segunda-feira, 23 de abril de 2012


ADEUS À JAIR IANNI

         É  muito conhecida a filosofia do Mago de Cordisburgo: Os poetas não morrem, ficam encantados. É o que aconteceu dia 12 de abril, quando nossa Jair nos deixou. Assim, sem alardes, docemente, como as almas puras partem. Deve ter havido uma festa no céu e, com certeza, Djalma Cano veio recebê-la, fazendo as honras celestiais.
         Atrás do nome pomposo, Jair Ianni de Paula Eduardo, o corpo de menina e a alma de adolescente, Jair amava os mistérios. Ela mesma confessa, na sua minibiografia em Ave, Palavra! , Antologia poética publicada em 2009: Octogenária, poeta por vocação e teimosia, filha de imigrantes latinos, herdou da mãe a determinação espanhola e todo o lirismo italiano do pai: “Sou a leoa que chega sem fazer ruído / Sei de mim; ninguém mais! (...) Chorei rios e mares  ninguém viu, / organizo em meus disfarces”...
         Seus poemas traduzem a riqueza e complexidade da brava mulher, camuflada naquele jeitinho de menina. Culta, lúcida, metafísica. Dia 9 de novembro de 2008, publiquei um texto com o título “Canto a Três Vozes: O Encontro”. Jair, Aider Cruz de Oliveira e Maria Helena Ribeiro Facci Ruiz reuniram-se para cantar em poemas belíssimos, temas profundos. Eu dizia: “Quando três mulheres inteligentes e sensíveis se reúnem para fazer poemas é algo muito expressivo”. Elas buscavam as trilhas de Deus, a intimidade com o Senhor,  através de confissões íntimas que exploram os mistérios abissais da alma. Agora Jair já os conhece.
         Jair era desas raras pessoas que não se entregam pela metade. Era intensa e autêntica em todas as suas facetas, de mulher, de mãe, de avó, de artista e de poeta. Franca, aberta, forte, mas gentil e doce. Dinâmica, participante. Relembrando sua participação no Salão de Ideias, na Décima Primeira Feira do Livro, em 2011, sou tomada por grande melancolia. Ela estava bem, saudável, alegre e encantou a todos pela franqueza e ousadia de suas afirmações.
         Penso na nossa insciência. Jamais imaginar que em 2012 era hora de partir. Recebemos a notícia durante uma reunião da Décima Segunda Feira do Livro e a tristeza pairou sobre todos. Em casa, o telefone tocou muito, gente que a amava e não conseguia aceitar. Aider e Helô, muito tristes, Mara Senna, com doce mensagem no Facebook, enfatizando com carinho a poeta Jair, a ceramista, a artista, a mulher sábia que lhe deu grandes lições de vida. Waldomiro Peixoto, saudando-a com o poema Requiem para Jair Ianni, relembrando-a do nosso Grupo Flamboyant. Aos poucos nossos poetas se vão. Tristonho, Waldomiro diz que ficamos “órfãos de ternura” e pede a ela que funde no céu uma Alarp ou um Grupo Flamboyant de poetas iluminados. Cristiane Framartino Bezerra, após o velório, presenteou-nos com um belo poema de Jair,   enviado recentemente, pela própria Jair, ao sentir-se com saúde debilidada. 
         É certo que houve festa no céu. À frente, alegre colorido, Piolim também veio receber a amiga, que imortalizou sua figura no livro “Piolim: A Trajetória Iluminada do Maior Palhaço Brasileiro”, lançado no dia em que Piolim completaria cento e dez anos de idade, vinte e sete de março, data declarada como Dia do Circo.
         Adeus, doce Jair, mulher querida, criatura especial, receita de Deus que deu certo.


        

