domingo, 29 de dezembro de 2013

DIÁLOGOS IMPOSSÍVEIS


DIÁLOGOS IMPOSSÍVEIS
        
         O diálogo, filho da palavra, ambos armas poderosas, perigo real de dois gumes, seriam presentes de Natal muito adequados, se não fossem tão complexos.
         Em um consultório médico vi um pôster que jamais me saiu da memória. Uma floresta luxuriante, de cuja sombra emanavam uma frescura vívida e grande harmonia, entre as  pedras e cascatas . Em inglês, os dizeres: Como queres que eu te escute, se não entendes o meu silêncio?
         A comunicação do Homem com a Natureza e com o próprio Homem sempre foi difícil. Nesse Natal, no mundo da ficção, onde tudo é possível, eis diálogos, ricos presentes.
As florestas diriam aos homens: – Você, pretenso Senhor do Universo, por que se transformou em predador maior? Não vê que está cavando a sua própria sepultura?
Ao que ele responde: _Sim, mas como sofrear o desejo de poder que me abrasa, a sede de conquista, a ambição que trago na essência?  A culpa é minha ou do meu Criador? O Homem, no entanto, se esqueceu, com certeza, da verdade insofismável: a Natureza não se defende, ela se vinga.
Ora, os homens das cavernas já eram amantes da guerra, com a sanha no próprio plasma. Machado de Assis, em dois de seus romances, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”, denuncia os homens como seres inaptos para a paz. Exemplifica, ironicamente, com a filosofia do Humanitismo, criando uma parábola sobre duas tribos que viviam perto de um rio, onde havia uma plantação de batatas, suficiente para alimentar uma só tribo. Assim, a guerra, no caso, era sinônimo de vida: Ao vencedor, as batatas! A paz traria a morte.
Como a História da humanidade pouco muda, poder-se-ia transpor a parábola para os dias atuais, quando  alguns países vivem um verdadeiro holocausto, onde ninguém se entende e muitos morrem. Desejar um diálogo e consenso parece algo utópico. As guerras sempre foram uma parafernália de causas contraditórias e efeitos nefandos.
Nesse Natal, perguntei a Deus, a mais solitária das criaturas, porque não tem com quem dialogar:
Que é mais trágico / do que o desacerto do ritmo / entre a
a alma e o corpo? / Que fazer do espírito, / que busca
infinitos, / enquanto a carne palpita animal? / Que fazer
dos  nervos, / correntes-cadeias que aprisionam a carne /
e a alma, que ri, superior, / em ironias metafísicas? / Que
fazer de Deus, / que deu ao homem de barro / uma alma
de estrelas? / Por que PARA SEMPRE é POR POUCO
TEMPO / e NUNCA MAIS quer dizer AMANHÃ?
É um mistério. Os homens não se entendem. A impressão que se tem é que não nasceram para a paz, embora digam que odeiam a guerra. Este perigoso modo de ser acarreta consequências funestas, faz dele alguém sem futuro. Filmes clássicos falam de uma época longínqua, apocalíptica, árida e mortal. Mas nada os muda, nada os convence de outra maneira de serem mais benéficos e pacíficos.
Realmente o homem sempre quis ser o   Senhor do Universo, mas se transforma em  seu carrasco. Ludibriado com sua pretensa racionalidade, ele caminha para um abismo que ele mesmo tem cavado, desde tempos imemoriais.
O que pedir nesse final de ano? Talvez falar com Deus para que consigamos decodificar este diálogo impossível, tornando-nos seres mais dignos da Criação.


domingo, 22 de dezembro de 2013

CALENDÁRIO DA NATUREZA

CALENDÁRIO DA NATUREZA
         Comentava eu com alguém muito querido, que me fascinava o fato de haver uma espécie de agenda na Natureza. Árvores, flores, frutos, tudo tem seu tempo de nascer, crescer e morrer.  Assim, os ipês florescem na seca e em junho e julho dão espetáculo de beleza; os brancos, com sua efêmera brancura lírica, os amarelos e roxos (ou rosa?)  são belíssimos. Há curiosidades interessantes e não me atrai pesquisar se verdadeiras ou não. Por exemplo: as cores dos ipês dependem da luz solar mais ou menos forte. No final do ano os flamboyants incendeiam as frondosas árvores e os cachos dourados enfeitam os  pés de acácia.
         Ora, morei quarenta anos em um apartamento com a frente para a Praça XV.  Da janela de meu quarto avistavam-se umas belas árvores copadas, que o povo chamava de Sete Copas.  Soube que elas eram originárias da Europa. Verdade ou não, em setembro e outubro, quando aqui é primavera e lá, outono, todas as folhas dessas intrigantes árvores      secavam e caiam, como  acontecia com o outono europeu. Nunca tive uma explicação científica ou botânica, mas o fenômeno lembrava-me a canção famosa Les Feuilles Mortes, de Joseph Kosma.
           E há as idiossincrasias (manias botânicas?) das flores. Os amores-perfeitos só florescem em locais de clima frio. As misteriosas papoulas preferem terras áridas; há a estação das rosas, o tempo dos cravos, das gloxínias, dos lírios, das prímulas, das azaleias  e centenas de flores de cores, perfumes e nomes poéticos.  Recentemente vi em uma matéria televisiva, cientistas europeus que manipulam geneticamente as flores, misturando suas cores, seus perfumes. É o progresso sim, mas parece-me uma metáfora do homem violentando a Natureza...Foi dito que essas flores híbridas, mescladas, de cores nunca  vistas antes,  vendiam-se mais. Pergunto-me se as pesquisas são feitas para embelezar o mundo, ou são reféns da ambição.
         Acontecem fatos tão bizarros, sempre noticiados pela televisão, pela mídia escrita, que nos deixam abismados e cheios de dúvida, diante da sede tantálica dos meios de comunicação.  Perseguem com fúria as notícias e jamais sabemos o que é verdade ou invenção, criatividade distorcida ou ficção.  Soube certa vez que nos Estados Unidos fizeram uma experiência notável: dois locais fechados, um ao lado do outro, ligados por cabos comunicantes. No primeiro colocaram um médium e no outro, flores frescas, exuberantes. O homem começava a enviar mensagens do cérebro, de onde emanavam pensamentos fortemente negativos, destrutivos. Pouco tempo depois, as flores secavam, morriam... O que pode haver de verdade nisso? O povo já não diz que há pessoas de olhares malignos, que são capazes de secar todo um canteiro de avencas? Popularmente, arruda fecha o corpo contra todos os malefícios...Jardins com hortênsias dão azar e as moças da casa ficam solteironas...
         Uma filha afim, quando nos visita, elegeu a grande Mangueira do nosso Condomínio como lugar propício para fazer meditação.  Ao pôr do sol ela passa horas meditando, sob a majestosa  árvore que, de acordo com a tradição, é sagrada e protege. A Grande Mangueira de Magda, a mística.
         Sei que tudo isto pode ser inverdades ou superstições. Todavia, elas me encantam. Minha defesa é parafrasear a conhecidíssima assertiva do gênio inglês, Shakespeare: Há  mais mistérios entre o céu e a terra, que sonha a nossa vã filosofia. Ou podemos até duvidar, citando a famosa frase de Miguel Cervantes Saavedra: Yo non creo en  brujas, pero que las hay, las hay.


