segunda-feira, 24 de setembro de 2012

ENSAIOS DA TARDE


ENSAIOS DA TARDE    

      Ensaios da Tarde é o título do novo livro de Mara Senna, publicado recentemente em 2012. Nossa poetisa foi, outra vez, picada ela mosca azul da inspiração.  Pelo que se conhece de seus poemas, já se sabia que o novo lançamento seria um banquete literário, com poemas sensíveis, de grande beleza. E a poetisa manteve suas características: o tom confessional, um abrir de alma com uma franqueza cheia de finesse, o mostrar-se através de seu Eu-poético, elevando-o ao universalismo. As almas líricas vão se reconhecer nos poemas pretensamente simples, curtos, que  expressam grandiosidade de maneira sintética, mas profunda.
       Sabe-se que o gênero poético é essencialmente linguagem. Ela deve expressar em sua beleza os sentimentos do poeta, que tenta elucidar os mistérios do Universo e  suas dúvidas metafísicas. Os poemas são antenas especiais que conseguem captar essas mensagens cifradas de Deus, do Universo, da vida e do próprio poeta, com seus questionamentos emaranhados e complexos. E Mara Senna consegue fazer isto com maestria, desnudando-se, ousando, em confissões aureoladas de  delicadezas, em uma linguagem simples, porém com metáforas inusitadas e alusões inesperadas.
      Já no seu primeiro livro, Luas Novas e Antigas, a síntese era uma característica marcante, assim como a linguagem musical, as rimas harmoniosas. No novo livro, na página 34 há um poema com o título sugestivo “Inútil”: “Onde há luto, / é vã/ toda a luta”. Enfatize-se a mensagem sábia e profunda em três versos curtos e o jogo semântico dos termos luto / luta.  O mesmo acontece na pág. 63, em “Memória”: “E quando me tocaste a carne, / o desejo, que ainda vivo, / lembrou-se de doer”. Ou em Crisálida, na página 83: “Que me importa, neste momento, / ser lagarta / ou borboleta? / Só não quero que esqueçam / qual a forma da minha letra”. É uma profissão de fé e de amor pela literatura.
       Em Ensaios da Tarde não é aleatório que a coletânea dos novos poemas traz uma estrofe de Drummond, em epígrafe. O Mago de Itabira confessa que os desejos não permitem a felicidade de uma tarde azul. Os poemas de Mara são muito pertinentes ao sentido maior da metáfora. Há sofrimento, dor, melancolia e sensação de  perda nessa nova obra da poetisa, rica em alusões cinematográficas e míticas, como nos poemas Bela da tarde (pág. 21) e Penélope (pág. 68). 
       A Semiótica tenta desvincular a pessoa, a biografia do autor, de sua obra, realçando que o texto é autoexplicativo, como se ele tivesse vida própria, independência. Talvez a teoria deva ser mais explorada, porque todas as características do poeta, cultura, alma, sensibilidade, tendências, assim como seus medos, cismas e predileções, filosofia e visão de mundo, tudo aflora em sua obra, como um RG intransferível. Na realidade, é quase impossível estabelecer os limites do real e do recriado. Em sua obra, o autor é um demiurgo  e ela, as impressões digitais do seu EU.
       Nada falta neste novo livro de Mara Senna. Leia-o e verá, em belos poemas,  uma certa tristeza perfumada de esperança, um erotismo sutil, uma pitada de ousadia. Porque assim é a poetisa. Assim é a mulher.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

BAZAR LITERÁRIO


BAZAR LITERÁRIO
           Em agosto, Nilva Mariani  lançou mais um livro, com o título Bazar Literário. Batizar uma obra requer cuidado e sutilezas.  O nome de batismo deste filho mais recente da grande escritora foi muito bem escolhido. Ela está muito à vontade,  escolhendo textos sem preconceito de gêneros, temas. Abre o livro com o belo poema A Magia da Palavra,  publicado na Antologia Poética Ave, Palavra! (Funpec-Editora, 2009). É um texto antológico, retrato vivo da escritora, por sua erudição, filosofia, religiosidade, amor à Natureza e às Artes.
             Logo a seguir vêm poemas, intercalados de textos em prosa poética, como o “Se Eu Pudesse Dizer” (páginas 34 e 35), de um lirismo delicado e um toque de erotismo, quando canta a figura do pai, artista e poeta. Talento é genético? Seguem  verdadeiras  aulas  preciosas de  Teoria da Literatura,  como em O Poema em Prosa  (págs. 36,37,38), onde ela enfatiza os sábios conceitos dos professor Massaud Moisés.
             Nilva conhece profundamente as literaturas Francesa, Portuguesa e Brasileira. Nota-se, na primeira, uma predileção pelo autor mundialmente famoso, Proust. Temos, em Bazar Literário, um capítulo sobre o grande romancista francês (1871-1922), de quem se afirma que a história do romance tem duas faces, antes e depois de Proust, autor de          À Procura do Tempo Perdido, título geral de um trabalho que engloba sete outros romances. Segue-se um conto da própria Nilva,  sob o título Meu Conto de Proust,  onde narra uma interessante experiência com as “madalenas”; se em Paris as bolachinhas mágicas inspiraram Proust  a escrever sua obra mais famosa, com Nilva, a magia não aconteceu, talvez porque mudou geograficamente o episódio,  transferindo-o para Lisboa...
             A partir da pág. 45, vem  uma série de textos (Crônicas?Contos?) , alguns com características mais visíveis do gênero do conto, outros mais leves, como crônicas variadas sobre temáticas diversas, como reminiscências, ou narrativas meio filosóficas, ou abordando assuntos populares, como em Brasil X Brasil, Evoé, Momo!, ou ainda relembrando filmes famosos e até um texto pitoresco, Montagem (pág. 72), no qual a autora joga com uma série de títulos cinematográficos, em uma espécie de mixagem inteligente e criativa.
              
