me de um acontecimento macabro, em Ribeirão Preto, após um vendaval. De manhã, indo à Igreja, as ruas, os passeios estavam coalhados de cadáveres de vários tipos de passarinhos, um tapete de pequenas aves, retrato trágico da efemeridade da vida. Não seremos nós pobres pássaros à mercê de possível vendaval divino?
         Quanta tristeza! Embrulhei o filhotinho morto em um papel alumínio, para que ele tivesse uma mortalha bonita, enterrei-o. Felizmente, o outro filhote escapou. Empenado, arisco, deu seus primeiros voos e alçou ao céu, em busca da liberdade. O mundo pareceu mais alegre e naquela tarde, até o mico estrela, que raramente vem por aqui, apareceu, pegou rápido os dois pedaços de banana que deixamos para ele e saiu moleque, alegre, com seu longo rabo dançante.
         Naquela mesma noite, no jornal televisivo, foram veiculadas só notícias brutais e macabras. Uma imensa tristeza abateu sobre meu coração. Senti-me pequena e mesquinha, porque sofri com a morte de  um filhote de passarinho. E, mais do que nunca, constatei que o ser humano é complexo e a vida, um labirinto com inúmeras veredas repletas de abismos.
         Ainda é primavera, o céu está azul, a brisa doce. Todavia, a maneira de agir dos seres humanos não condiz com isto. Parece um eterno agosto, triste, aziago. Sempre me impressionou por que os homens não aprendem com a Natureza que segue leis lógicas, coerentes. Ao contrário, o pretenso Rei do Universo, o propalado animal racional muitas vezes é um monstro, ou frágil, controverso, com atitudes inexplicáveis. Lembro-me de uns versos do famoso poema de Thiago de Mello, Estatutos do Homem. São lições utópicas que só um grande poeta poderia dar. No Artigo IV, ele diz: Fica decretado que o homem não precisará nunca duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. O poema todo é uma mensagem de beleza, de paz e de lirismo.
         Realmente foi apenas um poeta sonhador que escreveu o magnífico
 Código. Deus preferiu criar o Homem inteligente e capaz, mas deu-lhe o livre arbítrio. Aconteceu o que aconteceu. Sempre achei que esta dádiva divina foi um presente de grego.





domingo, 18 de novembro de 2012

PECADO GRAVE


PECADO GRAVE

         Há algum tempo tentou-se atualizar os sete pecados capitais. Muitas foram as mudanças e enfatizou-se que o mais grave é o acomodamento, a omissão. Ora, o conceito de pecado é complexo, há religiões que negam sua existência. Em um livro de um grande teólogo, ele termina suas reflexões com uma frase sábia: O único pecado é cortar relação com Deus.
         Aprofundar a interpretação da assertiva acima não é fácil. Todavia, é certo: a omissão é um dos exemplos vivos do perigo de violentar nosso relacionamento com a bondade, com tudo que é digno, generoso, altruísta, excelso.
         Numa tarde chuvosa, na periferia de Ribeirão Preto, senti grande tristeza. Cometi esse pecado abominável. Ao fazer a curva, diante de uma casa simples, estava o cachorro. Para surpresa minha, era um labrador cor de chocolate, de olhos claros. Magro, sujo, costelas à mostra. Parei e reparei nele. Havia beleza e dignidade ainda no seu focinho meio quadrado, bonito. O olhar era uma imensa tristeza, sem nenhuma esperança. Percebi, então, que seus membros traseiros estavam meio comprometidos.
         Eu lera sobre displasia da anca, uma doença que foi descrita em 1935, típica nas raças pastor alemão e labrador retriever. O principal sintoma é que o cão começa a claudicar. Não é doença hereditária e nem congênita: o cão não nasce com displasia, mas ela pode surgir devido a influências de fatores ambientais, alimentares e excesso de exercício.
         Aquele cão triste, infeliz e doente, parecia sofrer muito. Olhamo-nos, senti-me misérrima diante dele, mas não desci do carro. Era quase noite e quando cheguei em casa experimentei a pior das sensações: remorso, culpa, falimento. Eu vira a dor, o sofrimento e nada fizera. Fui omissa, covarde. Vontade de sair e voltar lá, acolher o cão doente, levá-lo a um veterinário. Mas, por Deus, não conhecia aquele bairro tortuoso, cheio de ruas estreitas. Eu nem mesmo saberia localizar o cão. A prova disso é que não conseguira achar o endereço no Parque Industrial.
         Foi uma noite de pesadelos. Sartre disse que o inferno são os outros, denunciando a falta de comunicação, a dificuldade de aceitar o outro, de entendê-lo e respeitá-lo. Tentei jogar a culpa no dono do pobre cachorro. Que os céus o castigassem como a todos que têm um animal e não cuidam dele.
         Na verdade, era um subterfúgio, uma tentativa para punir a verdadeira culpada: eu. A omissa, a alienada, a desalmada, a detestável criatura que vê um cão cor de chocolate, de olhos claros, doente, sofredor e nada faz. Abominei-me. Tentei consolar-me, indo ver minhas cadelinhas labradoras, da mesma cor e de belos olhos verdes. Quando as olhei, alegres, sadias, roliças, vacinadas, muito bem alimentadas com uma das melhores rações, foi pior. Chorei no maior desalento. Elas, compreensivas, doces e sempre amorosas, lamberam-me as mãos. Pareciam me dizer: Não sofra. Os seres humanos são mesmo falhos.
         Agora é madrugada e o sono não vem. Sim. Realmente o maior dos pecados é a omissão. Livrai-nos dela, Senhor.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A MAGIA DA INTERNET