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A MINHA PASÁRGADA


A MINHA PASÁRGADA


Vou-me embora pra Pasárgada  é um dos poemas mais famosos de Manuel Bandeira. Nele o poeta cria uma cidade utópica, onde ele é feliz, “é amigo do rei”, realiza todos os sonhos impossíveis, tem saúde, alegria, drogas à vontade e diz: “Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei”. O local é símbolo de liberdade e realização total.
            Já se discutiu à exaustão se a arte copia a vida, ou o contrário. Minha experiência é interessante. Vivi quase a vida toda enjaulada em apartamentos, por praticidade ou segurança, sonhando com uma casa térrea, ampla e clara. Sabe-se que a literatura é catártica. Assim, como meu desejo parecia impossível, em meu romance epistolar Cartas a Cassandra, a heroína, quando começa a envelhecer, muda-se para um lugar silencioso, florido, com uma casa grande e branca, rodeada de verde.
          E então, não mais que de repente, por magia, a vida copiou a arte. Dois anos depois do lançamento do livro, eu morava em um local como o de minha heroína, rodeado de murta, com muito verde, grama, flores, piscina e cachorros: duas labradoras lindas, cor de chocolate, de belos olhos verdes.
            A vida mudou. Onde moro acontecem coisas inesperadas. As orquídeas florescem, as folhagens estão sempre frescas, a brisa brinca nos meus cabelos. Há pássaros em profusão. Um dia desses um tucano passou muito perto, voando tranqulo. Até um macaquinho apareceu, fazendo micagens.
            Fiz amizade com um belo bem-te-vi, grande, colorido. Meses depois, ele trouxe a companheira e após, os dois filhotes. É bem verdade que desgraças acontecem: na semana passada, despertou em uma das minhas belas labradoras o instinto da caça. E ela surgiu com um dos meus bem-te-vis na boca, orgulhosa de sua presa. Tomou gosto e já estraçalhou uma pombinha. Só não matou um gambazinho, quando surgiu com ele na boca, o rabo pendurado para fora, porque salvamos o infeliz, arrancando-o dos dentes da fera. Não só os seres humanos são complexos e contraditórios. Lara, a caçadora, é uma doce criatura que brinca como uma criança e tem trejeitos de filhote.
            É verdade que não há paraísos perfeitos. Ao redor de meu Condomínio há um mar de cana. Os canaviais perdem de vista e são até belos, enquanto não chega a época da safra. Então começa o inferno. Acorda-se à noite, de madrugada, com o terrível barulho do crepitar das chamas , tão próximas, que assustam. O céu rubro, o cheiro sufocante, a fumaça. No dia seguinte, a prova do crime: o chão, a piscina, ao redor da casa toda, as fuligens formam um tapete triste e fatídico. Leis recentes prometem acabar com o absurdo. Palavras mortas. As queimadas continuam, poluindo o ar, matando animais, provocando acidentes,  aterrorizando.

            Contudo, às vezes, na rede, lendo um bom livro, com minhas labradoras aos meus pés, olho para o céu límpido, as flores ao redor, a murta cor de esmeralda, vejo só o que é bom, sinto-me em minha Pasárgada. Aqui não sou amiga do rei, mas sou feliz, muito feliz. Serei eu, por acaso, a personagem de um livro de Deus?

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O FEITIÇO DO TEMPO


O FEITIÇO DO TEMPO

        Não é aleatório que Cronos (do grego Kronos), o líder e o mais novo da primeira geração dos Titãs, descendente divino de Gaia, a Terra e Urano, o céu, seja tão poderoso. O Tempo é nosso carrasco, devora-nos inexoravelmente, todavia é também nosso Grande Mestre. Só ele pode dar-nos lições valiosas, únicas.
        Sua importância é grande. Acontece um fato real e concreto, no presente. Após muitos anos, a pretensa realidade transforma-se em ficção duvidosa. Tente analisar amores tresloucados, paixões devastadoras, dores dilacerantes, mágoas terriveis, muitos anos depois. Às vezes não sobra nada. Quimeras. O tempo tudo modifica, transforma, apaga.
        Já diz o axioma que só o tempo ameniza, cura. Não há outro remédio para as grandes perdas. Contudo, o que mais impressiona, ainda dentro dessa temática, são as mudanças que o tempo faz. Ele mistura, muda, deleta facetas e minúcias, no grande computador da existência.
        Tenho experiências pessoais sugestivas, sobre a assertiva acima. Há muitos anos, em uma noite trágica, trancada no banheiro, chorei copiosamente, até de manhã, sentindo-me a mais desgraçada dos mortais. Hoje, por mais esforço que eu faça, não consigo me lembrar da razão de tão grande amargura afogada em  tanta tristeza. 
        E o rio de lágrimas nos finais de namoro, na adolescência? No presente,  eu me lembro dos príncipes, como meras personagens de uma época lírica. O passado, agora, me parece uma obra literária (escrita por quem?) que analiso com minúcia e muita tranquilidade. Ficção ou realidade? Onde começa uma ou outra? Sempre desconfiei da memória. Ela trai.
        Há relatos notáveis de pessoas curiosas e saudositas, homens e mulheres, que tentam reviver um grande amor do passado. No momento, quando se aproximam, olham-se, no esperado encontro, os dois ficam abismados, desorientados, porque na sua frente há apenas um estranho, ou uma estranha, que não tem nada a ver com sua lembrança. Onde a face amada? Como se perdeu o encantamento?
        Ainda neste mistério abissal do tempo, há causas e razões que nos surpreendem. Certa vez, quando era jovem, passei por grandes dificuldades em San Sebastian, na Espanha, devido a desencontros e problemas de passaporte. Fome, frio, ofensas. Dez anos depois, fiz questão de ir à mesma cidade espanhola, jantar no hotel mais refinado, pedir os mais caros pratos, beber o vinho finíssimo. O hotel, todo de mármore rosa, ficava no alto de uma colina, rodeado pelo mar. Portei-me como uma rainha, uma pessoa da alta nobreza. Era uma desforra. Agora, intrigada, pergunto-me sobre a necessidade que tive, na época de agir assim. Queria vingar-me de quem? Da cidade?
        Enfim, Cronos não faz concessões. Cobra um pedágio altíssimo, na grande rodovia da vida. E só sobrevivem felizes os mais argutos, os mais aptos, que aceitam e assimilam o processo: a vida é dinâmica, um grande rio e jamais se mergulha a mão na mesma água. Os gregos, sábios e perspicazes, já sabiam disso.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A LIÇÃO DOS IPÊS



