domingo, 20 de abril de 2014

DESMITIFICAÇÃO E / OU A INOCÊNCIA PERDIDA

DESMITIFICAÇÃO E / OU A INOCÊNCIA PERDIDA

A pedidos, publico novamente esse
texto, em homenagem a 21 de abril.

Sempre me foi doloroso quando algum iconoclasta destruiu um mito que me encantou na infância ou na adolescência.
Mineira, eu amava a figura de Tiradentes, com as barbas e os cabelos longos, a corda grossa no pescoço, o ar de homem bom, que lembrava muito o Cristo. Ele era meu herói, o líder da Inconfidência Mineira, o homem que lutou pela liberdade do Brasil, contra o jugo português. Vibrava com sua valentia, quase a ponto de sair de peito aberto a gritar com entusiasmo: “Libertas quae sera tamen”!  Em uma aula trágica de História, no Colegial, o professor destruiu meu herói. Morreu sim, foi esquartejado, salgaram sua casa para que nada mais ali vingasse, mas ele era o mais pobre, o menos importante do movimento dos Inconfidentes. Como matar um Cláudio Manuel da Costa, ou o fidalgo imponente Tomás Antônio Gonzaga? Na Faculdade foi pior. Teses de pós-graduação punham em dúvida, mesmo sua morte trágica. Ele teria fugido para a África e escapado do castigo execrável.
Decepcionada, infeliz, detestei a nova realidade. Depois foi durante uma visita às Cidades Históricas de Minas. A certa altura, o professor de Literatura Brasileira, que fazia o tour conosco, disse: “Daquela janela, Marília namorava o seu Dirceu, que residia logo acima...”. Todos os versos, as liras do livro “Marília de Dirceu” vieram-me à cabeça, a doçura, a pureza do grande amor  dos dois  personagens  famosos. E o professor completou: “Marília, cujo nome, na verdade, era Maria Dorotéia, não amava Dirceu. Hoje ela seria chamada de “carreirista”, uma jovem quase adolescente, muito ambiciosa, atraída pela fortuna, fidalguia e pelo status de Gonzaga, o elegante português quarentão”. O professor tripudiou sobre minha tristeza. O nosso Dirceu também não a amava tanto assim. Logo que o movimento libertário foi descoberto pelos portugueses, o poeta escafedeu-se para a África, casou-se com mulher rica e analfabeta...
A vida desbotou, ficou mais feia, víboras da dúvida picaram-me o coração, envenenando-o. Com certeza, Romeu e Julieta não morreram jovens, pelo seu amor impossível, Abelardo não foi castrado, Heloísa nunca entrou para o convento. D. Pedro arrancou mesmo leoninamente os corações dos assassinos de sua adorada Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha? Dante amou a vida toda sua Beatriz, vista de relance em uma janela? Não morreu Fedra de amor, pelo seu Hipólito? Orfeu desceu aos infernos e resgatou Eurídice da morte?
Um mar de dúvidas. Tudo ficção. Lições falsas de beleza para que se engula a realidade insulsa, insípida, tediosa. Uma lástima. Um pesadelo.
De repente, a incerteza virou a maldita Hidra de Lerna, com suas cabeças hiantes. E o Cristo? Quantas versões surgirão ainda sobre a figura amada, tão carismática? Alicerçando-se nessa hipótese, escritores modernos têm publicado best-sellers com versões esdrúxulas sobre o chamado Messias.

Infeliz, com a alma cabisbaixa, argumentei com meus botões: Não seremos nós mitos, heróis da ficção de Deus? E quando o Diabo nos desmascarar, com sua sarcástica lucidez? O que sobrará da magnífica Criação? 

terça-feira, 15 de abril de 2014

MINIPOEMAS

MINIPOEMAS
I

Pedi à terra que me trouxesse você
Implorei aos pássaros, mensagens mil
O fogo foi o inimigo mais vil
É proibido amar semideuses.

II
Surjo dos cinzentos da vida
enfeitada / mordida / presa
por estranhas serpentes
que nascem em mim
em mim fazem ninho
e destruição.