A MAGIA DA INTERNET
        Não canso de repetir a sábia frase de famoso psicólogo: A Internet é algo sofisticado, instrumento notável nas mãos de quem sabe manuseá-lo e arma perigosa para os ingênuos ou incautos. Recentemente eu me lembrei da asserção, por um pps que recebi, sobre a mágica cidade de Córdoba. Música maravilhosa da Orquestra Sinfônica de Córdoba, fotos, locais, dança. Ou ainda, algo precioso: de minha casa, pelo computador, conhecer e ouvir Bobby Mc Ferrin, gênio iluminado, de outro planeta.  
        Não fossem os e-mails, eu jamais teria conhecido a  Maria Carpi e Raquel Naveira, uma gaúcha, outra do Mato Grosso do Sul. De nossos contatos surgiu uma amizade plena de encantamento, com recados, notícias e troca de livros. E assim, não mais que de repente, como disse o Poetinha, fiquei amiga íntima das duas maiores poetisas vivas brasileiras. Amigos novos, notícias recentes, em sua casa, logo ao amanhecer, textos notáveis e reencontros com ex-alunos que surgem de um passado longínquo e hoje são brilhantes profissionais, nas mais diversas áreas.  No presente,  mulheres e homens maduros,  mas quem me escreve são os eternos adolescentes, jovens, repletos de sonhos. É como se, magicamente, o tempo não houvesse passado e eles continuam quase meninos ainda, dinâmicos, idealistas. E é a Internet que me propicia tudo isto,
          Relembrando esses presentes que recebi através da tela mágica, eu me comovo. Não poderia falar de todos, mas citemos Jacy Antunes, exemplo vivo do que afirmo. Leitora voraz, cinéfila, mulher inteligente e sensível, não adiantou ela retrucar que já tinha mais de cinquenta anos. Para mim, lendo-a, ou ouvindo-a ao telefone (voz de menina!), não era a farmacêutica ou a mãe de duas jovens, mas a eterna adolescente, cujos olhos só viam belezas em um futuro brilhante. Ou Eunice Mendes, que teima ter mais de quarenta, mas eu converso sempre  com a menina ; atriz, professora que ministra Cursos em todo o Brasil, ensinando pessoas a falar bem, como ter uma postura eficiente nos empregos. Antônio Ventura, juiz aposentado, poeta famoso. Como olhar para ele, com sessenta e não ver o menino de catorze, sentado à minha frente, fascinado com as palavras? O fenômeno Adriano Chan, escritor, professor, cineasta, diretor de teatro. É o meu adolescente que tem pouco mais de trinta anos. E a minha menina Sílvia Pereira, jornalista e cinéfila brilhante? Mais recentemente, a querida      Thaís Ismail. Eles são tantos, enriquecem meu mundo!
        Se não fora a Internet, eu não poderia conversar com eles sempre e com muitos outros que me visitam em e-mails inteligentes, íntimos, falando de seus planos, de seus sonhos. O que me aborrece é o mau gosto, porque não dizer, o crime contra a sabedoria de viver, de quem utiliza a Internet só para coisas tolas, vulgares, e o pior, às vezes fazem dela uma arma para falcatruas e/ou  cometer crimes hediondos.
        Os seres humanos são sempre um mistério. Vejo nas ruas, nos jornais televisivos, um formigueiro de pessoas com celulares, enviando eternas mensagens, ou utilizando a Rede Social só para tolices corriqueiras, filmezinhos de péssimo gosto, diálogos inócuos e vazios. Por que não utilizar a tecnologia, para enriquecer o conhecimento, a vida ?
        Sei que conselhos não são para serem seguidos. Ou como alguém disse, com ironia, são para serem usados ao contrário. Mas se muita gente acessasse  a Internet  de maneira sábia, talvez pudéssemos ser, realmente, a Era da Comunicação e não da Solidão.

