segunda-feira, 19 de setembro de 2011

OS MONSTRINHOS MEDONHENTOS

OS MONSTRINHOS MEDONHENTOS
Pedi emprestado o título deste artigo a Mário Lago, do seu livro infantil da década de 80. O herói da obra é um parto da montanha às avessas: deveria ser um monstro, mas nasceu com voz de anjo e de flor, quixotesco, idealista.
No livro do autor do samba “Ai que saudades da Amélia”, o pretenso monstro nasce bom e gentil. A parábola questiona posicionamentos sérios sobre a herança genética, podendo mesmo acirrar a celeuma entre    Rousseau e Hobbes, se o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, ou vice-versa.
            Ora, há pessoas ingênuas (ou acomodadas?) que se apegam a conceitos clássicos e jamais mudam de opinião, acreditando em falsas verdades de tempos imemoriais. Tomemos como exemplo o que se pensa sobre as crianças, uma visão sempre lírica: elas representam a pureza, seres ainda intocados pelos pecados, pelos vícios. São angélicas criaturas, imaculadas.
            No final do século XIX vieram à luz as teorias freudianas, que muito explicavam a complexidade humana. E os anjinhos perderam as asas e as auréolas. A criança, na realidade, é um monstrinho de egoísmo, movida a instintos, trazendo em si, em potencial, impulsos e Complexos, dos quais os adultos são reféns.
            A Arte, que sempre tenta inovar, procura os caminhos mais insólitos para alicerçar suas obras, na tentativa de melhor compreender os homens e o mundo. Assim, o cineasta espanhol Carlos Saura, nas pegadas de Freud, lançou em 1976, o filme Cría Cuervos.
            O citado filme foi tema de debates e teses de Psicologia.  A obra de Saura mostra que a infância nada tem da propalada beleza, não é uma época feliz. Muito pelo contrário, a narrativa é plena de amargura e sofrimento. A heroína, a pequena Ana Torrent, imersa em um mundo de decepções, rodeada de pessoas infelizes, reage com frieza estranhamente natural, que combina e repousa, com perfeição, com sua expressão de anjo, porém extremamente impassível.  O pano de fundo, como em outros filmes espanhóis da época, além de defender as teorias de Freud, pinta um retrato sombrio da Espanha, no regime de Franco.
            Algumas ideologias espiritualistas enfatizam o sofrimento como caminho para aperfeiçoar o homem, elevá-lo. Não em Cría Cuervos. A realidade cruel vai despertar na menina o que ela tem de pior, transformando-a em um monstrinho. Outros filmes espanhóis seguiram a linha de Saura, caracterizando uma estética pesada, densa, sombria, de um realismo cru e científico.
            Na realidade, sabe-se hoje que o ser humano traz, em sua carga genética, tudo o que há de melhor ou pior, além dos instintos, a força propulsora ou motivadora da personalidade. Para o Pai da Psicanálise, eles não são herdados geneticamente, mas se referem a fontes internas de estimulação corporal. No filme  Cría Cuervos, a personagem infantil é um pequeno monstro destruidor e vingativo, plasmado pelo sofrimento.
            Enfim, tudo que se vê, lê ou aprende nas Artes e na vida, tem a finalidade maior de compreender o homem, ser intrincado. Resta sempre ainda muita coisa obscura. Por isso é imperdoável o posicionamento simplório de quem usa rótulos definitivos e ingênuos, em se tratando da mais complexa obra da Criação.

3 comentários:

  1. Carlos Saura e Mario Lago, dois artistas que dignificaram o século XX, cada qual na sua arte.
    Belo texto, Ely.

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  2. O bem e o mal existem! Um deles crescerá mais quando mais alimentado. Não podemos nos esquecer da carga genética de uma criança, do meio em que vive, da educação de seus pais.
    Muitas vezes sua índole independe do meio. É má e pronto!
    Atualmente temos crianças mimadas, birrentas, mal acostumadas, mas isto é caracterizado pela liberdade dos pais, mães acéfalas que as expõem ao ridículo e uma parceria com o consumismo.
    Mas o que se está discutindo aqui é a criança geneticamente transformada - seu comportamento. Este é o problema que encontramos.
    Não temos mais crianças boazinhas. São ardilosas, violentas, desafiadoras, com sorriso sarcástico.
    Parece ironia mas estes adjetivos só encontrávamos nos adultos. Os tempos mudaram!

    Aparecida

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  3. Cidíssima e Rossetti,
    Amigos queridos, visitantes assíduos no meu Blog. É sempre um prazer recebê-los com seus comentários inteligentes e gentís.
    Abraços.
    Ely

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