III
Prometeu sem seu fígado
seria criatura comum
e não semideus.
por isso ele deve amar sua águia
até mesmo a dura rocha
onde vive seu castigo eterno.

domingo, 6 de abril de 2014

MEUS OITO ANOS

MEUS OITO ANOS
       Sempre me fascinaram as diferenças de opções, gosto e maneiras de ser dos seres humanos. Isso enriquece a vida, dá mais sabor. Por isso, citemos a famosa frase francesa: Vive la différence!
          O título acima, no entanto, não fala dos versos de Casimiro de Abreu, poeta romântico, de um lirismo leve, de adolescente. É um poema famoso, recordando sua infância, “os tempos que não voltam mais”... Um dia desses, assim, não mais que de repente, pus-me a fazer um balanço de quando, em minha vida, fui mais feliz e o porquê. O resultado da pesquisa pessoal e muito íntima, surpreendeu-me.
          Não foram os primeiros anos, na peq uena cidade mineira onde nasci, nem a adolescência e mocidade, em Ribeirão Preto, os quatro anos de Faculdade, em Belo Horizonte, os passeios por todo o Brasil, com meus colegas universitários, um ano morando em Paris e depois, quando fazia inúmeras viagens em toda a Europa. Por que a certeza de que aos oito anos, em um ano apenas, quando vivi em uma fazenda no Morro do Ferro, tudo me encanta até hoje?
          Como para se olhar uma pintura, um quadro, tem-se que fazer um afastamento, para ver as minúcias, os pequenos detalhes, distancio-me dessa idade, focalizando-a. A menina que contemplo não tem nada a ver com a mulher de hoje. Os cabelos lisos, quase loiros, de um castanho muito claro, vão soltos, até a cintura. Usa às vezes calças compridas, ou vestidos folgados, que não atrapalham os movimentos.
          Levanta-se muito cedo, antes de clarear o dia, para ver a mãe trançar massas de rosquinhas, sobre as quais, antes de irem ao forno, ela as pincela com gema de ovo. São para vender no armazém de seu pai, ali perto; ela faz também queijos macios, cheirosos, muito brancos, em formas altas, com o leite das vacas da fazenda. Depois, a menina sai correndo,  para se encontrar com os amigos, uma penca deles, filhos do empregado. Tudo é alegria e surpresas inesperadas, nos passeios pela redondeza, pulando o riacho lá no fundo, correndo, fazendo traquinagens.
          Na hora do almoço, o ritual era sempre o mesmo: enchia o prato com arroz, macarrão, batata e frango e ia trocá-lo com os meninos do empregado. No deles, o arroz e feijão atraiam e era bom comer com eles, depois da negociata. Analiso-me. Nunca mais senti uma amizade tão sincera. Desconhecíamos a falsidade, a maledicência, a intriga. Era um  sentimento sincero e fraterno que nos unia.
          À tarde, não era tão divertido: frequentava-se a escolinha rural, com o professor Sancré, muito velho e distraído.  Éramos umas vinte crianças. Para ir “ao banheiro”, eufemismo da casinha de madeira, ao lado da escola, com um caixão sobre a fossa e um buraco no meio, onde se sentava, havia um ritual. Para obter licença “de ir lá fora”, pedia-se ao professor e virava a folhinha na parede. Três ou quatro de nós tripudiávamos com a senha e ficávamos mais de meia hora, brincando na redondeza.
          Eu ganhara uma eguinha castanha, de crinas aloiradas. À tarde, eu montava-a em pelo, sem arreios e corria pelos pastos, cabelos soltos ao vento, com meus dois cães queridos, Bonifácio e Negrinha, correndo atrás,  barulhentos, latindo de alegria. Em que tempo longínquo, no passado, onde está aquela menina ingênua, que não conhecia perdas, mortes, os alçapões da vida?
                    Entendi então, por que nos meus oito anos eu era intensamente feliz, um sentimento puro, céu sem nuvens:  inocência diante do futuro, do amadurecimento, das obrigações, das decepções e dores–porque  amadurecer dói; e principalmente uma sensação de euforia, da grande liberdade

que fazia minha alma criar asas... 

