segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A Ficção do Passado

A Ficção do Passado

                   Já se sabe que biografias, a própria História da Humanidade, tudo é ficção. Recriam-se os fatos pelos olhos do autor. Pode haver uma pesquisa detalhada, mas a memória guarda episódios diferentes, opta por um ou outro. Ela é seletiva. Experiência interessante é, em uma reunião familiar, surgirem interpretações várias. Ninguém está de acordo. Não foi assim que aconteceu. Quando se lembra da infância, nada é o que parece. Os olhos, os sentidos infantis são diferentes do olhar adulto. Cada um tem sua versão.
                   No famoso poema Pecado Original, Álvaro Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, diz:” Ah, Quem escreverá a história do que poderia ter sido?” . Afirma que se alguém o fizer, esta será a verdadeira história da humanidade.   Teoria interessante. Os seres humanos são mais o que não conseguiram ser. Deste modo, nós somos nossas falhas, o que não conquistamos, os farrapos de sonhos não realizados que deixáramos abandonados na poeira da estrada da vida. O mesmo acontece, portanto, com a História ou o Projeto Primeiro dos homens ou de Deus, o que não foi alcançado. O verso do poema sobre nós é válido também para a História dos povos: “Somos todos quem nos supusemos”.
                   O tema é fascinante e serve de lição para teimosos, cabeçudos e donos da verdade. Quando alguém afirma que está certo é porque nada sabe e, provavelmente, está errado. Aliás, não há erro nem acerto, mas apenas hipóteses, ou posicionamentos pelos quais optamos.  Na religião, na filosofia sobre o que vem depois, quando a vida finda, enfim, todas as teorias sobre o post mortem, se há prêmio ou castigo, necessidade de resgate, volta, tudo é hipótese.
                   Ora, a vida não é uma ciência exata. Místicos, filósofos, espiritualistas, cientistas, todos tentam explicar os mistérios que nos envolvem. Na realidade, a insciência humana põe todas as respostas em xeque. E quem acerta é o poeta: “Não procures nem creias: tudo é oculto”. Verso enigmático. Dá o conselho negativo que não deve ser seguido, porque o mistério existe, mas está escondido, é algo esconso, ao qual o homem dificilmente terá acesso.
                   Diante de complexidade tão grande, deve-se ficar atento, não ser ingênuo. Nada de afirmações categóricas, rotulações, preconceitos. Tudo que se relaciona à vida, ao ser humano, pode ser, talvez seja, provavelmente será. Há uma citação de Heitor Villa-Lobos, sobre a efemeridade do tempo, que tenta explicitar como tudo é fugaz, passageiro, dúbio, sutil, o que torna a existência algo inefável, jamais explicada por fórmulas rígidas e lógicas: “Assim como não gosto de pensar no futuro, não me sinto bem olhando o passado. Eu sou como um viajante que, ao atravessar um rio em um cipó, não pode olhar para trás nem para a frente, a fim de não perder o equilíbrio”.
                   O ser humano é a grande  vítima de uma passagem terrena tão fugaz. Surge então a filosofia do Carpe Diem ( aproveite o dia, o momento) ; são palavras de Horácio, na ode I. No entanto, semanticamente este verbo é rico, multívoco, plurissêmico: Responda-me, leitor, rapidamente, sem titubeios: O que é aproveitar a vida? Sem dúvida, haverá dezenas de respostas, as mais variadas, dependendo da cultura, do caráter, da filosofia e até da genética. Guimarães Rosa, o Mago de Cordisburgo, não tinha razão ao afirmar que a vida é perigosa?

9 comentários:

  1. Ely,

    Gabriel Garcia Marques escreveu em Viver para Contar: "A vida não é a que se viveu, e sim a que se recorda, e como se recorda para contá-la."

    Pensava nisto hoje a tarde, após ler sua cronica, enquanto manipulava fórmulas: analgésicos, antiinflamatórios, antibióticos,antidepressivos - todos com o mesmo prefixo...


