terça-feira, 27 de março de 2012

MEUS HABITANTES DO SÓTÃO


MEUS HABITANTES DO SÓTÃO

Houve um tempo em que briguei com Deus,  após tragédias que caíram, fatidicamente, sobre mim.  Refém de conturbados sentimentos, escrevi poemas catárticos, onde, com certa ingenuidade, eu confessava ter descoberto a dualidade humana. Quanta inocência! Na época, eu ainda pensava  que nós éramos apenas “bondade e maldade juntas”. Culpa da teoria de Pascal...
            Hoje, um pouco mais sábia, percebo, com certa preocupação e curiosidade, que somos multifacetados. Há inúmeros Eus que formam um verdadeiro vitral, às vezes até belo, outras, de profundo mau gosto. Ainda no meu poema, que hoje percebo ser uma falseta,  eu me comparava a uma melodia “Tocada a quatro mãos. / Há belos sons toantes, / Harmonias dissonantes / Acordes de absurdo. / Caminho dual, sem meta / Atraída pelo torto, pelo oblíquo / Na sombras dos crespos da vida. / Se vejo Deus, quero o Diabo / Anjos bons me olham de esguelho / Nas ruas tortas da contrapartida”.
O ser humano é complexo em demasia e sempre que se tenta descrevê-lo, o resultado é um erro. Talvez seja por isso que se diz que ele é feito à imagem e semelhança de Deus. Se a Criação espelha tal complexidade, imagine o Criador! Penso hoje, até atingir o próximo degrau da clarividência, que é impossível compreender a alma e os atos humanos. Como se vive sob um dinamismo inexorável, o que se sente hoje, não se experimenta amanhã. Que é real? O que hoje sofre, chora, quem amanhã tripudia sobre os acontecimentos? Como as lágrimas de hoje podem se transformar no sorriso de amanhã, ou vice-versa?
Por várias vezes já me confessei presentista. Então, os incautos e apressados em seus julgamentos, acreditam que amo o presente, porque fui infeliz no passado. Ledo engano! Creio que quase ninguém terá gozado uma juventude rica como a minha: no Brasil, em Paris, onde morei um ano, nas inúmeras viagens, era sempre uma existência repleta de surpresas boas, amigos novos, experiências, amores, como se eu fizera um pacto com a felicidade. É um posicionamento, uma filosofia: se o passado foi bom, ele já se foi. Agora e sempre é viver o presente, à exaustão. Deixar para trás os tempos de antes, com tranquilidade. Como ensina Mestre Machado: Coloque uma laje sobre a tumba do passado e o epitáfio: Descanse em paz.
            Voltando à tese inicial: realmente a nossa multifacetação é um pouco assustadora. Quando um fato nos bate à porta, não se sabe quem vai abrir. Como reagiremos? Com uma coragem prometeica, desânimo, ou com a frouxidão dos covardes que não ousam? É preciso ter um cuidado extremo, pois ações geram consequências, colhe-se o que se planta. São verdades insofismáveis e nossa seara depende, em grande parte, da semeadura. É bem verdade que para uma boa colheita, há a influência do tempo, da qualidade da terra, mas nos cabe amanhar bem o terreno, escolher boas sementes, quando se quer evitar o fracasso, o desastre, para que a vida não se torne um irremediável e frustrante parto da montanha.
            Sabe-se que o viver é uma aprendizagem, no sendo, no dia-a-dia. Não há rotas fixas e tabuletas indicativas. O caminho se faz caminhando, já disse o poeta. É um happening constante, sem roteiro fixo. Resta-nos, por precaução, uma experiência que poderá propiciar benesses: “de fora”,  analisar todos os Eus que nos habitam; sem preconceito ou rotulações. Ter o extremo cuidado com este nosso elenco variado, cuja atuação, às vezes, nem sempre é louvável.
            Pode-se até esperar pelo Oscar de Deus. Mas cuidado! Ele é muito exigente no julgamento final.


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