domingo, 21 de outubro de 2012

À PROCURA DA INFÂNCIA PERDIDA


À PROCURA DA INFÂNCIA PERDIDA

         Tenho criticado, intimamente, uma síndrome bizarra de autores maduros, que estão sempre a escrever sobre sua adolescência e a mocidade. Como o castigo vem a cavalo, um dia desses tive uma crise de melancolia, relembrando cenas, episódios de tempos longínquos.
         Resolvi brincar. Salvei o que achei interessante na minha Caixa de Entrada, deletei fatos, joguei muita coisa para a lixeira. Ora, a vida sempre nos ensina homeopaticamente. Assim, tentei estabelecer uma cronologia pelos sentimentos experimentados, o que foi mais marcante.
         Dos cinco aos sete anos, a existência era uma sinfonia de sensações tácteis, visuais e gustativas; olfativas não, porque sou deficiente do nariz. Uma sinestesia contínua. Nessa época, o palco central, na pequena cidade da Pratinha, no sul de Minas, era o meu pomar. Meu pai e um tio não negavam suas origens: espanhóis do pequeno pueblo Pardesoa, a cem quilômetros de Santiago de Compostela.
         Os galegos trazem plasmado no sangue o amor pela agricultura. A Galícia é um jardim, uma joia verde, com seus milharais sem fim, as árvores frutíferas, incríveis macieiras, pereiras e cerejeiras, que primeiro se engrinaldam de flores e após, ficam pejadas de frutos. Na primavera, os campos se transformam em um inacreditável tapete de flores doiradas.
         Algum tempo depois que habitávamos aquela casa grande e sombria, o pomar já estava formado, com uma variedade de frutas nunca vistas na cidadezinha: maçãs rubras, várias espécies de laranjas, peras, ameixas do Japão e as outras, bem brasileiras, amarelas, caldentas, com linda penugem. Pessegueiros, os pés de carambola, baixos e arredondados, oferecendo seus frutos gomosos e meio ácidos.
         Sempre fui uma menina meio solitária, sem irmãos, tinha poucos amigos e preferia passar horas infindas deitada na terra morna do pomar, olhando com encantamento os frutos, oferendas coloridas e deliciosas. Meu encantamento pelas árvores, desde aquela época, dura até hoje. Elas têm personalidade própria, orgulhosas, altaneiras, outras pequenas, mais humildes. Quase entro em transe diante de ipês floridos, paineiras níveas ou róseas, exuberantes, ipês do jardim, palmeiras e coqueiros. A Natureza e o verde me fascinam.
         Às vezes penso que temos dentro de nós várias personagens, com tempo, espaço e características diferentes. Na Peça da Vida (escrita e dirigida por quem?) representamos, como podemos, nossos papéis. Não há ponto, ensaios, orientação definida. É tudo no happening, no acontecendo, dia a dia. Até que nos tornamos adultos, com mais capacidade de reflexão e, às vezes, não cometemos mais traquinagens. Somos personagens que se sucedem e vistas da plateia, agora, parecem artistas bizarros, meios desarvorados.
         O que tem a ver a professora, a mulher adulta, a escritora, a personagem madura de hoje, por exemplo, com a menina de oito anos, vivendo, pela primeira vez, no campo, fazendo travessuras, apostando corrida sobre a eguinha em pelo, com os cabelos soltos, sob o céu azul da Fazenda do Morro do Ferro? Ou, um ano depois, sentindo-se prisioneira no Colégio Sacre-Coeur, de Belo Horizonte, amordaçada na sua linguagem  coloquial, repleta de mineirices, quando na famosa Casa de Ensino só se podia falar em francês?
         Vieram outras épocas, mais mudanças de cidade e de Estado, novos pesadelos. Mas tudo me parece, hoje, um filme mal dirigido, com roteiro desconhecido e esta realidade só ressurge nos pesadelos, nos sonhos. Gostaria mesmo é de fazer uma viagem pelo Inconsciente, visitar o Id, pôr ordem nesses porões.

