domingo, 30 de março de 2014

LIVROS & VIDA

LIVROS & VIDA

Os livros têm vida própria e biografia. Muitos escritores já tiveram a experiência: surge um projeto de conto ou romance, ele cresce, vai tomando forma e muitas vezes ele pega as rédeas como se tivesse vida e acaba por ser independente, tendo pouco do plano inicial. A sensação é esta: o escritor é levado pelo texto, torna-se instrumento de suas leis e verossimilhança ficcional.
             Já se comentou que a ficção não é fantasia, mas recriação da realidade. O chamado real é matéria da ficção, alicerce, alimento. Dá-se então um círculo vicioso fatídico: a ficção copia a vida e após, esta realidade influencia a sociedade. Nos “reality shows” tão em moda e de qualidade discutível, o processo se complica. Cria-se uma falsa realidade imitando a vida e os telespectadores identificam-se com a ficção, como se ela fora real.
            Na literatura também há mistérios indevassáveis. Livros rejeitados em concursos literários escusos tornam-se obras famosas. O episódio mais pitoresco deu-se com Sagarana, de Guimarães Rosa. O Mago de Cordisburgo, ao terminar seu livro Sagarana, hoje famosíssimo, entrou para um concurso em cuja Banca estava o nosso Graciliano Ramos. Inacreditavelmente, o premiado foi Luís Jardim, escritor medíocre que o tempo engoliu.
            Há outros acontecimentos sem explicação lúcida ou lógica. Humberto de Campos gozava grande popularidade e pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Lembro-me de que um de seus livros mais lidos, “Sombras que Sofrem” (1934, ano de sua morte), encantou gerações. De repente não se leu mais Humberto de Campos, que foi posto em um injusto e bizarro ostracismo literário. Como? Por quê?
          Outro caso insólito, na literatura brasileira, deu-se com o escritor José Mauro de Vasconcelos (1920 / 1984). Nasceu em Bangu, bairro do Rio, foi um dos escritores mais lidos no exterior. Com uma biografia insólita, cheia de peripécias inacreditáveis, ganhou fama como escritor, principalmente com Rosinha, Minha Canoa, livro utilizado em curso de Português, na Sorbonne, em Paris. Meu de Laranja Lima (1968) foi adaptado pela antiga Tupi e pela Globo, como novela televisiva e também levado ao cinema. De um estilo simples e sensível, foi lido em muitas línguas, com enorme sucesso. Por que não se lê mais José Mauro de Vasconcelos?
          Outros casos estranhos continuam. O romance João Ternura, de Aníbal Machado foi considerado excelente pela crítica literária da época. Como diz Luiza Vilma Pires Vale, é a história de um homem e o Rio de Janeiro: o homem perdido da / na Cidade. Com uma trama sempre atual, ela mostra a falta de adaptação da personagem central e o modo de vida da grande metrópole. O protagonista não consegue integrar-se no cotidiano da cidade, sente-se um estrangeiro. Há uma forte influência sartreana na obra. O autor levou duas décadas escrevendo o livro, que ficou no limbo muitos anos. Após, obteve sucesso. Mas a pergunta se repete: Quem lê João Ternura hoje?

          Assim, no mundo literário esses mistérios continuarão para sempre como enigmas inextricáveis.  Há outros que se pode até tentar uma explicação plausível. Como os seres humanos, os livros têm suas lutas, com ascensões e quedas. Entende-se, por exemplo, que o romance Ulysses, de James Joyce, ou Nove, Novena, de Osman Lins, tenham hoje poucos leitores. É devido, em parte, por sua extrema complexidade. Ora, reina no século XXI a banalização, homens e mulheres são reféns de uma preguiça mental arraigada, é a era do superficial, do fácil, do atraente, do óbvio, do rápido, do fast-food literário. 

domingo, 23 de março de 2014

VISITA INESPERADA

 VISITA INESPERADA

          O homem procura a felicidade com obsessão. Talvez ela não exista, ou esse pobre macaco glabro erre nas opções. Vicente de Carvalho eternizou a problemática, quando diz: “Essa felicidade que supomos, / árvore milagrosa a que sonhamos / Toda arreada de dourados pomos, / Existe, sim, mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos.”
          Muitos incautos pensam em encontrá-la em coisas materiais, como dinheiro, bens, ou na fama, no poder. Tudo é efêmero e traz, no final, o ressaibo do tédio e da desilusão. Não é apenas na sede de poder, mas em todas as ambições, é preciso lembrar sempre que, acima de cada cabeça obcecada há, perigosamente, uma Espada de Dâmocles.
          Ora, a idade madura, às vezes vista como castigo, traz alguns privilégios e um deles é reconhecer os valores essenciais, ter uma espécie de feeling para o que realmente é importante na vida. Uma boa opção talvez, sem exageros, é ser presentista, viver à exaustão, o momento presente. Admirar a filosofia de Horácio, o Carpe Diem, ver com acuidade, certos frutos doces e magníficos, como colheita de uma seara lúcida e aureolada de sonhos.
          Sabe-se que a experiência é ao portador, porém diante de tanto ceticismo, ouso relatar uma descoberta que talvez possa embelezar um pouco a complexa vida moderna.
          Troquei uma vida de quarenta e sete anos, em apartamento, sempre por segurança e praticidade e vim para a minha Pasárgada: casa ampla, com clima mais ameno, muito verde e logo se formará um jardim ainda em projeto. Chego a ver as buganvílias de cores variadas enfeitando as cercas frescas de murta; virão as gérberas, as prímulas, rosas e árvores ornamentais como os ipês, um flamboyant, as quaresmeiras de roxo vivo, acácias e um gracioso chorão. Ao redor da piscina muito azul, os coqueiros anões, com sua alegria tropical. A horta de tenras folhas, o futuro pomar pejado de frutos doces.
          Os animais completam a beleza harmônica e transformam o local em um santuário ecológico: duas cadelas labradoras, cor de chocolate, de lindos olhos verdes, curiós, cujos cantos são puro violino, com suas femeazinhas à espera de gala, os beija-flores visitam o pequeno bebedouro de água açucarada, borboletas várias, de cetim, enfeitam a tarde. Em uma árvore vizinha, quatro maritacas jovens, ruidosas e um sabiá. Bem-te-vis coloridos saltitam e se aproximam, em meio a uma enorme variedade de pássaros. Gaviões voam, dando um toque de mistério e de perigo, enquanto soturnas corujas, estátuas imóveis, filosofam ao anoitecer.  A beleza e a paz alimentam a alma.
          Há pouco tempo, uma visita pitoresca, muito inesperada: um mico estrela tem vindo comer a banana que deixamos para ele. Domingo de manhã, na sua galanteza, fez-nos uma visita. O irrequieto amiguinho deve morar nas matas cerradas, cor de jade, que bordejam o rio, aqui perto.