A LIÇÃO DOS IPÊS
                                                          
                As árvores sempre me encantaram. Elas têm algo de magia, de sagrado. Há muitos mitos sobre elas e vários poetas já as cantaram. Dão lições de vida, de generosidade. Elas, com sua rica variedade. Grandes, copadas, acolhedoras, altas, esguias, pequenas, tímidas, mas sempre símbolos de paz, de alegria e de esperança. Todas me fascinam, mas os Ipês têm uma magia especial, com suas tonalidades várias, em sua abundância florida. Nada , por exemplo, é tão belo e simbólico, como os ipês brancos, na sua efemeridade láctea. Parecem recados líricos de Deus.  Uma das mais belas lições de vida me foi dada por um ipê.  Jamais poderei esquecê-lo.
                 Ele nasceu como qualquer outro, frágil, medroso, indefeso. Escapou dos pisões desastrados, livrou-se da malvadeza de algum eventual destruidor de tudo que surge e tenta crescer, sobreviveu à seca, ao exagero dos fenômenos pluviais, às mãos cegas que parecem acicates, às formigas monstruosas, aos vermes, aos insetos, aos lagartos verdes e desajeitados, que passavam sobre ele, fugindo das crianças sempre ávidas de novidade.
                 Quando tinha alguns meses, um ser bondoso e ecológico rodeou-o de bastões, protegendo-o. O perigo não passou. Os filhotes dos homens, perigosos e buliçosos, retiraram seus escudos para brincar. Mas, uma força maior elevava-o para o alto numa ânsia de crescer. As folhas ficaram maiores, os galhos mais grossos, o tronco mais rijo. E aí, de repente, ele ficou com três metros de altura. Que idade terá? Firme, erecto, senhor de si, de um verde forte e ostensivo, esparramou galhos, engrinaldou-se de folhas abertas, mãos verdes acenando. No alto de sua copa, que já se alarga, conquistando seu espaço, folhinhas novas, verde-amarronzadas, macias e alegres, sorriem.
                 Diante de mim, ele se ergue como um vencedor. É alegre, gracioso, esbelto, mas forte e destemido. Ainda agora, algum monstrinho teima em pendurar ou encostar-se em seus galhos. Ele se verga, o acolhe, mas não se quebra. Dá-me lições de vida: como continuar sempre em ascensão, lutando contra o meio ambiente, vencendo barreiras físicas e metafísicas (seca e enchente seriam neuroses de Deus?), lindo, fresco, acolhedor, delgado, elegante, flexível (até diante dos dissabores), assumindo seu Ego verde, integralmente árvore.
                 Nós passamos pela vida cegos e surdos aos rumores de Deus, que nos ensina, envia mensagens através dos mais variados símbolos. À minha frente lá está ele, o jovem Ipê Roxo, no pátio da escola. Abana-me os dedos verdes, folhas que se postam com elegância de gestos nobres. Ao seu lado, nascido ao mesmo tempo, há outro ipezinho estropiado, que cresceu pouco, curvou o tronco muito fino para sua idade, com raros galhos, uma pobreza de folhas. A todo momento quase morre diante de qualquer perigo iminente. Por que vencedores e vencidos? Por que ascese e degeneração? O fenômeno é genético ou há uma força maior, uma energia que norteia os destinos? Orgulho-me do Grande Ipê, condoo-me do pequenino. Mais uma lição salta-me aos olhos: no mundo verde, como em qualquer outro, forte e fraco coexistem em paz, cada um nos seus limites, cada um usando suas defesas possíveis, cada um sendo ele próprio, sem ter que dar justificativas ao mundo. O respeito, a convivência democrática na vida, como na política e em todo o universo,  é a única forma superior e decente de se viver e CONVIVER.