  
        

9 comentários:

  1. Cara amiga e escritora.
    Bom estar aqui. Esta casa sempre me é familiar. Convidativa à reflexões. Lugar onde posso compartilhar minhas experiências. Minhas lembranças. Voltar aos meus idos de criança. Mãos dadas a quem, nas entrelinhas, até parece me escrever. Em tuas linhas me recrio. Lembranças daquela balança, segura pelo galho forte da ameixeira. Aquele canto a soar ao vento, naquela voz de menina que despertava para a vida, sem saber o que haveria de vir. Hoje quem sabe o enredo pudesse ser alterado. Pudesse ser reescrito. Quantas cenas não seriam encenadas. Amiga. Não podemos reeditar nosso texto. Ele já foi encenado. Podemos sim recontá-lo a nosso modo. Belos tempos passado. Presentes ao nosso presente. As linhas tecem encontros. Saudade. Minha mãe ausente há oito longos anos. Tão presente em minhas memórias. Querida amiga. Você me encanta quando me leva a adentrar o seu universo. Obrigada

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  2. Querida Inajá,
    Que prazer, minha querida, tê-la de novo visitando meu Blog. Sua inteligência e sua sensibilidade sempre me comoveram. Pessoas iluminadas como você são um presente de Deus. A infância é realmente um lugar mágico, onde moram nossas fantasias. É belo pensar nessa pretensa realidade, porque só guardamos aquilo que queremos. Fica sendo uma Ilha da Fantasia para onde se pode ir quando quiser. Se não acredita, pergunte ao Freud...
    Volte sempre. É puro privilégio ter uma leitora arguta e sensível como você.
    Um abraço.
    Ely

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  3. Querida e tão cara amiga, professora e escritora.
    Tenho visitado teu espaço com frequência.
    Os textos belos os tenho em conta.
    Comentários nem sempre seguem com a mesma proporção das leituras.
    Faltam-me palavras.
    Mas guarde contigo que os aguardo sempre com muito gosto e apreço.
    Obrigada e até mais.

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  4. Ely,

    Depois dos seus livros estou encantada com as memórias de Pedro Nava,nosso Marcel Proust tupiniquim. Não posso comparar porque confesso:não li.Tambem não li Joyce, que voce citava nas aulas. Minha querida voce é contista, poetisa e cronista.Deixe as memórias para os septuagenários.

    Jacy

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  5. Doce Jacy,
    Você tem razão... Raramente visito plagas longínquas, a infância e a adolescência. Mas, como eu disse, caí em tentação. Sou humana, sabe? Quanto ao seu conselho bizarro, para eu deixar tal missão aos septuagenários, quantos anos acha que tenho?
    O leitor é um mistério. Recebi recados que este foi o mais belo texto que escrevi. É que o leitor lê o que ele gostaria de escrever. Sabia? Tenho uma amiga querida que diz não gostar do que escrevo, porque jamais falo de mim. Ledo engano! O escritor está sempre a falar dele próprio, mesmo quando o tema é o outro.
    Beijos.
    Ely

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  6. Fazer a travessia mental nos lugares que deixaram saudades, é reconhecer num coração desperto, o testemunho do que nunca ficará invisível.
    Impossível não viajarmos, às vezes, pelas veredas da nossa existência.
    Não podemos renunciar nossos princípios desde o início como Verbo. O alicerce, a moradia, a supremacia dos encontros admiráveis, até uma nostalgia, não como sequela mas como "Prendre un enfant par la main ", "Segurar uma criança pela mão".

    Abraços de Aparecida


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    1. Minha querida,
      Comentário inteligente e sensível. Amei, principalmente pela citação final, muito pertinente.
      Beijos.
      Ely

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  7. Maria Aparecida Pimenta de Carvalho25 de outubro de 2012 às 12:51

    Hoje tive o prazer de ler o seu artigo Á Procura Da Infância Perdida, um dos melhores textos que você escreveu ultimamente se me permite dizer. São imagens lindas, parece que você estava pintando uma tela com palavras.
    É dona Ely, a nossa cabecinha nos trai, às vezes algumas lembranças nos pegam de surpresa, onde ficaram guardadas, o que as fez despertar, não sabemos. O que é mais espantoso é que a sensação é a mesma, quando acordamos estamos em outro mundo, às vezes nem tanto poético mais...
    Todos nós temos lembranças, Ely, agradáveis ou não; a gente é que escolhe o que vai para lixeira, não é assim?
    Procura mais aí no seu sótão, tenho certeza que encontrará mais um montão de coisas que darão artigos lindos.
    Você abriu a caixa, agora é só deixar fluir para o papel, ou o computador, como queira...
    Beijo enorme!

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    1. Minha querida, minha querida!
      Se você não acrdita em mim, leia Freud. A infância não é sempre bela. Para ele, é a pior época, cheia de fragilidades. Mas você tem razão sobre as traições de nossa memória. Ela guarda só o que quer. Deleta o resto. Sábia... Quanto a você ter gostado do texto, também é pessoal. Há pessoas que amam essas digressões ao passado. Outras não.
      Beijos.
      Ely

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