domingo, 30 de março de 2014

LIVROS & VIDA

LIVROS & VIDA

Os livros têm vida própria e biografia. Muitos escritores já tiveram a experiência: surge um projeto de conto ou romance, ele cresce, vai tomando forma e muitas vezes ele pega as rédeas como se tivesse vida e acaba por ser independente, tendo pouco do plano inicial. A sensação é esta: o escritor é levado pelo texto, torna-se instrumento de suas leis e verossimilhança ficcional.
             Já se comentou que a ficção não é fantasia, mas recriação da realidade. O chamado real é matéria da ficção, alicerce, alimento. Dá-se então um círculo vicioso fatídico: a ficção copia a vida e após, esta realidade influencia a sociedade. Nos “reality shows” tão em moda e de qualidade discutível, o processo se complica. Cria-se uma falsa realidade imitando a vida e os telespectadores identificam-se com a ficção, como se ela fora real.
            Na literatura também há mistérios indevassáveis. Livros rejeitados em concursos literários escusos tornam-se obras famosas. O episódio mais pitoresco deu-se com Sagarana, de Guimarães Rosa. O Mago de Cordisburgo, ao terminar seu livro Sagarana, hoje famosíssimo, entrou para um concurso em cuja Banca estava o nosso Graciliano Ramos. Inacreditavelmente, o premiado foi Luís Jardim, escritor medíocre que o tempo engoliu.
            Há outros acontecimentos sem explicação lúcida ou lógica. Humberto de Campos gozava grande popularidade e pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Lembro-me de que um de seus livros mais lidos, “Sombras que Sofrem” (1934, ano de sua morte), encantou gerações. De repente não se leu mais Humberto de Campos, que foi posto em um injusto e bizarro ostracismo literário. Como? Por quê?
          Outro caso insólito, na literatura brasileira, deu-se com o escritor José Mauro de Vasconcelos (1920 / 1984). Nasceu em Bangu, bairro do Rio, foi um dos escritores mais lidos no exterior. Com uma biografia insólita, cheia de peripécias inacreditáveis, ganhou fama como escritor, principalmente com Rosinha, Minha Canoa, livro utilizado em curso de Português, na Sorbonne, em Paris. Meu de Laranja Lima (1968) foi adaptado pela antiga Tupi e pela Globo, como novela televisiva e também levado ao cinema. De um estilo simples e sensível, foi lido em muitas línguas, com enorme sucesso. Por que não se lê mais José Mauro de Vasconcelos?
          Outros casos estranhos continuam. O romance João Ternura, de Aníbal Machado foi considerado excelente pela crítica literária da época. Como diz Luiza Vilma Pires Vale, é a história de um homem e o Rio de Janeiro: o homem perdido da / na Cidade. Com uma trama sempre atual, ela mostra a falta de adaptação da personagem central e o modo de vida da grande metrópole. O protagonista não consegue integrar-se no cotidiano da cidade, sente-se um estrangeiro. Há uma forte influência sartreana na obra. O autor levou duas décadas escrevendo o livro, que ficou no limbo muitos anos. Após, obteve sucesso. Mas a pergunta se repete: Quem lê João Ternura hoje?

          Assim, no mundo literário esses mistérios continuarão para sempre como enigmas inextricáveis.  Há outros que se pode até tentar uma explicação plausível. Como os seres humanos, os livros têm suas lutas, com ascensões e quedas. Entende-se, por exemplo, que o romance Ulysses, de James Joyce, ou Nove, Novena, de Osman Lins, tenham hoje poucos leitores. É devido, em parte, por sua extrema complexidade. Ora, reina no século XXI a banalização, homens e mulheres são reféns de uma preguiça mental arraigada, é a era do superficial, do fácil, do atraente, do óbvio, do rápido, do fast-food literário. 

domingo, 23 de março de 2014

VISITA INESPERADA

 VISITA INESPERADA

          O homem procura a felicidade com obsessão. Talvez ela não exista, ou esse pobre macaco glabro erre nas opções. Vicente de Carvalho eternizou a problemática, quando diz: “Essa felicidade que supomos, / árvore milagrosa a que sonhamos / Toda arreada de dourados pomos, / Existe, sim, mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos.”
          Muitos incautos pensam em encontrá-la em coisas materiais, como dinheiro, bens, ou na fama, no poder. Tudo é efêmero e traz, no final, o ressaibo do tédio e da desilusão. Não é apenas na sede de poder, mas em todas as ambições, é preciso lembrar sempre que, acima de cada cabeça obcecada há, perigosamente, uma Espada de Dâmocles.
          Ora, a idade madura, às vezes vista como castigo, traz alguns privilégios e um deles é reconhecer os valores essenciais, ter uma espécie de feeling para o que realmente é importante na vida. Uma boa opção talvez, sem exageros, é ser presentista, viver à exaustão, o momento presente. Admirar a filosofia de Horácio, o Carpe Diem, ver com acuidade, certos frutos doces e magníficos, como colheita de uma seara lúcida e aureolada de sonhos.
          Sabe-se que a experiência é ao portador, porém diante de tanto ceticismo, ouso relatar uma descoberta que talvez possa embelezar um pouco a complexa vida moderna.
          Troquei uma vida de quarenta e sete anos, em apartamento, sempre por segurança e praticidade e vim para a minha Pasárgada: casa ampla, com clima mais ameno, muito verde e logo se formará um jardim ainda em projeto. Chego a ver as buganvílias de cores variadas enfeitando as cercas frescas de murta; virão as gérberas, as prímulas, rosas e árvores ornamentais como os ipês, um flamboyant, as quaresmeiras de roxo vivo, acácias e um gracioso chorão. Ao redor da piscina muito azul, os coqueiros anões, com sua alegria tropical. A horta de tenras folhas, o futuro pomar pejado de frutos doces.
          Os animais completam a beleza harmônica e transformam o local em um santuário ecológico: duas cadelas labradoras, cor de chocolate, de lindos olhos verdes, curiós, cujos cantos são puro violino, com suas femeazinhas à espera de gala, os beija-flores visitam o pequeno bebedouro de água açucarada, borboletas várias, de cetim, enfeitam a tarde. Em uma árvore vizinha, quatro maritacas jovens, ruidosas e um sabiá. Bem-te-vis coloridos saltitam e se aproximam, em meio a uma enorme variedade de pássaros. Gaviões voam, dando um toque de mistério e de perigo, enquanto soturnas corujas, estátuas imóveis, filosofam ao anoitecer.  A beleza e a paz alimentam a alma.
          Há pouco tempo, uma visita pitoresca, muito inesperada: um mico estrela tem vindo comer a banana que deixamos para ele. Domingo de manhã, na sua galanteza, fez-nos uma visita. O irrequieto amiguinho deve morar nas matas cerradas, cor de jade, que bordejam o rio, aqui perto.