PALAVRAS AO DEUS MENINO

PALAVRAS AO DEUS MENINO

            Ah, Jesus Cristinho, dia 25 é teu aniversário. Vê como as ruas estão aparentemente alegres, muito coloridas. Nas casas do alto da cidade há arranjos de luzes nos jardins suntuosos. Dentro das mansões, grande é o movimento, compras foram feitas, sofisticados menus são preparados. Em nome da união das famílias comer-se-á, beber-se-á em demasia, brinquedos caríssimos serão dados a crianças fortes, bem fornidas, enfastiadas de tantas guloseimas. Orações automáticas serão feitas às pressas, se feitas, porque o comer e o beber atiçam a vontade de todos. É uma festa gastronômica, de glutões, há exageros e desperdícios. Alimenta-se o corpo e deixa-se morrer à míngua o espírito.
            Ah, meu Cristinho, como o homem distorce os teus desejos. Nasceste pobre, de família humilde, cobriste o teu corpo com apenas o necessário, calçaste teus pés com sandálias. Quando querias reunir teus Apóstolos, teus amigos, tu o fazias com simplicidade, sem alarde nem abastança. Deste um dia uma grande festa, a mais bela, onde multiplicaste pães e peixes para a multidão faminta, mas foi em campo aberto, junto ao povo, servindo o alimento essencial. Fora isto, banqueteavas os grandes grupos, os aglomerados, com sabedoria, com parábolas, servindo a Palavra como alimento maior.
               Dizem que não sorrias nunca, estavas sempre atento e lúcido, porque sabias (e como sabias!), que a vida é luta, é tristeza, é trabalho. Eras doce e manso, compreensivo e antipreconceituoso, aceitavas os pecadores, dando-lhes o perdão, entendendo suas faltas. E que fazem os homens, Cristozinho bom e amável, depois de tantas lições recebidas? São irascíveis, guerreiam, odeiam, julgam, condenam, discriminam, separam. Há vencedores e vencidos, opressores e oprimidos, ricos e pobres.
            Ah, meu querido Menino, por que te digo tudo isto, no teu aniversário, como se tu já não soubesses? Eu também erro tanto, troco meus passos, cometo pecados e deveria hoje falar só de coisas boas. Rezar para ti, oferecer-te, não ouro, incenso ou mirra, mas flores, pássaros, borboletas e crianças. Queria te dar uma boa nova, dizendo-te: Vê, os homens criaram juízo, ouviram seus corações, refizeram seus caminhos, aprenderam a amar. Já não há mais guerra, nem ódio, nem fome, nem violência. Todas as crianças são amadas, bem alimentadas e  tratam-se os animais com respeito e carinho. Já não se violenta mais a Natureza e o homem cuida do seu espírito e não só do corpo, amealha riquezas de bondade, de ternura, de altruísmo, erradicou do coração as ervas daninhas da hipocrisia, da brutalidade, da ambição, do orgulho e da injustiça. Coro de vergonha, porque é teu aniversário e nada do que queres posso te dar. Mesmo assim ouso ainda fazer-te um pedido: não fiques zangado, não te entristeças, não penses em castigar-nos. Perdoa-nos mais uma vez.
            E um dia teremos, finalmente, em outro aniversário teu, um verdadeiro Natal.


domingo, 8 de dezembro de 2013

A ÚLTIMA COLHEITA

A ÚLTIMA COLHEITA
                
                 Sempre acontecem mortes inesperadas e prematuras, de gente famosa. Embora isso aconteça muito, o fato nos leva a fazer algumas reflexões. A imprensa escrita já veiculou questionamentos insólitos a pessoas importantes, sobre “o que você gostaria ainda de fazer, antes de morrer”. As respostas foram variadas, algumas inteligentes, outras óbvias. Na realidade, ninguém está pronto para a última viagem. E mais: o que é estar pronto?
                 O ser humano, quando teme ou não entende um mistério, brinca com ele. A inexorabilidade da morte provoca isso. Muitas vezes não se pensa muito nesse incômodo encontro marcado, para o qual não há justificativa da ausência no dia, data ou local, não se pode aventar motivos circunstanciais a fim de não receber  a indesejável visita. Muito pertinente o epíteto (ou eufemismo?) dado à morte, por Manuel Bandeira, no poema “Consoada”: A Indesejada das Gentes”. Com sua poesia objetiva, podada, enxuta, ele parece exigir, aparentemente,  pouco do homem, para o último desembarque.       
                 Voltemos, no entanto, à questão proposta na mídia. Um psiquiatra famoso relatou algo interessante: Muitas vezes, antes de partir, o doente terminal experimenta momentos de lucidez. À pergunta: “O que você desejaria ter feito, ou tido na vida?”.  Noventa por cento (grande porcentagem) respondiam: Queriam ter vivido ou viver ainda um grande amor. Isso faria tudo valer a pena. Parece estranho, mas o momento culminante da partida exige acuidade aguda para os valores, muitas vezes invertidos. Querer fortuna no final? A Barca de Caronte, no rio Aqueronte, não cobra passagem e Cérbero, guardião dos Infernos (ou São Pedro...) não é corruptível. Na verdade, no final do espetáculo da vida, (pelo menos nesse momento), o homem deixa de ser tolo, iludível, esquece-se do poder, não quer ser Midas, volta para o essencial, para algo sem peso, indelével, intangível, valioso e eterno, que pode ser moeda forte e oficial no outro lado. Foi bom, amou. Acrescentou algo à Criação. Isso parece ser um passaporte seguro.
                   Seria cauteloso fazer certas exigências. Pedir uma saída rápida, preferencialmente indolor, inesperada como os grandes presentes e surpresas boas. Ver mais uma vez alguns amigos queridos, que se desgarraram na nossa história, perderam-se e hoje parecem personagens de ficção. E um desejo maior, mais valioso, mais belo. Experimentar o gosto agridoce de uma paixão. É belo apaixonar-se.  De repente, a figura do ser amado, como regente exímio, realiza o grande concerto harmonioso da Sinfônica de nossa vida. Sentimo-nos deuses, privilegiados, ganhamos asas, a cosmovisão se aguça, somos capazes de ver além. Há belezas até nos terremotos que a alma experimenta, alegria e tristeza, felicidade e tormento alternam-se sem nenhuma lógica. As lágrimas fáceis brotam, misturando-se ao riso, a lucidez desaparece e a alma alimenta-se apenas da presença ( ou até da ausência ) do Amado. Sentimo-nos felizes e desgraçados, amargos e eleitos. A morte? O que é a morte, depois de que se experimentou o paraíso? O prêmio maior, quando já se teve uma grande paixão, é que se pode levar conosco, para o outro lado, todas as sensações vividas, cada momento único, palavras trocadas, carinhos, lembranças preciosas, intransferíveis, tesouro imensurável, totalmente ao portador.

                   Como se vê, a enquete, que parece aleatória, é muito interessante. Um bom momento para se fazer balanço: como anda sua escala de valores? Será preciso chegar o momento final, o Grande Encontro, para que pense em algo tão importante? O que você pretende realizar, antes da colheita derradeira?

domingo, 1 de dezembro de 2013

APÓLOGOS

APÓLOGOS

Em um mundo materialista, tão violento, dirá o leitor: Para que escrever sobre delicadezas, mensagens tão líricas? Não sei. Talvez para experimentar um antídoto, por um curto tempo da leitura. Que me perdoem os realistas, gente de pé no chão. Seguem abaixo duas pequenas estórias.

