segunda-feira, 7 de novembro de 2011

iNSIGHTS & ACHADOS

INSIGHTS & ACHADOS
O passado é uma ilha longínqua (ou um arquipélago?) que vem boiando na memória e, às vezes, lança âncora. São pequenos episódios, fatos pitorescos, lembranças.
Quando se vê um quadro, uma pintura, muito de perto, a visão borra, falseia a realidade, desvirtua, adulterando a tela. A manhã fria, a brisa doce, o céu de brigadeiro, a vida azeitada com sua rotina prenhe de afazeres essenciais, outros apenas acessórios. Por que os fatos antigos vieram pousar na memória, como borboletas brancas, aparentemente surgidas do nada?
Meu aluno da quinta série do Curso Fundamental, miúdo, mirradinho, não aparentava mais de dez anos. Olhou-me sério e perguntou: Por que coisas ruins acontecem? Eu o fitei preocupada, diante da possível resposta tão complexa. Antes que eu ensaiasse uma hipótese, ele disse: Não será porque a gente gosta só da banda madura da fruta? Abismada, questionei se ele entendia a beleza da metáfora que criara.
Meu pequeno discípulo ficou atarantado com o termo metáfora; tentei explicar-lhe, mas todo o mistério permaneceu. Anos mais tarde, lembrando-me do episódio, fiz um poema, que acabou sendo premiado em Concurso Literário: “O homem, incauto, inocência, / procura sempre viver / no lado maduro do fruto, / e no verde, no ácido acre / morrem suas esperanças e sonhos, / apodrecidos, às vezes, na espera fatal. / Planta a árvore, nega o fruto? / Que é a vida se não houvera / ao menos uma só vez / rica seara, doirado trigo / que enfeita o vento carregado de azul? /O terreno da esperança / é demasiado fértil. / Há risos de bonança / em plena tempestade. / Diante da sempre frugal colheita, / o homem, animal que sonha, / não aprende, não aceita o bruto / da realidade cansada de repetir. / Ele ama, inteiro, persistente, / o lado maduro do fruto.”
O professor, na garimpagem diária, às vezes encontra uma pepita valiosa dentro da bateia. Aplicando, certa vez, uma técnica simples, na aula de redação, pedi aos alunos que trouxessem gravuras de revistas, para se inspirarem. Um aluno da sexta série do antigo Primeiro Grau, trouxe várias ilustrações dos quadros de Portinari. Entre elas, ele escolheu a famosa tela que mostra garotos jogando futebol com uma bola feita de farrapos, perto de um cemitério com vários animais ao redor.
Eis o incrível texto que ele produziu, em classe, inspirado na tela: “Os mortos escapam das tumbas, querem correr... As almas cansadas querem brincar, olhar para o luar negro; há uma alegria sem fim. Relembram brincadeiras esquecidas. Saem do cemitério, avistam o campo. Pegam um trapo achado ali, embrulham. As suas mãos rasgadas pelo tempo amarram correndo, querendo brincar.
De repente o piar das corujas os avisa que o sol vai sair. Os meninos correm para as portas do cemitério, entram nas tumbas e ali ficam, por mais um século sem fim.”
Bem que o Mago de Cordisburgo já afirmou que, em uma surpresa, o mestre  pode, às vezes, aprender com o aluno. Na primeira experiência, quando lancei o Laboratório de Literatura, após um ano aplicando técnicas, explorando a criatividade, recolhi alguns conceitos que eles redigiram, elucidando sua arte de criar, em contato com textos de autores brilhantes: “É uma experiência que me fez viver e conhecer melhor o ser humano”. (V.L.P.G.); “O Laboratório de Literatura estará criando loucos sublimes, gênios ou monstrinhos?” (W.W.P.); “O Laboratório de Literatura é um dos únicos lugares onde eu posso ser eu mesma; aqui não preciso usar máscaras e sei que aquele que ouve é meu igual e me compreende”. (M.A.P.M.); “O Laboratório de Literatura é a fonte rica onde toda semana venho buscar alimento para minha vida enfadonha”. (D.J.F.).



           

4 comentários:

  1. O seu post de hoje é um achado valioso! Lembro-me de uma aula de catequese, com turminha de sete anos que uma catequista comentava a passagem bíblica que falava do vaso velho e do vaso novo, que todos precisaríamos deixar os erros pra trás e renascer. Eis que um pequetito sábio questionou "mas tudo que eu vivi também é importante, mesmo as coisas que fiz de errado, quando eu briguei com os meus amiguinhos. Elas fazem parte de mim, tia. Se eu jogar fora, estou me jogando também." Achei de uma profundidade tocante. E as coisas são assim. Em paralelo à rotina, correm em nós, veios de sabedoria pura, de uma lucidez delicada e bela. Sorte de todos os professores que podem fazer disso um exercício. Obrigada pelo texto maravilhoso e parabéns pelo poema premiado. Você é incrível!89

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  2. Nívea, minha querida,
    Seus comentários são de grande beleza, sensibilidade e sabedoria. Como pode alguém tão jovem, possuir tesouros assim?! Mistérios insondáveis.
    Beijos.
    Ely

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  3. Ser Professor! Tornar-se um observador! É assim que um professor faz com seus alunos. O mestre, com seus olhos de lince, possui uma antena de grande alcance. Ela é potencializada para descobrir novos talentos. Futuros poetas, futuros escritores.
    Algumas crianças já possuem na alma inclinações poéticas. Outras necessitam de pequenos estímulos .
    É gratificante para um professor recordar desses alunos especiais. Como leitora deste extraordinário blog faço uma pergunta: Quais motivos levam esses pequeninos a não adentrarem numa futura carreira literária?

    Aparecida

    Cidissima

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  4. Cidíssima querida,
    Belo comentário o seu. Quanto à pergunta final, poucos acabam por abraçar a vida literária. E a razão é simples. Literatura é linguagem. O bom conhecimento da língua é instrumento essencial para o escritor. A maioria dos alunos, ao optar por uma carreira, deixa de lado o conhecimento, a importância da língua. Eles a usam só como instrumento. Uma minoria se arroja a percorrer os difíceis caminhos da Literatura. Um escritor famoso já disse: escrever é conhecer infernos.
    Beijos.
    Ely

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