             Sem nenhum preconceito  ou critério especial, há textos sobre Crianças (pequenas narrativas)  e em seguida, o didático A Reforma da Língua Portuguesa, o texto alicerçado na Bíblia, Lições de Jesus. Assim, sem  preocupação com a diversidade temática, seguem reminiscências da infância, defesa da injustiçada classe do Professor, problemas na Educação, alguns textos criticando a desonestidade e a corrupção política.  
             A partir da página 45 há uma série de textos , alguns com características mais visíveis do gênero do conto, outras mais leves. Na página 125 inicia o excelente artigo sobre Fernando Pessoa e o Ocultismo. Profundo, inteligente, Nilva chama a atenção para caminhos diversos a serem estudados em Fernando Pessoa. São veredas que a autora aponta.
             Bazar Literário é um livro rico, variado e atraente. No final, Nilva Mariani coloca vários textos sobre sua obra, escritos por amigos e escritores, que realçam seu importante papel na cultura e na literatura.
         

domingo, 9 de setembro de 2012

A ANTOLOGIA MÁGICA


A ANTOLOGIA MÁGICA
     Às vezes acontecem coisas que parecem episódios de ficção, texto bizarro de algum autor desconhecido. E a inteligência, a criatividade do script impressionam. Foi o que se deu, há alguns meses, com um misterioso livro que me chegou às mãos, por caminhos tortuosos.
    Eu falava ao telefone, com meu advogado, homem inteligente, espiritualista, quando ele me disse que ganhara um livro de uma senhora residente em uma Casa de Repouso de Ribeirão Preto. Como ele não era um expert no gênero poético, gostaria de me enviar o livro para que eu o lesse. Um dia depois, a obra estava na portaria de meu prédio. Era um exemplar velho, meio encardido, carregando na capa e nas primeiras páginas  a prova de sua antiguidade.
   Abri a antologia  Poesia Brasileira Hoje, com o título de Os Poetas Estão Chegando, Editora Soma, 1979, Ano Internacional da Poesia. As orelhas são de um autor de renome, Torrieri Guimarães. Lá ele diz que o livro é descompromissado com qualquer corrente literária, com poetas de todas a gerações e todas as tendências. O seu compromisso maior é com a Poesia.             Despojados e autênticos, sem limitações de escolas ou de estilo, de temas ou de gosto. Ali há emoção e pensamento, crítica social e lamentos de amor. Há Poesia. No final, otimista, Torrieri  enfatiza que os autores esperam estar em todas as escolas, com professores e estudantes, para colocar, sobre a crua realidade de nossos dias, o manto suave da Poesia. É preciso poetizar a vida. Eis a salvação, são sua palavras finais.
   Desconheço o destino do livro, se fez sucesso ou não. Eu o abri e na página 4 há um poema também de Torrieri Guimarães, espécie de convocação aos brasileiros, à nossa raça tão miscigenada, versos cheios de belas metáforas e alusões históricas. Após, quase quarenta poetas. Uma pequena foto em preto e branco, ao lado uma minibiografia e alguns poemas de cada um.
   Fui folheando aquelas páginas, procurando a poetisa que oferecera  o livro ao meu advogado. Homens e mulheres, poetas jovens e mais maduros. Tive, então, grandes surpresas.  Os autores vêm em ordem alfabética. Os poemas são de gêneros, tamanhos e temas muito variados, todos, no entanto, bem escritos, com vocabulário rico e belas metáforas. Na página 44 está Eva Ban, poetisa gaúcha que conquistou fama no Brasil e nos Estados Unidos, com muitos prêmios; um poema seu da Antologia vem escrito em inglês. A segunda poetisa é Alice Bueno de Oliveira, a que ofereceu o livro. Olhei sua foto e estremeci. É muito parecida com minha mãe, naquela idade. Quantos anos tinha, na ocasião? Trinta? Cabelos da época, maquiada, beleza e dignidade. De sua autoria, um poema bonito, de um lirismo melancólico e várias trovas premiadas em Concursos de São Paulo. Algo me impressionou: Como viera viver em uma Casa de Repouso, alguém tão sensível, inteligente, com profissão definida?
    Na Antologia estão também o amigo famoso André Kisil, J. B. Sayeg, membro da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, USP. A grande surpresa foi o rosto simpático e jovem de Miguel Cione, meu professor, quando eu era apenas uma adolescente. E de repente, um susto: o jeito de menino, os cabelos negros, o intelectual sério,  político atuante, nosso brilhante professor Gilberto Abreu.         Estou até agora lendo e relendo a preciosa Antologia. Nas mãos, um tesouro  que devo devolver, mas que o coração pede para ficar comigo.
             