I

         A Rosa reclamou para o Cravo. Daquele jeito não era possível: ele ficava com seu cheiro forte, ao seu lado, mesclando olores adocicados ao seu perfume etéreo. E ele, por amor, humilhou-se, tentando ser quase inodoro. A Rosa não ficou contente. O Cravo, com sua postura ereta e elegante, como um caniço verde vivo, aveludado e macio, ficou esconso atrás das hortênsias pomposas.  Mas a tirana não achou suficiente. Como a Natureza pôde lhe dar espinhos, a ela rainha? Por que as incômodas abelhas, as eventuais lagartas? E o tempo, o inimigo terrível! Sua decantada beleza durava tão pouco! Devia ser culpa do Cravo, que conseguia sobreviver      dias, fresco e inalterável... E ele dizia amá-la! Isto era amor?! Egoísta, malévolo, vil! E o Cravo pediu à Deusa Flora que concedesse seus dias de vida à Rosa. Ela era a mais bela, merecedora, eterna. Seu pedido foi aceito, mas ele teria sofrimentos atrozes, torturas da raiz às pétalas... Dobrar-se-ia com facilidade, com as brisas da manhã, tingir-se-iam de sangue suas pétalas. Seria relegado ao segundo plano das flores, jamais participando de festas ou dado em buquês, como oferendas de amor __ um João ninguém, um simples arbusto, um dianthus caryiophylus. Tudo aceitou pela Rosa, cabisbaixo, humilde, amoroso. Mas nem assim a Rosa ficou satisfeita. Pouco tempo depois, anunciou seu casamento com um espalhafatoso Crisântemo Amarelo, que, mesmo sem ser muito nobre, era pomposo, rico, exuberante como um sol.
         Só havia algo mais trágico que a sina infeliz do Cravo amoroso: ele jamais percebera uma tímida Violeta, sempre a seu lado, miúda, mas de perfume inigualável e que seria capaz de morrer por ele.
         O mundo das flores é semelhante ao dos seres humanos. Os grandes amores são os jamais realizados e os olhos do amor são cegos e insensíveis, só vendo o acessório e desprezando o essencial. E a pior evidência: não se tem a quem atribuir a culpa por estas insólitas verdades, que se repetem eternamente.

II
        
         Ele passeava cabisbaixo, infeliz com seu frustrado amor. A vida é injusta e amarga. Ele a amara tanto, a vida toda e agora ela partia para novos braços? Ele nem reparava nas florinhas que pisava, nos lírios que o olhavam com meiguice, nas violetas que perfumavam o ar. Será que ele não sabia que nada é eterno? Cronos não perdoa.
         De repente parou. Estava em um jardim de rosas. Olhou para elas, lindas, perfeitas. Notou então que faltava algo, que sempre o encantara. Perguntou para uma delas, branca  e pura:
Onde está aquele casal de borboletas que sempre voejava por aqui, dando vida ao jardim? Ela, sábia e misteriosa, respondeu: Elas se amaram durante uma rosa vermelha...


        



                                         

domingo, 24 de novembro de 2013

RELEITURAS BÍBLICAS

RELEITURAS BÍBLICAS


A Bíblia é literatura de alta qualidade. Assim, todos os seus textos podem e devem ser lidos conotativamente, isto é, dentro de um contexto literário, que admite leituras diversas.  Pode-se até fazer releituras em um enfoque moderno, sem correr o risco de heresia, mas sim como um exercício intelectual. Deus deve gostar disso.

I


Era no Paraíso. Eva, formosa, com uma guirlanda de flores perfumadas, envolvendo seu corpo edênico, diz a Adão: Tome jeito, criatura! Você já é bem grandinho, para obedecer ao Pai. Não comer do fruto proibido, por quê? Cismado, Adão olha para a companheira que lhe oferece uma apetitosa maçã rubra. O que ela quer? Está sempre me colocando em uma fria... Ela não é confiável. Titubeou, tergiversou, não tinha vontade, a fruta não estava madura... E custava obedecer? Por que infringir a lei? Que diabo!
         Não chegaram a um acordo. Veio o divórcio. Só bem mais tarde, influenciados pelos Anjos, reconsideraram, senão comprometeria o vir- a- ser da humanidade.

II
        
Passagem irritante, boçal. Ninguém alertou que Sansão e Dalila tinham QIs de ameba, eram quase débeis mentais?
         Amantes. Dalila, traiçoeira e mau caráter, quer acabar com o Schwarzenegger bíblico. Como descobrir a fonte de sua força, para destruí-lo? Pergunta-lhe, cheia de dengo: – Sansão, de onde vem sua força? Ele, matreiro e desconfiado. A reputação de Dalila é conhecida. Não é flor que se cheire. Falsa, traiçoeira como cobra. Sabendo disso, nosso idiota musculoso tenta enganá-la. Seria necessário amarrá-lo com cordas de arco frescas, que ainda não tivessem sido postas a secar.
         Os filisteus caem sobre ele, nosso herói os arrebenta. A mulher viperina volta a perguntar. O imbecil mente de novo, usando a mesma falseta, mais duas vezes e o Blockbuster do Livro dos Juízes, sai ileso.  Não é que a víbora volta a atacar e o mentecapto confessa a verdade? A força está em seus cabelos virgens de navalha.  A messalina, Judas de saia (ou de véus?) adormece o parvo, recebe dinheiro pela sua iniquidade e transfere o encargo a um homem, para executar a tarefa, cortar as sete tranças da cabeleira de Sansão. Foi o primeiro caso de terceirização da História. Nada é novo na face da terra.

III

         Novo Testamento. Perguntaram a Jesus o que era a verdade. Ele olhou para o povão ao redor, agachou-se e pôs-se a rabiscar o chão. Os exegetas aventam mil hipóteses. Que significava o gesto? Por que o Mestre, onisciente, que tudo sabe, não respondeu? Eu, hein! Sou lá besta de meter a mão em cumbuca? Ele conhecia a cabeça e o coração dos homens...
IV
        
E há a passagem da primeira Multiplicação dos Pães. Com apenas cinco pães e dois peixes, Jesus alimentou uma grande multidão de mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças (olhe o preconceito!) e ainda sobraram doze cestos cheios de pedaços. Dizem que o Cristo teve problemas com o fisco e com o imposto de renda. Como explicar tal despesa diante de tão pouca receita? Mas essa é outra história.







domingo, 17 de novembro de 2013

PREMONIÇÕES

PREMONIÇÕES                            
                     Uma forte emoção na infância ou na adolescência pode influenciar ou tornar-se realidade, na idade madura? O que move essa força, como entender o mistério?
                     Desde que aprendi a ler, não parei mais. Era como se um dínamo me movesse. Dentre as dezenas de livros infantis que li, quando menina ainda, a história da Sereiazinha, de Hans Christian Andersen comoveu-me de tal maneira, que parecia um aviso.
                     A pequena Sereia apaixonou-se por um Príncipe que ela salvou da morte, em um naufrágio. A criaturinha só poderia ser feliz se, com uma poção mágica, trocasse a cauda pelas pernas, tornando-se humana; mas assim sofreria o castigo de ter dores atrozes, como se andasse sobre facas. Tudo fez para viver um grande amor.
                     Aos dez anos e na adolescência reli muitas vezes a linda estória e chorava rios de lágrimas. Por que esta estória me comovia mais que outras? Simbolicamente, era uma premonição, um aviso?
                     Talvez haja uma explicação mais científica para, bem mais tarde, eu sofrer tanto dos pés.         Toda minha família, do lado espanhol, experimenta tal desgraça. Aventou-se até a hipótese de ser uma síndrome comum entre os da raça espanhola, com todo tipo de mazela: má formação dos pés, calos, o pisar meio torto e defeituoso, piorando com a vinda dos anos, uma lástima.
                     Um dia alguém me disse algo bizarro, mas interessante, sobre o problema: pessoas do signo de Sagitário sofrem das patas... Sempre tento confirmar tal teoria. Ela parece verdadeira.
                     Voltemos à Sereiazinha de Andersen. Ela, no final, foi feliz, sacrificou-se, mas experimentava dores terríveis nos pés e nas pernas. Tive este destino, não por conta do amor, mas de Cronos, carrasco inexorável. Mas já na minha juventude, quando cursava o chamado Clássico, no Otoniel Mota, quiseram aproveitar, em vão, minha altura: logo eu saia da quadra, de padiola, com tendões arrebentados. Aliás, a Educaçáo Física, na escola, era meu pesadelo.
                     Assim foi a vida toda. Detesto todo tipo de esporte. Certa vez, o médico pediu que eu fizesse hidroginástica. Tentei. Era uma turma de velhotas. Eu entrava na piscina e enquanto o Instrutor ensinava vários movimentos, eu boiava deliciosamente, quieta, com meus pensamentos. A experiência durou pouco. Havia uma mulher, ainda mais velha que eu; ela era uma delatora e gritava: Olhem, ela não está fazendo os exercícios! Ralhei com ela: Não tem vergonha de ser um alcaguete? Aborreceu-me ir ali duas vezes por semana, perder tempo. Saí, porque outra coisa que eu detestava era, na hora da chuveirada, nos banheiros sem porta, ver aquela velharada nua, com as pererecas de fora. Um horror!
                     Retornemos à Sereiazinha. Por que eu sofria tanto com a história?  Seria premonição? Mistério. Pela vida toda tenho tido experiências estranhas: sonhos, pesadelos, avisos, como se eu fosse uma Sibila. Disseram-me que eu tinha mediunidade e que devia desenvolvê-la. Nada fiz. A vida tem mistérios demais. Para que mexer com o desconhecido de outro plano?
                     Precavida ou covarde? Nem questiono a resposta. Sou cautelosa e prática. Melhor cuidar dos assuntos aqui de baixo.