domingo, 4 de novembro de 2012

REFLEXÕES


REFLEXÕES 

        Novembro é um mês triste, talvez porque comece com o Dia de Finados, Quando os cemitérios ficam plenos de gente, como em um feriado funesto. Seria muito bom que se visitassem nossos mortos, não só no início de novembro. Será que eles se sentem solitários, rodeados de túmulos, pequenas capelas e esculturas sombrias?
         Já confessei oralmente e por escrito que, quando jovem, mal olhava para os Campos Santos, desviando o olhar quando por lá passava. Hoje não. Com tanta gente querida lá, rezo em paz, experimento uma saudade profunda e uma grande paz, como se ali fosse a moradia definitiva. Depois saio em visita aos amigos que partiram e aos ex-alunos que nos deixaram prematuramente.
         Nesse dois de novembro, a data me pareceu mais dolorosa. A perda recente, de minha mãe, ainda dói muito. Quando voltei da visita que lhe fiz (eu a sinto muito mais presente em casa, diante das flores, do céu azul, quando converso com ela e rezo), fui ler um texto que aprecio há muito tempo, o poema de Carlos Drummond de Andrade, TU? EU? Por que estes versos? Porque o nosso Mago de Itabira, quando sentiu que a morte se avizinhava, publicou, em 1968, o livro Boi Tempo, ou A Falta que Ama. Obra triste, amarga, o Poeta fala obcecadamente da morte, mas de maneira lírica, lindíssima.
         Jamais vou me esquecer. Quando comprei e li o livro, gostei muito, apesar de toda a tristeza e melancolia que permeava todos os poemas. Adotei a obra para meus alunos da Instituição Universitária Moura Lacerda. Quando líamos e comentávamos os poemas, algumas alunas choraram. Dias depois, escrevi ao Drummond, comentando seu livro e narrando o que acontecera aos jovens, lendo-o. Para minha surpresa e alegria, recebi uma cartinha do Poeta, agradecendo-me e enviando-me um poema inédito, sobre o Natal; estávamos em dezembro.
         No poema TU? EU? , o universalismo é muito sugestivo, porque a temática central fala sobre a inexorabilidade da morte. Contudo, Drummond, além de explorar a questão metafísica, enfatiza alguns enfoques trágicos, denunciando a morte como algo injusto e inesperado, porque ela vem sempre sem aviso, ou hora apropriada ( haveria alguma?) e afirma fatidicamente: “Não morres satisfeito / morres desinformado”. Seus argumentos são inquestionáveis: “A vida te venceu/ em luta desigual./ era todo o passado/ presente presidente/ na polpa do futuro/ acuando-te no beco/ Se morres derrotado, / não morres conformado”.
         Há versos antológicos, jogos semânticos, metáforas inesperadas e o grande poeta cria neologismos notáveis: “Nem  sabes se és culpado/ de não ter culpa. Sabes/que morres todo o tempo/ no ensaiar errado/ que vai a cada instante/ desensinando a morte/ quanto mais a soletras,/ sem que nascido, mores/ onde, vivendo, morres”. O livro todo é um aviso, uma análise, uma reflexão profunda e sábia. Às vezes ele é quase cruel e herético, quando diz: “Deram-te um defensor/ cego surdo estrangeiro/ que ora metia medo/ ora extorquia amor”.
         O que fica, após uma leitura cuidadosa da obra, é um alerta a nós, os “morituros”, como ele nos chama,  e uma profunda admiração pela lucidez de Drummond, ao falar sobre o grande tema, de modo terrível, amargo, todavia sábio e de um lirismo belíssimo.