          Namoramo-nos de longe, eu encantada, ele arisco e cuidadoso. Pela hora inteira que estivemos juntos, tão próximos, chego a crer que ele voltará. Deixei-lhe, então, junto às frutas, um recado: “Volte sempre. A casa é sua”. 

domingo, 16 de março de 2014

PROPAGANDA & CRIATIVIDADE

PROPAGANDA & CRIATIVIDADE

          Propaganda sempre me fascinou, desde que ela seja perspicaz e inteligente. Tive problemas com ela, no passado.
          A primeira vez, eu dava aulas no Cursinho. Entrei na Sala dos Professores, criticando uma Propaganda de extremo mau gosto sobre oferta de móveis. Um professor abespinhou-se, atacando-me: “Vejo que você não entende nada de propaganda!” E continuou explicando que os móveis oferecidos eram para pessoas de baixa renda.  Eu me rendi e silenciei. Ele devia ter razão. Era o autor da Propaganda...
          Outra vez, chamei a atenção dos alunos para uma Propaganda, com verdadeiro abuso de símbolos sexuais, ao anunciar lençóis. Aparecia um casal fazendo sexo; depois a heroína descia do quarto, para um lanche. Pegava um ovo, quebrava a parte superior e nela surgia a figura de um hímen rompido. Logo em seguida, ela molhava várias vezes, no orifício do ovo, uma torrada de forma evidentemente fálica... Os alunos me criticaram. Eu via coisas demais, inventava...
          Já briguei por causa de uma Propaganda imbecil, que mostrava pessoas idosas fazendo travessuras, como crianças, ou com começo de Alzheimer. Mas sejamos positivos. Há Propagandas inteligentes e criativas, verdadeiras pequenas obras-primas. Quando morei em Paris, antes dos filmes exibiam, durante duas horas, propagandas muito boas, atraentes, em uma sessão que se chamava  Séance,  que atraia  grande público.
Vamos agora para o Facebook, um grande sucesso.  Postam, às vezes, versos, poemas, textos, brincadeiras, com ironia. É um meio de comunicação leve, ameno. Raramente surgem matérias sérias. O espaço é um oásis no deserto da vida moderna, tão conturbada. Se assistimos aos jornais televisivos (é preciso estar informado, dizem...) eles  começam  sempre com  desastres, mortes, violência, prisões. É raro dar uma notícia boa, positiva. Muita gente começa a fugir deles.
Voltemos ao  Facebook. Esses dias, alguém postou algo muito inteligente, fazendo a paráfrase da famosa frase de  Descartes: “Penso, logo existo”. O cartaz dizia: “NÃO PENSO. NÃO EXISTO. SÓ ASSISTO”. Genial! Haverá uma crítica mais sintética, sábia e ferina contra a alienação, alimentada pela  Televisão,  com  seus  programas  escusos? A assertiva final, com o verbo assistir, após duas negativas, denuncia uma realidade terrível e perigosa, expressando em duas  palavras, mencionando  um  grande  problema universal, efeito  “dangerosíssimo”, como diria  Drummond, de  um problema  atual:  a  má  qualidade  da  Programação da TV,  em  geral,  quase na  sua  totalidade,  é  a  causa  maior (e globalizada!)  de  um hábito  que  robotiza  o homem, coisifica-o,  o  imbeciliza e  aliena.
É  uma  denúncia séria, verdadeira  e  preocupante.  Infelizmente¸ a profilaxia é utópica.  Só há dois antídotos para essa chaga moderna: uma Programação de qualidade e educar os telespectadores para que tenham mais bom gosto e abominem esse  fast  food  diário, que os  alimenta.
Sabe-se que mudanças estruturais e profundas necessitam de homens  corajosos  e  bem  intencionados, não  de quem  só  se  preocupa  com  o Ibope  de  uma  plateia  ingênua,  acomodada,  pouco exigente e,  aos  poucos,  reificada. O telespectador acaba virando um autômato, coisa, transformando-se em um mero e pálido  simulacro  de  um  ser  humano.
  Há