                     

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

CARTA ABERTA AOS MORTOS

CARTA ABERTA AOS MORTOS

            Dia triste o dois de novembro. Nada afugenta a melancolia. Dizem que há povos que, nessa data, fazem festa, tocam instrumentos musicais, sentam-se sobre os túmulos, a família toda e ri, conversa alegremente. Tem certa lógica. Os mortos estão mais felizes que nós, os vivos. É bem verdade que as crenças diferem. Os espiritualistas acreditam em uma vida post  mortem. Alguns até estabelecem lugares específicos, como prêmio, castigo ou o limbo, onde se espera o destino eterno. Outros dizem que há possibilidade de muitas voltas, até se resgatar os erros aqui cometidos. Os materialistas são radicais: nada há após a morte, só o vazio, o não-ser.
            Sabem, meus queridos, não tenho posição definida, vacilo às vezes diante de tanta teoria, possibilidades várias, hipóteses. Na verdade, ninguém voltou para ensinar. Mas quero acreditar que existe algo. Seria muito triste, de repente desaparecer, esfumar como uma brisa etérea.
            Eu não gostava de passar pelo grande Cemitério da Saudade. Confesso que virava a face para o outro lado, cismada, temerosa... Isto há muito tempo. Depois veio a vida, perdi tantas pessoas queridas que se foram para seu descanso eterno que, hoje, quando vou lá, sento-me no túmulo da família, envolvo-me no silêncio, sinto-me ungida de paz. Após fazer as orações, relembrar doces episódios, ponho-me a passear pelas alamedas, visitando amigos, alunos, conhecidos, notando que nem a morte consegue igualar os seres humanos. Há túmulos pomposos, outros tímidos na sua simplicidade desnuda. As esculturas escuras guardam com seriedade seus mortos. Pássaros voam, enfeitando o ar, as flores tentam dar lições de efemeridade.
            Invejo os que têm uma fé de carvoeiro, seguros, certos de seus posicionamentos, suas verdades. Eu vacilo, mudo, analiso, tento entender, mas as dúvidas voltam sempre como moscas renitentes. Confesso que leio muito a Bíblia, gosto do Livro Sagrado como literatura, tenho meus Santos de predileção, rezo. Para quem? Para um possível Deus, bondade suprema, que tudo vê, tudo entende e tudo perdoa. Faz bem para a alma acreditar.
            Em seu livro Boitempo, de 1968, Drummond parece obcecado com a morte e o que viria depois. Usa, com amargura, o neologismo “         morituros”, para os seres humanos, aqueles que vão morrer. Muitos poetas famosos abordaram o tema maior, às vezes, liricamente. O que mais atrai, no assunto, é sua dubiedade, o mistério, a dúvida. Sob a mesma temática, é bom lembrar o belo soneto de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, antes da morte, falando com o Cristo, diante do Crucifixo, colocando, inteligentemente, o Filho de Deus, em uma saia justa.
            Minha relação com os meus mortos é doce e acalentadora. Sinto-os sempre perto, sonho, falo com eles, conto-lhes alegrias e tristezas. Sua presença é tão forte, que amaina a amargura da partida. E rezo. Rezo muito e, por que não dizer, peço-lhes, às vezes, que intercedam diante dos Santos ou do Chefe Maior. Afinal, eles já cumpriram sua missão. E por que não podem ser Anjos-da-Guarda?  

            O Dois de Novembro é dia de recolhimento e muita oração. Existe algo melhor para a vida conturbada dos vivos? Hosana aos que já se foram e conhecem hoje todas as respostas.

domingo, 27 de outubro de 2013

MENSAGEM À MINHA MÃE




MENSAGEM À MINHA MÃE

        Minha querida, agora em outubro, mês de seu aniversário, faz um ano e meio que você partiu. O povo diz que o tempo ameniza tudo. É falho. Cronus nos ludibria. Você não está mais aqui, embora eu a sinta viva, próxima.
         Vejo-a ainda, em sua cama, sorridente, convidando-me para assistir a um filme, na televisão, ou na mesa, quando eu a levava para saborear os pães-de-queijo que meu marido fazia. Você sempre teve um ótimo apetite.
         Estranho a casa sem você e ponho-me a filosofar. Sempre fomos mais amigas que mãe e filha. Admirava sua vaidade. Mesmo depois de noventa anos, adorava fazer as unhas, escolher cores de esmalte. Uma vez por mês, vinham pintar seus cabelos, ainda belos, da cor que você sempre apreciou, um loiro cor de trigo.
         E quando viemos de Minas para Ribeirão Preto... Eu era quase uma menina, você tinha pouco mais de trinta anos. Bonita, elegante, meu pai tinha ciúmes. Não gostava que saísse sozinha, mandava-me acompanhá-la, para que os homens não lhe fizessem galanteios. Aí, eles faziam às duas...
         Quando adolescente, comecei com os namoricos; voltava emocionada para casa, a fim de lhe contar as novidades dos amores prematuros, dos flertes. Você ria animada. Éramos cúmplices.
         Fui estudar fora, em Belo Horizonte. Em uma das férias, vim para casa e encontrei-a descuidada, com um cabelo feio, vestidos de decote alto. Nem parecia minha mãe linda. Levei-a ao cabelereiro, fez as unhas, começou a se maquiar, compramos um vestido rosa elegante, decotado, que realçava seu belo colo.
         Meu pai, espanhol bravo, ficou enciumado. Que fez com sua mãe?! Mais tarde me confessou que você estava muito mais bonita...Quando fui para a França, estudar em Paris, durante um ano, recebia cartas suas, todos os dias. Eram enormes, com notícias. Às vezes você ilustrava-as, com desenhos deliciosos.
         Ah, minha mãe querida, amiga dileta, mulher notável! Sempre foi muito religiosa, uma fé de carvoeiro, inabalável. Eu, desde criança, era um mar de dúvidas. Depois de adulta, muitos sacerdotes embaraçavam-se com meus questionamentos. Na escola, azucrinava os pobres professores, perguntando tudo. Vida engraçada. Depois,  professora, eu apreciava alunos questionadores. Como esquecer a meninazinha da quinta série? Levantou a mãozinha e perguntou: Professora, o que é orgasmo?
         A senhora riu muito do que fiz. Fechei a porta da classe e rasguei o verbo, explicando claramente. As crianças ficaram estáticas, quietinhas, na maior atenção... Em casa, contei-lhe o acontecido. Você adorou meu relato. Outra vez, eu convidara os alunos da oitava série, para assistir à série Anos   Dourados. No final, o narrador diz que uma das personagens casara virgem. No dia seguinte, os alunos estavam alvoroçados. Como podia ser? Aparecia a garota tirando o sutiã, abrindo a braguilha do rapaz e depois os dois deitavam-se atrás do sofá...
         Respondi que devia ser uma relação sexual incompleta. Eles exigiram que eu detalhasse. Não dei conta. Chamei a professora de Biologia e ela não titubeou. Pegou o giz, desenhou na lousa e disse: Isto é um pênis. Isto, uma vagina. Aqui é o hímen. Cientificamente, pôs a cartas na mesa. Os alunos ficaram atentos e sérios. Eu estava salva!
         Em casa, você, de mente aberta,  aplaudiu a professora. Ah, mãezinha, a vida é bela. Mesmo você, aparentemente longe, continua sendo minha confidente. Agradeço a Deus por deixá-la ficar comigo para sempre.
        

