segunda-feira, 14 de novembro de 2011

MUNDO ESFACELADO

MUNDO ESFACELADO
        Não é difícil fazer um esboço das características do mundo moderno. Como diz José Castello, no seu livro “A Literatura na poltrona”: “... o mundo ficou mais acelerado e mais feroz” e “mais instável e atordoante”.
            Outra característica de nossos tempos: a uniformidade e a repetição. Os seres humanos, os valores, as predileções, as maneira de agir, tudo alimenta o terror, o desamparo. É uma era suspeita, causa desconfiança, como denunciou Nathalie Sarraute, autora francesa do famoso romance “Bonjour Tristesse”.
            Os homens ficam meio padronizados, as virtude e vícios arrefecem, se bem que nosso Machado de Assis já comprovara em seu conto A Igreja do Diabo, as tênues diferenças entre os dois valores.
            É um conceito de domínio público, que amor e ódio são duas faces contrárias da mesma moeda. Só se pode odiar a quem se ama. Como alimentar este sentimento tão forte, por alguém que nos é indiferente? Uma pessoa neutra é como se não existisse. Como odiá-la? Ela não tem classificação alguma na gradação de nossos sentimentos.
            No poema Congresso Internacional do Medo, Drummond menciona ser este sentimento nosso pai e companheiro: ele é tão essencial que “sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”. Estranhamente, ele afirma que o ódio não existe. Em uma leitura mais ampla, pode-se entender talvez que o poeta nos fala do esfacelamento dos sentimentos, neste mundo aviltado, coisificado.
            É uma afirmação meio bizarra que tem certa lógica: o homem moderno vai ficando meio morno, incapaz de grandes paixões e ódios ferrenhos. Ele se apequenou. Nas notícias diárias dos jornais televisivos, custa-se a entender a brutalidade gratuita, a maldade irracional; é o efeito de uma causa maior, cada dia mais comum: o abastardamento dos pretensos seres racionais.
            Temos que sobreviver em um mundo assim, caótico, globalizado. E sem volta. A inexorabilidade do chamado progresso atual não tem terapêutica, nem retorno. Há soluções que amenizam: uma delas é a Arte.
            Assim, dentro do caos, quem faz literatura lança mão da mais eficiente função catártica, uma espécie de âncora. Por isso a produção literária não pode ser a antítese da crueldade do mundo moderno. Obras frouxas, adocicadas, com soluções prontas, falsas, são um engodo, não são literatura. Quando se escreve há que se ter a coragem de chafurdar no charco da modernidade.
            Ao se procurar a razão de por que escrever, é bom lembrar a assertiva de Fernando Sabino: “Eu escrevo para saber por  que escrevo”. E jamais se procurem razões mais brandas. Ainda é citando José Castello: “Escrever é atravessar um inferno”.
            Quem faz ou lê literatura com a mera finalidade do entretenimento, é um achincalhe, no primeiro caso e uma perda de tempo no segundo. Nas duas possibilidades, uma grande fraude. A boa literatura deve ser, no mínimo, um antídoto contra o veneno letal do mundo moderno.

5 comentários:

  1. Ely, que texto excelente, lúcido e profundo!

    Lembrei-me, também, de "O Medo", de Drummond (1945). Duas últimas estrofes:

    "Adeus: vamos para a frente,
    recuando de olhos acesos.
    Nossos filhos tão felizes...
    Fiéis herdeiros do medo,

    eles povoam a cidade.
    Depois da cidade, o mundo.
    Depois do mundo, as estrelas,
    dançando o baile do medo."

    O caótico mundo contemporâneo é repleto de ilusão, desequilíbrio, engodo e superficialidade.

    Mas podemos fugir da mediocridade, como você disse, pela Arte... que nos eleva aos sentimentos sublimes... nos fortalece e liberta...

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  2. Querido Márcio,
    Vale a pena escrever, quando se tem leitores tão inteligentes e sensíveis como você. Sei que sua grande missão é formar cabeças de jovens. Você é um excelente professor e terá sucesso nessa empreitada, pois é idealista e tem uma cosmovisão rica.
    Beijos.
    Ely

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  3. Ou nós nos tornamos os mecenas para difundir futuros artistas ou tenhamos de cerrar nossos olhos e admitir o caos instalado na humanidade. Parcos valores. Pequenas expressões. Poucas palavras. Muita mímica e uma mesmice aflorada.
    Obras de cunho comercial. Muitas delas com fatores apelativos. Sem conteúdo.

    Aparecida

    Cidissima

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  4. Cidíssima, minha cara!
    Interessantíssimo o seu comentário, profundo, com belo vocabulário. Notável seu estilo novo, com frases curtas, telegráficas, como o Modernismo de 22 apreciava. Eu também.
    Beijos.
    Ely

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