          Namoramo-nos de longe, eu encantada, ele arisco e cuidadoso. Pela hora inteira que estivemos juntos, tão próximos, chego a crer que ele voltará. Deixei-lhe, então, junto às frutas, um recado: “Volte sempre. A casa é sua”. 

domingo, 16 de março de 2014

PROPAGANDA & CRIATIVIDADE

PROPAGANDA & CRIATIVIDADE

          Propaganda sempre me fascinou, desde que ela seja perspicaz e inteligente. Tive problemas com ela, no passado.
          A primeira vez, eu dava aulas no Cursinho. Entrei na Sala dos Professores, criticando uma Propaganda de extremo mau gosto sobre oferta de móveis. Um professor abespinhou-se, atacando-me: “Vejo que você não entende nada de propaganda!” E continuou explicando que os móveis oferecidos eram para pessoas de baixa renda.  Eu me rendi e silenciei. Ele devia ter razão. Era o autor da Propaganda...
          Outra vez, chamei a atenção dos alunos para uma Propaganda, com verdadeiro abuso de símbolos sexuais, ao anunciar lençóis. Aparecia um casal fazendo sexo; depois a heroína descia do quarto, para um lanche. Pegava um ovo, quebrava a parte superior e nela surgia a figura de um hímen rompido. Logo em seguida, ela molhava várias vezes, no orifício do ovo, uma torrada de forma evidentemente fálica... Os alunos me criticaram. Eu via coisas demais, inventava...
          Já briguei por causa de uma Propaganda imbecil, que mostrava pessoas idosas fazendo travessuras, como crianças, ou com começo de Alzheimer. Mas sejamos positivos. Há Propagandas inteligentes e criativas, verdadeiras pequenas obras-primas. Quando morei em Paris, antes dos filmes exibiam, durante duas horas, propagandas muito boas, atraentes, em uma sessão que se chamava  Séance,  que atraia  grande público.
Vamos agora para o Facebook, um grande sucesso.  Postam, às vezes, versos, poemas, textos, brincadeiras, com ironia. É um meio de comunicação leve, ameno. Raramente surgem matérias sérias. O espaço é um oásis no deserto da vida moderna, tão conturbada. Se assistimos aos jornais televisivos (é preciso estar informado, dizem...) eles  começam  sempre com  desastres, mortes, violência, prisões. É raro dar uma notícia boa, positiva. Muita gente começa a fugir deles.
Voltemos ao  Facebook. Esses dias, alguém postou algo muito inteligente, fazendo a paráfrase da famosa frase de  Descartes: “Penso, logo existo”. O cartaz dizia: “NÃO PENSO. NÃO EXISTO. SÓ ASSISTO”. Genial! Haverá uma crítica mais sintética, sábia e ferina contra a alienação, alimentada pela  Televisão,  com  seus  programas  escusos? A assertiva final, com o verbo assistir, após duas negativas, denuncia uma realidade terrível e perigosa, expressando em duas  palavras, mencionando  um  grande  problema universal, efeito  “dangerosíssimo”, como diria  Drummond, de  um problema  atual:  a  má  qualidade  da  Programação da TV,  em  geral,  quase na  sua  totalidade,  é  a  causa  maior (e globalizada!)  de  um hábito  que  robotiza  o homem, coisifica-o,  o  imbeciliza e  aliena.
É  uma  denúncia séria, verdadeira  e  preocupante.  Infelizmente¸ a profilaxia é utópica.  Só há dois antídotos para essa chaga moderna: uma Programação de qualidade e educar os telespectadores para que tenham mais bom gosto e abominem esse  fast  food  diário, que os  alimenta.
Sabe-se que mudanças estruturais e profundas necessitam de homens  corajosos  e  bem  intencionados, não  de quem  só  se  preocupa  com  o Ibope  de  uma  plateia  ingênua,  acomodada,  pouco exigente e,  aos  poucos,  reificada. O telespectador acaba virando um autômato, coisa, transformando-se em um mero e pálido  simulacro  de  um  ser  humano.
  Há