                           

        
          

         

domingo, 13 de outubro de 2013

RECADO

RECADO
                
                 Tu sabes que eu te respeito muito, querido Leitor. Um pedido teu é uma ordem.  Enfatizo a tua importância e digo-te  que nada teria sentido, quando escrevo, sem ti. Tu és meu co-autor, meu comparsa. Hoje, no entanto, eu te falo como a um irmão, meu sósia, xerox que somos de alma, de fraquezas e de grandezas misturadas, fazedores de sonhos, perdedores de ilusões, mal informados na arte de viver, na qual somos jogados como em uma louca partida, sem mesmo conhecer as regras do jogo, a arbitragem, limites do campo, o tempo disponível e se há possibilidade de prorrogação.
                 Tu me pediste para publicar, de novo, os questionamentos abaixo, para tua reflexão. Obedeço. Já pensei muito sobre tais perguntas. Tu te lembras? Eu começo afirmando:
                    EU sou TU, Tu me és, como diria Clarice Lispector. Se não acreditas, desarma-te, esconde tuas garras e tuas tramas, tira todas tuas máscaras habituais e responde: 
                 _ Nunca te sentiste inseguro, vendo o mundo como um quebra-cabeça sem matriz e de onde roubaram algumas peças?
                 _ Não foste, na adolescência, uma sarça ardente de sonhos, um vulcão de entusiasmo, acreditando que o mundo ali estava para ser conquistado?
                  _ Não te alimentaste do fervor e do fogo com o primeiro amor, para vê-lo logo após te fugir das mãos, como areia em ampulheta maldita?
                  _ Não fremiste com o primeiro beijo, o primeiro carinho, trilha encantada e depois perdida para sempre?
                _ Não foste um Sísifo rolando eterna pedra, construindo castelos de sonhos que eram derrubados pelo tempo?
                _ Nunca andaste sob as estrelas, pelas madrugadas, cego pelas lágrimas que te escorriam pelo rosto?
                 _ Jamais foste traído pela pessoa querida, pelo ente amado, em quem punhas todas as tuas esperanças?
                  _ A vida não te pregou peças, atrapalhando teus planos, frustrando tuas expectativas, fazendo-te de bufão, quando o teu papel era de rei?
                 _ Tu não juraste jamais te apaixonares de novo, quando teu amor morreu, e te viste, de repente, outra vez, inexoravelmente louco de paixão?
                 _ Não prometeste ser forte, heróico, perfeito e sem explicação alguma foste arrastado pelas tuas fraquezas?     
                 _ Não bateste no peito, mil vezes, “mea culpa”, “mea culpa” e de novo teus velhos pecados te possuíram, com fatídica renitência?
                 _Não disseste, apaixonadamente, “Eu te amo para sempre!” e, em um átimo, já havias esquecido a promessa?
                 _ Teus lábios não disseram tantas vezes “sim”, quando teu coração negava, ou tua boca não pareceu mentir o que deveras sentias?
                 _ Não tiveste, como o Cristo, o teu Gólgota?
                 _ Não sentes, ainda hoje, apesar de todo o Absurdo, uma obstinada Esperança?
                 _ Não continuas servo da Morte, todavia um amante pertinaz da Vida?
                  Se nunca experimentaste isto, se jamais conheceste esta rota, se achas que digo loucuras, se és diferente, então vai embora, teu lugar não é aqui. Não és um ser humano.
                  

                 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

DO SOFRIMENTO

DO SOFRIMENTO

         O sofrimento é algo inerente ao ser humano. Uma segunda pele. Criatura imperfeita, ele almeja a perfeição. Mortal, efêmero, ele sonha com a eternidade. Bicho cheio de carências e necessidades. O sonho alimenta a alma inquieta; se não sonha, morre. Quando realiza alguma  das suas mais íntimas aspirações, logo ela é posta em segundo plano e o outro ideal a substitui, porque a alma é insaciável e sequiosa. No deserto dos infortúnios, o sonho é um  presente de grego que nasce com esse macaco glabro e bípede, que talvez  seja um desvio, um acidente de percurso da Criação, por isso é frágil e inseguro. Às vezes surge um oásis de verde alegria. Ela é sempre bela e fugaz. Por isso é que felicidade é o mais abstrato dos substantivos.
         Por que não ser simples e satisfazer-se com necessidades básicas? Companheiro(a), filhos, casa, comida, dinheiro que dê para as premências diárias. Sem isso, impossível viver. Mas por que só isso não basta? De onde vem a ânsia que não se sabe de quê, os desejos mais insólitos e inconfessáveis, a certeza de que nada poderá preencher esse vazio, a busca cega, força maior, desassossego contínuo, paz inalcançável ? Surge o sofrimento , amigo inseparável do homem. Com entendê-lo? Alguém inteligente, talentoso, profissional de renome, olha-me com tristeza e filosofa: “Sou um Ph.d. em sofrimento”. É intrigante. Quais os parâmetros que o fazem afirmar isso? O sofrimento pode ser uma carência metafísica insanável? Reconhecendo-se um ser mortal, imperfeito e efêmero, em essência, a felicidade, a alegria  tornam-se inatingíveis? Dostoievski afirmou que a maior desgraça do homem é a lucidez. Enquanto o homem cria seus mitos e doura a pílula das mazelas diárias, para suportar as incongruências da vida, o absurdo da existência humana, ele pensa que é feliz. Faz ficção, mascara a realidade, vive eufemicamente o decantado amor,  a busca pela rara paixão que os assinalados conseguem sentir, tudo são muletas, drogas para não enlouquecer.
 Os chamados realistas criticam o amor-mistério, da cavalaria, herança de Camões, que depois passa pelo resgate de Hollywood, com Casablanca, e desemboca nas novelas da Globo; é amor- ilusão, de pseudo-adulto, que ficou emocionalmente entre a adolescência e a idade madura, sentimento que não resiste à aspereza da realidade do mundo moderno. São posicionamentos diversos. As relações dos seres humanos são complexas demais para serem rotuladas.
         Ora, o que se pode fazer é tentar compreender a complexidade humana.  Parafraseando o grande poeta Cassiano Ricardo: Desde o momento em que se nasce, já se começa a sofrer. Se a vida é luta, busca incontínua e vã para se conquistarem prêmios efêmeros, como coabitar com a lucidez, ter sempre a tristeza como parceira, não se desesperar? O homem reinventa a vida, com suas verdades, ainda que falsas, pesquisa, lê livros imbecis de autoajuda (só se fossem escritos por Deus, sapiência suprema), enfim, criam uma realidade insuportável e acaba, às vezes até nas suas ficções.

