domingo, 27 de outubro de 2013

MENSAGEM À MINHA MÃE




MENSAGEM À MINHA MÃE

        Minha querida, agora em outubro, mês de seu aniversário, faz um ano e meio que você partiu. O povo diz que o tempo ameniza tudo. É falho. Cronus nos ludibria. Você não está mais aqui, embora eu a sinta viva, próxima.
         Vejo-a ainda, em sua cama, sorridente, convidando-me para assistir a um filme, na televisão, ou na mesa, quando eu a levava para saborear os pães-de-queijo que meu marido fazia. Você sempre teve um ótimo apetite.
         Estranho a casa sem você e ponho-me a filosofar. Sempre fomos mais amigas que mãe e filha. Admirava sua vaidade. Mesmo depois de noventa anos, adorava fazer as unhas, escolher cores de esmalte. Uma vez por mês, vinham pintar seus cabelos, ainda belos, da cor que você sempre apreciou, um loiro cor de trigo.
         E quando viemos de Minas para Ribeirão Preto... Eu era quase uma menina, você tinha pouco mais de trinta anos. Bonita, elegante, meu pai tinha ciúmes. Não gostava que saísse sozinha, mandava-me acompanhá-la, para que os homens não lhe fizessem galanteios. Aí, eles faziam às duas...
         Quando adolescente, comecei com os namoricos; voltava emocionada para casa, a fim de lhe contar as novidades dos amores prematuros, dos flertes. Você ria animada. Éramos cúmplices.
         Fui estudar fora, em Belo Horizonte. Em uma das férias, vim para casa e encontrei-a descuidada, com um cabelo feio, vestidos de decote alto. Nem parecia minha mãe linda. Levei-a ao cabelereiro, fez as unhas, começou a se maquiar, compramos um vestido rosa elegante, decotado, que realçava seu belo colo.
         Meu pai, espanhol bravo, ficou enciumado. Que fez com sua mãe?! Mais tarde me confessou que você estava muito mais bonita...Quando fui para a França, estudar em Paris, durante um ano, recebia cartas suas, todos os dias. Eram enormes, com notícias. Às vezes você ilustrava-as, com desenhos deliciosos.
         Ah, minha mãe querida, amiga dileta, mulher notável! Sempre foi muito religiosa, uma fé de carvoeiro, inabalável. Eu, desde criança, era um mar de dúvidas. Depois de adulta, muitos sacerdotes embaraçavam-se com meus questionamentos. Na escola, azucrinava os pobres professores, perguntando tudo. Vida engraçada. Depois,  professora, eu apreciava alunos questionadores. Como esquecer a meninazinha da quinta série? Levantou a mãozinha e perguntou: Professora, o que é orgasmo?
         A senhora riu muito do que fiz. Fechei a porta da classe e rasguei o verbo, explicando claramente. As crianças ficaram estáticas, quietinhas, na maior atenção... Em casa, contei-lhe o acontecido. Você adorou meu relato. Outra vez, eu convidara os alunos da oitava série, para assistir à série Anos   Dourados. No final, o narrador diz que uma das personagens casara virgem. No dia seguinte, os alunos estavam alvoroçados. Como podia ser? Aparecia a garota tirando o sutiã, abrindo a braguilha do rapaz e depois os dois deitavam-se atrás do sofá...
         Respondi que devia ser uma relação sexual incompleta. Eles exigiram que eu detalhasse. Não dei conta. Chamei a professora de Biologia e ela não titubeou. Pegou o giz, desenhou na lousa e disse: Isto é um pênis. Isto, uma vagina. Aqui é o hímen. Cientificamente, pôs a cartas na mesa. Os alunos ficaram atentos e sérios. Eu estava salva!
         Em casa, você, de mente aberta,  aplaudiu a professora. Ah, mãezinha, a vida é bela. Mesmo você, aparentemente longe, continua sendo minha confidente. Agradeço a Deus por deixá-la ficar comigo para sempre.
        

                           

        
          

         