    Onde fica a sua Macondo, Ely? Que tal dividir conosco suas memórias?

    Beijos,

    Jacy

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  2. Minha querida,
    Meu coração geográfico é muito bizarro. Nasci em Pratápolis, MG, mas o lugar não me diz nada.Em compensação, amo as serras azuladas da minha Belo Horizonte; passei lindos anos na Cidade das Alterosas. Na adolescência apixonei-me por Ribeirão Preto e em 1996 este amor clandestino foi oficializado, quando me tornei cidadã ribeirãopretana. Na década de 50 fui conhecer a terra de meu pai, o lindo pueblo espanhol Pardesoa. Senti-me de lá, assim como em Portugal, país queridíssimo. Tudo muito misturado. A lucidez tenta organizar os sentimentos. O coração não permite.
    Beijos.
    Ely

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    1. Ely,

      Carlos Heitor Cony, em Quase memória, relembra seu pai, a partir de um pacote enviado a ele, na redação do jornal. A partir deste evento,escreve um livro delicioso, gostoso de ler.

      Não escreverei as minhas, porque não sou escritora, tampouco sei escrever, apenas sou uma leitora voraz. Porem se a fizesse, haveria um capítulo especial dedicado a uma grande professora de portugues e literatura que tive o privilégio de conhecer no início dos anos 70, no Colégio Vilhena de Morais.
      Lembro-me da escolha da melhor redação da classe:ganhei várias vezes o primeiro lugar; de uma palestra com Fernando Sabino na Bibilioteca da Associação Comercial, onde ele cansou de responder sobre o Encontro Marcado para um monte de adolescentes.

      Mas o fato mais marcante foi um filme Super 8 que fizemos, eu e a minha turma falando do Amor atraves dos tempos. Ele foi filmado no Museu do Café e apresentado para toda a escola.Esta que vos escreve foi uma das protagonistas. Mas a grande mentora de todas estas atividades foi a mais brilhante professora que conheci em todos estes anos.

      Beijos,

      Jacy


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  3. Querida Jacy,
    Seus comentários líricos e sensíveis me comovem. Sabe, doce menina, às vezes o que os olhos veem depende mais da pessoa que vê. Suas lembranças do passado são poéticas, verdadeiros poemas. E a autora é você.
    Beijos.
    Ely

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  4. Tudo é oculto e ao ser deslindado, quer queiramos ou não, sempre nos traz um pouco de medo e de inquietação. Mas me parece que somos sempre guiados, pela poesia e pelo coração, pelos caminhos mais seguros. Onde há amor, não há erros nem acertos, como você bem disse nas entrelinhas. Só uma vida que nunca se acaba. Beijos e o meu carinho!

    Nívea Braga

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  5. Querida Nívea,
    Seus textos sensíveis e líricos me encantam. Em toda mensagem que alguém escreve fica um pouco da alma do autor. É sempre um prazer recebê-la no meu Blog.
    Beijos.
    Ely

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  6. Meus amigos,
    Decididamente, eu custo a entender as máquinas. Fiquei meia hora tentando adicionar um comentário. Finalmente, encontrei o melhor caminho.
    Beijos.
    Ely

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  7. “A inteligência foi dada ao homem para duvidar”
    Em se tratando de palavras, o percurso é curto. Abra um dicionário.
    Em se tratando de ideias, o percurso é inimaginável. Vá até aos abissais raciocínios da mente humana.
    Em se tratando de poetas, a definição é plural. Como disse Guimarães Rosa: “mesmo que não se perceba, há sempre um mistério que não se está vendo”.

    Um grande abraço de Aparecida


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  8. Minha querida,
    Pessoas ilustres, inteligentes e sensíveis, como você, visitam meu Blog. Ler seu comentário acima é algo notável. Volte sempre!
    Beijos.
    Ely

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