         Enfim, o que é sofrimento? É algo inerente, intrínseco ao homem. Talvez a felicidade, seu antônimo, seja conseguir driblá-lo, durante toda a vida. Não são importantes as armas escolhidas para essa luta terrível. O resultado é o que conta.

domingo, 29 de setembro de 2013

MITO E REALIDADE

MITO E REALIDADE

         A Pedra Filosofal é a fórmula que os alquimistas tentaram descobrir para transmudar metais comuns em ouro. Conta o mito que o homem, obcecado por encontrar tal tesouro, de tudo esqueceu, família, amor, sonhos. Envelheceu na procura. E no final, alquebrado, viu, com surpresa, que seu cinto, as sandálias, tudo virara ouro. Em algum lugar ele tocou na pedra valiosa. Ia tão cheio de ambição que não percebeu. A moral da fábula é evidente. Poder-se-ia ampliar o conceito de Pedra Filosofal, enriquecê-lo. Elas são várias, de diferentes tipos. Há a pedra-amor, a pedra-amizade, a pedra-profissão, a pedra-realização pessoal.          É nesse sentido amplo que os maçons usam uma assertiva interessante: é preciso lapidar a Pedra Filosofal. Pressupõe-se que a lapidação é ato posterior ao conseguir, achar. Na realidade, não deveríamos lapidar todos os nossos dons? Muito será exigido a quem muito foi dado, pregam os Evangelhos. Assim, os dons mais variados são distribuídos aos seres humanos. Não há escala de valores, não há dons mais ou menos importantes. Na verdade, a sabedoria está em burilá-los, desenvolvê-los; ser grande até nas mínimas coisas. Nada exclui, tudo será computado.
         Nas Lojas Maçônicas há uma Sala de Reflexão. Grande ideia! Por que não criar uma nas escolas, nas casas? Cada lar viraria uma Igreja Doméstica, para cultivar a espiritualidade. Talvez seja este um dos antídotos contra a violência. Evidentemente, não é a panaceia para todos os males, apenas uma ajuda.
         Voltemos à Pedra Filosofal. Há termos carregados de sentido. PEDRA é um deles. Semântica riquíssima. Na língua portuguesa (e em outras latinas) há expressões interessantes: pedra de toque _meio de avaliar, aferir, o nó do problema; pedra fundamental _ início; pedra angular _ alicerce; biblicamente também o termo é rico. Há expressões pejorativas: pedra no sapato; pedra de tropeço; pedra de escândalo; com quatro pedras na mão; não deixar pedra sobre pedra; ser de pedra; pôr uma pedra em cima (de um assunto); atirar a primeira pedra (do episódio bíblico); de pedra e cal _muito unido; dormir como uma pedra; tirar leite de pedra; carregar pedras enquanto se descansa (trabalho estafante).
         Não se pode falar no termo, sem citar o mito de Sísifo, símbolo do homem rolando persistentemente sua grande pedra, e ela, quando chega ao cume, volta ao sopé da montanha. Nós e a luta renhida para o aperfeiçoamento como seres humanos; isso só é possível, substituindo sonhos.
         Não é casual (na vida, na História, nada é) que o Cristo elegeu Pedro: “Tu és Pedro, sobre esta pedra edificarei minha Igreja e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela” (Mateus,16,18).
         É, portanto correto afirmar que a linguagem é a pedra angular do relacionamento humano, elemento de união ou arma letal. Cabe a nós usar com sabedoria esta dádiva de Deus, assim como o livre arbítrio. Mal usados, viram um presente de grego...  Cumpre aos homens utilizar bem a Palavra. Isto é um privilégio, talvez a Pedra Filosofal procurada.

sábado, 28 de setembro de 2013

FLUK

FLUK

FLUK era um gnomo como todos os outros, pequeno, insignificante, com três opções a escolher: guardar os tesouros do interior da terra, tomar conta de uma árvore ou ser guardião de uma roseira. Desde que o mundo é mundo, foi assim e ele devia dar-se por satisfeito: há criaturas que têm uma só opção, outras nenhuma. Mas Fluk não obedecia às leis naturais, só gostava do que não devia, não optou por nada quando completou a maioridade. Passava seus dias a ocupar-se de coisa nenhuma: olhar sua cachoeira que despencava lá do alto em branca espuma rendada, sentir o perfume das flores, vê-las abrir de manhãzinha.
Preferia observar os pássaros no amor, esfregando os biquinhos e roçando as penas macias dos papinhos coloridos, ver borboletas amarelas se amando sobre os roseirais. Era um romântico. Sentia-se só e o coraçãozinho apertava: a vida deve ter um sentido maior, cada criatura vem assinalada para uma grande missão. Qual a sua?
Cismava. Guardar tesouros, ouro ou diamantes, esmeraldas, rubis, safiras, pedras frias que não serviam para nada? Tomar conta de uma árvore frondosa, cheia de si, que não precisava de ninguém? A roseira tinha seus espinhos que a protegiam. E ele viera ao mundo para que? Por que a ânsia, aquela certeza de que algo ainda aconteceria?
Andava assim pelos caminhos, absorto, infeliz, esperando. Olhava as formigas e admirava sua faina incansável, tão ordeiras, obcecadas com o trabalho, carregando inacreditáveis folhinhas verdes para um futuro incerto. As abelhas eram lindas, as habilidosas obreiras ou operárias descendo no coração das flores, sugando o néctar, recolhendo nas patinhas o pólen, executando a dança quando regressavam às colmeias. Odiava a regalia, a imponência da rainha, invejava os zangões, que eram capazes de morrer por amor, no voo nupcial.
E assim vivia Fluk, zanzando de uma banda para outra o dia inteiro, banzando na vida, ouvindo os grilos e os vagos rumores do ermo, flanando por entre as flores, mordiscando uma pétala, vagueando sobre os arbustos, perambulando entre uma espera e um vago sonho.
Um dia viu FLORA, a rainha. Era a primavera e o céu exagerou no azul. O sol doirou a Natureza, aqueceu os corações, os pássaros trinavam, chilreavam, gorjeavam, pipilavam enlouquecidos de beleza. As borboletas coloriam o ar. Ele viu Flora em toda a sua magia primaveril, esparzindo amor e ternura. Fluk descobriu para que nascera: viera ao mundo para amar Flora. Tornou-se poeta. Escrevia poemas belíssimos que o vento levava ao ouvido da Amada. Ela, encantada com as palavras que eram pura melodia, dizia: “Meu Deus! Como alguém pode amar assim?”. Fluk, aos seus pés, mal elevava os olhos, humílimo, tímido, cego de amor.
Correram os dias. Flora continuava cada vez mais bela e mais distante. Fluk percebeu então que a vida pode ser trágica e cavar abismos entre as criaturas. Resolveu morrer. Ficava horas sentadinho perto de sua cachoeira, enxugando as lágrimas com jasmins e rosas brancas. Quando seu coraçãozinho não aguentou  mais, foi para o ponto mais alto da cachoeira e saltou.
Flora passava por ali e pela primeira vez reparou nele. Estranhou que tal criaturinha quisesse morrer e logo na primavera... Quando Fluk se atirou nas águas, a poderosa deusa Flora aparou-o nas mãos e transformou-o em um nenúfar, muito branco, muito belo, que foi pousar com suavidade em um remanso. E lá ficou eternamente, qual alva ninfa sobre a flor das águas.