           

domingo, 2 de setembro de 2012

MINICRÔNICAS


MINICRÔNICAS

         O amigo convidara. Domingo, almoço às doze horas. Fácil de achar a casa; era diante do cemitério do Bonfim.
         Sábado à noite deitei-me cedo. Sonhando, peguei o ônibus, surgiu a descida, sensação anestésica no estômago, a casinha rosa à esquerda; a entrada, mãe de P. me cumprimentando, quadro de pintor francês, na parede. P., alegre, aparecendo na sala. Biblioteca à esquerda, divã liso, cor de vinho, livros, livros, a carta da Alemanha no canto.
         A manhã do domingo azulou as montanhas de Belo Horizonte. Saí para a visita. Quando a descida surgiu, inquietei-me. A casinha rósea, como eu vira na noite anterior perturbou-me ainda mais. Entrada, mãe de P. , quadro francês na parede.
         Descrevi a ele, quase em pânico, a biblioteca, o divã, os livros, a carta. Não, não podia haver tudo isto! Ele sorri, manda-me verificar. Entro na pequena biblioteca. O vermelho escuro do divã salta aos meus olhos. Os mesmos livros! E no canto, ostensivo como um objeto fetíchico, o grande envelope de bordas azuis e vermelhas, remetido por alguém da Alemanha Ocidental.

                                                II

         Ele surgiu de alguma sombra, perto da escada. Tomou a mão da menina, convidando untuoso:__Vamos lá no meu quarto. Tenho revistinhas para você ler...
        Os olhos da pequena brilharam. A alma inclinou-se ao chamado e o corpo foi de leve subindo a escada, guiado pelo aconchego morno da mão desconhecida. No topo, alguma coisa a reteve. A greve dos Anjos da Guarda terminou?
        Ela olha para o homem, tem um segundo de indecisão e sai correndo para o quarto do hotel, onde seu pai e sua mãe conversam calmamente sobre as compras importantes que devem ser feitas ainda aquela tarde, ali, em São Paulo.
                                              
                                                 III


      As duas caminhavam descalças, evitando as pedras maiores. Dois contrastes de oito anos, cabelos louros. Solidárias nas pernas finas, nos braços de barbante.
      Os dois meninos saem do matinho próximo e tapam a passagem. Uma estaca, passiva, sem saber o que fazer. A outra, coração desembestado, negaceia e escapa por uma nesga de estrada, correndo.
       Menos de cem metros adiante, sem fôlego, para. Olha para trás. Nunca mais a cena lhe sairá da cabeça, dando-lhe comichões pelo corpo, pulsações descompassadas e pesadelos. Debaixo de um dos meninos, que prende como um torniquete, as perninhas da amiga, reagindo, inutilmente, num esforço de animalzinho perdido.

 
                                              IV


      No quintal, sob um céu muito azul,  a cena mágica: ele, com as mãos em concha, aquecia o curiozinho trêmulo, passando a mão sobre sua cabecinha. A ave minúscula era a imagem viva da fragilidade e do medo. Ele a encontrara na gaiola, de costas, perninhas para cima, agonizando. Com medo,  grande ternura e muita esperança, tenta  salvar a avezinha. Aos poucos, o bichinho para de tremer e alguns  minutos depois, consegue comer algo que seu salvador lhe oferece. À tarde, está no seu poleirinho, ainda meio jururu. No dia seguinte, até ensaiou gorjear um pouco, agradecendo seu salvador.

V

     Juna, a caçadora, apareceu com o pobre lagarto verde nos dentes. O pobrezinho tentava inutilmente escapar. Ela se aproximou, mostrando, orgulhosa, sua presa. Os grandes olhos de esmeralda brilhavam de alegria e de orgulho. Tentei livrar o bichinho, mas ela, segura de seus direitos, se negou,  meneando a cabeça, fugindo para o canil. Fui até lá, usei argumentos convincentes,  negociei,  mas foi inútil. Depois de alguns minutos, consegui que ela soltasse a vítima, que saiu, meio troncho, sem a cauda, correndo para a grama. Minha labradora me olhou de maneira estranha, sem entender a injustiça. Nem tentei explicar. Ela acabará por me perdoar.