domingo, 13 de outubro de 2013

RECADO

RECADO
                
                 Tu sabes que eu te respeito muito, querido Leitor. Um pedido teu é uma ordem.  Enfatizo a tua importância e digo-te  que nada teria sentido, quando escrevo, sem ti. Tu és meu co-autor, meu comparsa. Hoje, no entanto, eu te falo como a um irmão, meu sósia, xerox que somos de alma, de fraquezas e de grandezas misturadas, fazedores de sonhos, perdedores de ilusões, mal informados na arte de viver, na qual somos jogados como em uma louca partida, sem mesmo conhecer as regras do jogo, a arbitragem, limites do campo, o tempo disponível e se há possibilidade de prorrogação.
                 Tu me pediste para publicar, de novo, os questionamentos abaixo, para tua reflexão. Obedeço. Já pensei muito sobre tais perguntas. Tu te lembras? Eu começo afirmando:
                    EU sou TU, Tu me és, como diria Clarice Lispector. Se não acreditas, desarma-te, esconde tuas garras e tuas tramas, tira todas tuas máscaras habituais e responde: 
                 _ Nunca te sentiste inseguro, vendo o mundo como um quebra-cabeça sem matriz e de onde roubaram algumas peças?
                 _ Não foste, na adolescência, uma sarça ardente de sonhos, um vulcão de entusiasmo, acreditando que o mundo ali estava para ser conquistado?
                  _ Não te alimentaste do fervor e do fogo com o primeiro amor, para vê-lo logo após te fugir das mãos, como areia em ampulheta maldita?
                  _ Não fremiste com o primeiro beijo, o primeiro carinho, trilha encantada e depois perdida para sempre?
                _ Não foste um Sísifo rolando eterna pedra, construindo castelos de sonhos que eram derrubados pelo tempo?
                _ Nunca andaste sob as estrelas, pelas madrugadas, cego pelas lágrimas que te escorriam pelo rosto?
                 _ Jamais foste traído pela pessoa querida, pelo ente amado, em quem punhas todas as tuas esperanças?
                  _ A vida não te pregou peças, atrapalhando teus planos, frustrando tuas expectativas, fazendo-te de bufão, quando o teu papel era de rei?
                 _ Tu não juraste jamais te apaixonares de novo, quando teu amor morreu, e te viste, de repente, outra vez, inexoravelmente louco de paixão?
                 _ Não prometeste ser forte, heróico, perfeito e sem explicação alguma foste arrastado pelas tuas fraquezas?     
                 _ Não bateste no peito, mil vezes, “mea culpa”, “mea culpa” e de novo teus velhos pecados te possuíram, com fatídica renitência?
                 _Não disseste, apaixonadamente, “Eu te amo para sempre!” e, em um átimo, já havias esquecido a promessa?
                 _ Teus lábios não disseram tantas vezes “sim”, quando teu coração negava, ou tua boca não pareceu mentir o que deveras sentias?
                 _ Não tiveste, como o Cristo, o teu Gólgota?
                 _ Não sentes, ainda hoje, apesar de todo o Absurdo, uma obstinada Esperança?
                 _ Não continuas servo da Morte, todavia um amante pertinaz da Vida?
                  Se nunca experimentaste isto, se jamais conheceste esta rota, se achas que digo loucuras, se és diferente, então vai embora, teu lugar não é aqui. Não és um ser humano.
                  

                 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

DO SOFRIMENTO

DO SOFRIMENTO

         O sofrimento é algo inerente ao ser humano. Uma segunda pele. Criatura imperfeita, ele almeja a perfeição. Mortal, efêmero, ele sonha com a eternidade. Bicho cheio de carências e necessidades. O sonho alimenta a alma inquieta; se não sonha, morre. Quando realiza alguma  das suas mais íntimas aspirações, logo ela é posta em segundo plano e o outro ideal a substitui, porque a alma é insaciável e sequiosa. No deserto dos infortúnios, o sonho é um  presente de grego que nasce com esse macaco glabro e bípede, que talvez  seja um desvio, um acidente de percurso da Criação, por isso é frágil e inseguro. Às vezes surge um oásis de verde alegria. Ela é sempre bela e fugaz. Por isso é que felicidade é o mais abstrato dos substantivos.
         Por que não ser simples e satisfazer-se com necessidades básicas? Companheiro(a), filhos, casa, comida, dinheiro que dê para as premências diárias. Sem isso, impossível viver. Mas por que só isso não basta? De onde vem a ânsia que não se sabe de quê, os desejos mais insólitos e inconfessáveis, a certeza de que nada poderá preencher esse vazio, a busca cega, força maior, desassossego contínuo, paz inalcançável ? Surge o sofrimento , amigo inseparável do homem. Com entendê-lo? Alguém inteligente, talentoso, profissional de renome, olha-me com tristeza e filosofa: “Sou um Ph.d. em sofrimento”. É intrigante. Quais os parâmetros que o fazem afirmar isso? O sofrimento pode ser uma carência metafísica insanável? Reconhecendo-se um ser mortal, imperfeito e efêmero, em essência, a felicidade, a alegria  tornam-se inatingíveis? Dostoievski afirmou que a maior desgraça do homem é a lucidez. Enquanto o homem cria seus mitos e doura a pílula das mazelas diárias, para suportar as incongruências da vida, o absurdo da existência humana, ele pensa que é feliz. Faz ficção, mascara a realidade, vive eufemicamente o decantado amor,  a busca pela rara paixão que os assinalados conseguem sentir, tudo são muletas, drogas para não enlouquecer.
 Os chamados realistas criticam o amor-mistério, da cavalaria, herança de Camões, que depois passa pelo resgate de Hollywood, com Casablanca, e desemboca nas novelas da Globo; é amor- ilusão, de pseudo-adulto, que ficou emocionalmente entre a adolescência e a idade madura, sentimento que não resiste à aspereza da realidade do mundo moderno. São posicionamentos diversos. As relações dos seres humanos são complexas demais para serem rotuladas.
         Ora, o que se pode fazer é tentar compreender a complexidade humana.  Parafraseando o grande poeta Cassiano Ricardo: Desde o momento em que se nasce, já se começa a sofrer. Se a vida é luta, busca incontínua e vã para se conquistarem prêmios efêmeros, como coabitar com a lucidez, ter sempre a tristeza como parceira, não se desesperar? O homem reinventa a vida, com suas verdades, ainda que falsas, pesquisa, lê livros imbecis de autoajuda (só se fossem escritos por Deus, sapiência suprema), enfim, criam uma realidade insuportável e acaba, às vezes até nas suas ficções.

         Enfim, o que é sofrimento? É algo inerente, intrínseco ao homem. Talvez a felicidade, seu antônimo, seja conseguir driblá-lo, durante toda a vida. Não são importantes as armas escolhidas para essa luta terrível. O resultado é o que conta.