  

domingo, 15 de setembro de 2013

FÁBULAS E PARÁBOLAS

FÁBULAS E PARÁBOLAS

      Fábulas e parábolas são narrativas curtas, de tempos imemoriais. Elas dão lições, tentam ensinar da maneira mais simples; no final, há sempre um ensinamento, às vezes chamado moral da história. Fedro é dado como o introdutor do gênero. É de sua autoria o famosíssimo texto O Lobo e o Cordeiro.          Todavia, o nome mais expressivo das Fábulas é Esopo, grego que nasceu em 620 a.C. e morreu em 564 a.C. No século XVII, La Fontaine, francês nascido em 1621, reescreveu as fábulas de Esopo, em linguagem clássica, modernizando as narrativas; há também algumas escritas por ele; cite-se como exemplo a deliciosa La Jeune Veuve.
     Jesus Cristo ensinava por Parábolas, algumas famosíssimas, vide a do Semeador, plena de sabedoria. Dizem que utilizava o gênero, para ser facilmente compreendido pelo povo. Nosso Mestre entendia de Pedagogia... 
     Às vezes se misturam os conceitos de Parábola, Fábula e Apólogo. Tentemos dar uma diferença simples: A Parábola dá uma lição de ética, através de prosa metafórica, para transmitir sabedoria. O termo vem do grego “parabole”. A Fábula, em geral, apresenta animais como personagens; eles agem como os seres humanos, com seus vícios e fraquezas. A moral vem em uma frase, no final da narrativa. O Apólogo é um gênero alegórico. São lições de vida, através de situações semelhantes às reais, envolvendo pessoas, objetos ou animais, seres animados ou inanimados. Um dos Apólogos mais famosos é A Agulha e a Linha, de Machado de Assis.
     Uma das Fábulas mais conhecidas, A Cigarra e a Formiga, foi reescrita até hoje, por muitos escritores. No entanto, ela é deliciosa na visão da nossa Emília, a contestadora, a personagem mais famosa de Monteiro Lobato. Quem não conhece a historieta, realçando, enfatizando o valor do trabalho e da poupança? A Formiga era precavida, trabalhadeira, prática. A Cigarra, boêmia, boa vida, cantava e dançava. No inverno, doente, fraquinha, a Cigarra pede ajuda à Formiga. Esta, nada cristã, bate a porta na carinha da Cigarra e ainda lhe dá uma lição de moral: Não cantou o tempo todo? Agora dance... Emília detestou a Formiga, amou a Cigarra e reescreveu o final da Fábula: Quando a Cigarra bate à porta da Formiga, esta abre e vê a Cigarra linda, bem vestida, com um casaco de vison. Nossa artista diz à Formiga: Quer alguma coisa de Paris? Fui contratada para cantar e dançar no Olimpia, com excelente cachê! A Formiga, furiosa, lhe diz: Conhece um tal de La Fontaine? Se o encontrar  lá, mande-o para o inferno!
      Assim são as Fábulas, eternas. Sua interpretação é riquíssima. Há uma delas, moderna, que já foi citada por muitos e até contada em filmes. É a da Rã e do Escorpião: Houve um dilúvio e o Escorpião chega perto da Rã, todo cavalheiro e lhe propõe que a Rã o atravesse para o outro lado. Os dois seriam salvos. Ao que a Rã retruca: Cuidado, se você me picar, morreremos os dois. “Você está louca, amiga Rã! Jamais farei isto!”. E lá vão os dois, atravessando o mar de águas turvas e perigosas. De repente, o Escorpião pica a Rã... Ela, moribunda, lhe diz: “Por Deus, por que fez isto?! Ambos vamos morrer!”. O Escorpião responde: “Não consegui deixar de fazê-lo. É minha natureza...”.
     Gosto muito dessa fábula moderna. Pela vida a fora, eu, Rã por natureza, credulidade ou ignorância, dei muita carona a Escorpiões de várias espécies. E haja picadas... Não me mataram, no sentido denotativo do verbo. Talvez apenas arranharam a minha crença nos seres humanos.
      

        

domingo, 8 de setembro de 2013

CARTA ABERTA A DEUS

CARTA ABERTA A DEUS
   
     Senhor! Não me julgue insensata, ousada ou herética. Eu O amo, respeito, mas não consigo entender as regras do Alto Escalão aí de cima. Elas existem? Tudo não pode ser casual e aleatório. O que acontece com os seres humanos, hoje e sempre?
      Tenho certeza de que a receita do Fiat era perfeita e Suas intenções as mais excelsas. Então, por que nunca deu certo? Cada vez mais os Homens chafurdam nos vícios, perdem-se nos mares da ambição, nos charcos das maldades. Tudo é culpa do malfadado e duvidoso livre arbítrio, que mais parece um presente de grego, que um prêmio?
      É bem verdade que aparecem alguns Santos, criaturas magníficas, que dão exemplos de bondade, de amor, de altruísmo. Todos os admiram, mas ninguém os imita. O Senhor até nos enviou seu Filho Jesus Cristo, só bondade, Homem e Deus, que deu a vida pelos irmãos. Adiantou? Não. Muitos dizem amá-LO, mas continuam nas veredas da perdição.
      Tenho ainda muitas perquirições. Criança ainda,  aprendi na Bíblia, que havia dois Profetas muito diferentes: Jó e Habacuque. O primeiro era dócil e obediente, passivo, aceitava os desígnios de Deus, sem protestar. Assim, foi um dos mais infelizes dos mortais. Habacuque, ao contrário, era orgulhoso, ousado, corajoso e questionador. Não tive dúvidas. Eu era mais Habacuque que Jó. Por isso, hoje, na velhice, continuo indignada com minhas eternas perguntas sem repostas.
      Veja, Senhor meu: os bons, os generosos, os puros de coração, os que fazem do amor, da caridade e da integridade, sua bandeira, como são recompensados? São mais livres de dores, perdas, doenças, sofrimento? Não. Muito pelo contrário.
Continuando, com maior respeito, meu Deus, siga meu raciocínio. Surgiram religiões, seitas que falam em Inferno. Verdade? Como o Senhor conseguirá lugar para tantos?! E ad aerternum, para sempre?! Outras filosofias negam a existência de tal sentença macabra. Falam em reencarnação, muitas partidas, idas e voltas, para depurar, aperfeiçoar.
      Não sei. Respeito todas as teorias, todavia tenho dificuldade em aceitá-las. Por quê? No mundo moderno e de sempre, justos e pecadores parecem receber castigos idênticos. Os Filhos do Demo (perdão, Senhor, é apenas uma expressão...), aqui não são castigados. Têm morte rápida e indolor, passagem fácil. Alguns bons, esforçados, amigos das virtudes, sofrem horrores, com doenças horríficas.
      Eu só queria entender, meu Deus querido: por que tanta falta de lógica? Há exemplos, não sei se verdadeiros, que alguns, como Voltaire, o grande hipócrita, morreu como um animal daninho, com pavor e dores, subindo pelas paredes, em tresloucada loucura. Não sei se é lenda. Mas e tantos outros monstros?
      Senhor, lance um olhar sobre esse mundo nosso. A maldade, a corrupção, a violência, bestialidades monstruosas, tudo ficou globalizado, comum, repetitivo. Basta o Senhor assistir, aí do alto, aos jornais televisivos do mundo... Ah, perdão! Quase me esqueci de que o Senhor não precisa disso, pois é a sapiência suprema, que tudo sabe e tudo vê.
      Mas, então, meu Senhor?! Há um porquê em tudo isto? Dá para entender? Há respostas? Perdão. Não estou LHE cobrando nada. São só elucubrações de uma pobre mortal, na minha  ignorância.  Se puder, me dê uma luz. É     pedir demais? Afinal, sou criatura sua.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