domingo, 23 de fevereiro de 2014

CILADAS DO AMOR

CILADAS DO AMOR

O Amor é um sentimento complexo. Só os seres humanos o conhecem, mas ele sempre surpreende. Cantado em poemas e canções, desde tempos imemoriais, ele continua fascinando.
A Lírica de Camões tem poemas sobre o  Amor, famosos há  séculos  e  sempre  atuais. Ele diz sobre os  paradoxos desse  sentimento que  atrai  e  amedronta: “Tanto do  meu estado me  acho incerto, / Que em vivo ardor tremendo estou de  frio, / Sem causa  justamente choro e rio, / O mundo todo abarco e nada aperto.” Os Amantes têm tudo e nada, experimentam glória e perdição. Eu mesma, em um poema,  com o título Antissentimento, tento deslindar esse  sentimento misterioso,  onde, paradoxalmente, afirmo  que quem   conhece o Amor acaba  por  experimentar céus e infernos, perda  da paz, felicidade e medo, alegrias e dúvidas, insegurança. Os Amantes são seres privilegiados, porém o prêmio que  devera  ser  alegria, tem  alto preço: “ Só nostalgia, amargura, a dor dos assinalados em desgraça./ Dos mortos na dúvida,/
Sufocamento sem fim / Porque o epílogo fatal, / Prova sempre, efêmero e  falaz, / Que o amante sorve  o veneno / Todavia não morre do mal”.
          Por que introdução tão longa? Afinal, como diz o título, eu só queria narrar duas histórias verídicas sobre o tema e em ambas reina o inesperado, uma trama sem autor, intrigante. Vamos aos fatos.
          Nosso herói se casara com uma moça inteligente, séria, sensata, que lhe deu uma bela filha. Mas algo o incomodava: a esposa não era muito bonita. Mas ele também não.  Depois de alguns anos, começaram a se desentender, veio o divórcio.
          Aborrecido, nosso herói prometeu a si mesmo: quando se casasse de novo, seria com uma mulher bela, linda. Queria acordar feliz e realizado, olhar ao lado e ver uma deusa de beleza, uma perfeição. Afinal ele conseguiu encontrar sua eleita. Ela era uma obra-prima da Natureza.
          Ora, felicidade tem seu preço. E às vezes muito alto... A nova esposa gastava muito, em tolices, roupas, sapatos, perfumes importados, joias. Um poço sem fim. Ele suportava tudo, encantado com a mulher divinal, belíssima, que dormia com ele, todas as noites.
          Ela exagerou. Começou a gastar com sua família, que era numerosa: dentista para os irmãos, Colégio para as irmãs, planos de saúde para o pai, a mãe e a récua  toda. Ele se desesperou, vendo todo seu dinheiro escorrer-lhe pelos dedos. Um dia ela o abandonou, deixando uma dívida  imensa. Dez anos depois, nossa pobre vítima arcava ainda com inúmeras prestações, um pesadelo. Nunca mais ele se casou e não entendeu nunca a cilada do destino, o preço da concretização de seu sonho.
          O segundo caso tem também uma vítima, uma cilada do Amor. A prima miúda e insossa desfilava pela cidadezinha, apresentando o belo espanhol que viera da Galícia, para se casar com ela. Mostrava o moço lindo, magro, alto, de bastos cabelos meio ondulados e uns inacreditáveis olhos esverdeados, que às vezes eram meio cinzentos. Apresentou-o a todas as moças, menos para  Lena. Também, ele não iria se interessar por aquela moça alta, pestanuda, de sobrancelhas cerradas, peitos volumosos e quadris grandes.
          Cidade pequena é uma ilha, onde todos se encontram. A prima apresentou Lena ao jovem espanhol. Olharam-se e o mistério aconteceu. Ele apanhou  uma  rosa vermelha  no jardim ao lado, ofereceu a Lena,  dizendo: Uma rosa à mais linda moça da Cidade. Ela corou e aceitou a prenda. Três meses depois casaram-se na pequena igreja da cidade mineira.