QUANDO SETEMBRO VIER

QUANDO SETEMBRO VIER

Ao ler o título acima lembro-me do Projeto homônimo, que consegui concretizar, durante onze anos. Em todo setembro, eu convidava alunos, jovens poetas de Ribeirão Preto e cidades da região, para virem ao    SESC, declamar seus poemas. Certa vez havia quatro ônibus de cidades vizinhas e o Auditório ficou repleto. Era gratificante, apareciam textos ótimos, mas algo me entristecia: os meninos, os jovens talentosos traziam poemas lindos, mas os liam com vozinha fraca, sem nenhuma expressão. Criativos, todavia mal preparados, matavam a beleza de sua obra. Tentei enriquecer os Encontros, convidando também jovens músicos.
Hoje, no entanto, falo de outro setembro, do presente, do agora. Ora, vivo em Ribeirão desde o final da década de 40, quando eu era ainda uma adolescente. Em 1996 recebi o título de cidadã ribeirão- pretana, oficializando assim, o grande amor clandestino. Amo esta cidade acima de qualquer outra. Até a linda Belo Horizonte, rodeada pelas montanhas mágicas e coloridas, ao entardecer... E nunca presenciei algo idêntico ao que está acontecendo agora na muito minha Ribeirão.
A Cidade tem quatro Academias de Letras, A Casa do Poeta e do Escritor, a UEI (União dos Escritores Independentes), o Grupo dos Médicos Escritores e em 2014 haverá a Décima Quarta Edição da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, já famosa em todo o País e até no Exterior. Sabe-se que Ribeirão tem o maior número de Faculdades per capita. Enfim, a Cidade tem tudo para ser digna de um antigo epíteto, A Capital da Cultura. Para estímulo maior, amantes da literatura, grandes ativistas literários, apresentam Programas líteros - musicais, organizam Saraus que vão ficando famosos, como os de Irene Coimbra, no Hotel Nacional. Mensalmente, um público de mais ou menos cem pessoas comparece a esses encontros para ouvir falar de literatura, escutar boa música  e declamações.
Contudo, nada é perfeito.  Os   Sodalícios enfrentam problemas diversos, a Feira Nacional do Livro faz sucesso graças ao trabalho insano e notável de pessoas idealistas, como Isabel de Farias, Heliana Silva Palocci (que se afastou do cargo da vice-presidência, cedendo-o a outra mulher brilhante, Adriana Silva), o nosso quixotesco Edgard de Castro, contando agora  com a ajuda da competente Viviane Mendonça e mais um verdadeiro exército de voluntários, que tem conseguido dar brilhantismo ao mais importante evento cultural da Cidade.
Na contramão, críticos de plantão, pessimistas e amargos (gente até muito inteligente, escritores e articulistas) alertam sobre os erros, não mencionando os acertos. A crítica ácida nada ajuda. Por que não estimulam os movimentos, participando, dando sugestões?
Pode parecer otimismo infundado ou até ingênuo, mas conhecendo de perto a Feira Nacional do Livro  de Ribeirão Preto, a incrível evolução do teor literário dos Concursos, que têm descoberto ótimos escritores, a grande quantidade de gente escrevendo, interessando-se pela literatura, os Saraus,  Editoras lançando gente nova, obras variadas, tudo alimenta a esperança de uma messe farta, que, se não resolver os problemas sociopolíticos cruciantes, é um bálsamo, uma certa luz.
Não deixemos nos cobrir com a cinza do pessimismo, evitemos a cegueira daqueles que nunca aprenderam ou se esqueceram da grandeza humana. Esperança e otimismo não fazem mal a ninguém. Muito pelo contrario.


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

TORTURA MODERNA

TORTURA MODERNA
          
     O exame chama-se Ressonância Magnética. É uma experiência trágica, da qual jamais se esquece. Um pesadelo.  O paciente, após preencher um formulário com dezenas de perguntas minuciosas, assina como responsável, caso algo lhe aconteça. Dirige-se para uma sala branca e fria, não pode usar nada de metal (anéis, relógio, até grampo de cabelo).
     Deita-se em uma cama. Na parte posterior, uma espécie de túnel. O infeliz é imobilizado (cabeça, braços, mãos; máscara branca sobre os olhos), tampões nos ouvidos). Avisa-se que haverá muito barulho (os tampões são inúteis...). Começa a sessão de tortura.
     Pouco mais de uma hora, com barulhos, ruídos absurdamente fortes, violentando todos os decibéis possíveis. Eles são variados: batidas de madeira, de ferro, sirene, apitos de navio, claque, roldanas estrídulas, choques, estrondos. Repetições de vinte vezes, cada espécie horrífica. De vez em quando, a cama cede uns centímetros, para frente. Imagina-se que o horror acabou. Ledo engano! Outra série se inicia, com variações...
     De olhos cerrados, todo o tempo, houve momentos que pensei em desistir: levantar-me, libertar-me, fugir! Continha-me. Eu teria que voltar e recomeçar tudo... Comecei a ludibriar a situação. Sem abrir os olhos, primeiro rezei. Não ajudou muito. Tentei analisar as várias espécies de estalos, ruídos, uns mais surdos, outros cortantes, metálicos. Após, piorou. A Máquina trepidou como se eu estivesse dentro de um liquidificador vazio.
         Tive uma ideia, para driblar a tortura: fazer elucubrações do porquê o meu neurologista me pedira dois exames monstruosos. E do crânio. Ele espera encontrar o que no meu cérebro? Personagens literárias, monstros rastejantes, alienígenas? E, se, de repente, um inesperado tumor surgisse?
         Fiquei sádica e metafísica. Conversei com Deus e LHE disse que aceitava a sentença, a morte. Imaginei o féretro, a partida, o adeus a pessoas queridas... E os sonhos não realizados? E as pendências? De repente, não mais que de repente, como disse o Poeta, fiquei otimista. Nem precisei de tomar a injeção de contraste. Isto é bom ou ruim?
     Sou leiga em Medicina, nada sei de exames e um pouco trágica (para não dizer covarde...), para enfrentar problemas de saúde. Continuei, em plena guerra dos barulhos, a inventar meios de sofrer menos. Brinquei, em pensamento, de escanear meu cérebro... Mas tudo logo me cansava e o inferno não acabava!
     Finalmente fez-se silêncio. Paz de morte, de salvação. Ninguém nada falou. Nem eu. Boca não disse palavra... Fiz ficção: o médico e a enfermeira, todos se foram e me abandonaram aqui... À minha sorte! Até quando?! Dali alguns minutos, ouvi a vozinha agradável da jovem: “O médico está examinando as últimas imagens... Logo a senhora poderá sair”. Mais uns dez minutos de pesadelo.
     Finalmente libertaram-me, tudo acabara! Sentei-me na  cama, mais pálida que o lençol. Dor de cabeça, olhos pesados, zonza. Fui pegar minhas coisas e me dirigi para a Sala de Espera. A tortura terminara. Na minha ignorância, tentava entender o acontecido. Com a tecnologia tão adiantada, por que uma Máquina monstruosa?! Sem nada entender, questionei com meus botões se aquilo, o fragor horrendo, tudo   não seria necessário, justamente para instigar, estimular meu cérebro, para ver sua reação? Curiosidade enorme para ler o Laudo, que só sairia dali alguns dias.  Na data marcada, voei até o local, abri o grande envelope branco. Lá estava o resultado, o relato, em arrevesada linguagem científica, com nomes bizarros.
         Fui ao médico, para que ele “traduzisse” aquele linguajar estranho. Ele leu e afirmou: nada de significativo. Tudo normal para sua idade... Tive vontade de matar o meu neurologista.