segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A INFÂNCIA REVISITADA




A INFÂNCIA REVISITADA

Não sou saudosista. Pelo contrário, tenho um pé atrás com pessoas que evocam muito o passado: elas não são felizes no presente, não administram bem a realidade. Talvez eu seja meio radical, mas não creio na falácia que se aprende com o vivido. Quando os fatos parecem se repetir, mudaram-se os tempos, os atores, hábitos, costumes, valores e tudo é um eterno happening: aqui, agora, o novo pedindo opções.
Há pretensas verdades que se cristalizam. Há que se duvidar e analisar sempre. Quando ouço dizer que a infância é a época mais bela, mais poética, digo sempre: Vá ler Freud.
Nasci em uma cidadezinha de Minas, saí de lá com seis anos e poucas vezes voltei. Nessas visitas rápidas constatei que minhas raízes desapareceram, a ternura erradicou-se, pouco sobrou. Da última vez, fui levar um tio saudosista obcecado.        Quando cheguei à rua da casinha onde nasci, só uma curiosidade me movia: ver os lindos canteiros de margaridas, defronte a casa. Todavia, o progresso fatídico nada perdoa. Por questões práticas, a casa foi reformada, o jardim desapareceu. Alguns quarteirões à frente, de novo a curiosidade me cutucou. Desta vez mais forte. Como estaria “meu” pomar lindo, pejado de frutas brasileiras e europeias, os pés de carambolas, seus gomos amarelos e ácidos, as macieiras enfeitadas de pomos rubros, doces, os inacreditáveis marmelos? No local, o coração apertou. O Moloch da economia e do lucro construiu várias casinhas de aluguel, vulgares, antiestéticas, práticas.
      Voltando da malfadada visita, lembrei-me de Fernando Pessoa: ¨Em tudo quanto olhei fiquei em parte. Com tudo quanto vi, se passa, passo¨. Também Drummond, falando de Itabira, filosofa que tudo se acaba e assim nossa vida. Em um artigo, Rubem Alves ratifica os dois poetas, melancólico, quando conta sobre a destruição do Pico da Pedra Branca, em Pocinhos do Rio Verde. Os poetas são grandes professores e cada poema é uma lição de vida inesquecível.
      Ora, há temas que nos tornam filosóficos, com pitadas metafísicas. Grandes dores são comuns a todos; frustrações, perdas, sensação de fracasso, inseguranças, tudo parece moldado do mesmo barro da condição humana. Variam só os portadores, lugares, épocas. Geralmente, essa cota negra da existência, preço a pagar, tem algo de fatídico e inexorável. As alegrias não. Dosagens diferentes, razões várias, elas dependem de sensibilidade, lirismo, decepção, gosto, antenas, filosofia de vida.
      Assim, os escritores e poetas ajudam a decifrar os mistérios que permeiam as pilastras do templo da existência humana. Não há mensagens explícitas. Às vezes são pistas, um cicio, um murmúrio. Aqueles que têm ouvidos atentos, ouvem. Os de sensibilidade embotada permanecem surdos. Os infelizes fazem ouvidos moucos

6 comentários:

  1. Ely, gostei muito do seu texto! Gosto de me lembrar do passado, mas estou cada vez menos saudosista. Não sentimos e pensamos mais como antes. Viver o presente é muito melhor.
    Seu texto me lembrou o poema abaixo.
    Ótima semana! Beijos. Márcio.


    "O passado é o presente na lembrança"

    Se recordo quem fui, outrem me vejo,
    E o passado é o presente na lembrança.
    Quem fui é alguém que amo
    Porém somente em sonho.
    E a saudade que me aflige a mente
    Não é de mim nem do passado visto,
    Senão de quem habito
    Por trás dos olhos cegos.
    Nada, senão o instante, me conhece.
    Minha mesma lembrança é nada, e sinto
    Que quem sou e quem fui
    São sonhos diferentes.

    (Ricardo Reis [heterônimo de Fernando Pessoa], in "Odes".)

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  2. O saudosista é um hospedeiro da ilusão.
    Não vive, hiberna!
    Troca seus pés no chão por uma gangorra que o faz levitar.
    Tantas chances de se projetar, viver a realidade, administrar suas buscas, perpetuar seu valioso momento!
    Desconhece o gerúndio!
    Ele brinca com o tempo, acorda ainda sonolento, arquiteta seu futuro e não se dá conta que ainda adormece.

    Aparecida

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  3. Olá, Ely! Estava tendo problemas para postar no blogspot esses dias, razão pela qual não havia respondido esse post. Com ele, entrei na máquina do tempo e fui procurar carambolas pelos terreiros. Estavam docinhas! Quanto aos canteiros, não se preocupe. Enquanto forem cultivados na memória, estarão imunes ao tempo e à modernidade. Beijos!

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  4. Querido Márcio,
    Lindo seu comentário, ótimo seu gosto poético. Fernando Pessoa é, sem dúvida, um dos poetas mais famosos da Literatura Universal.
    Beijos.
    Ely

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  5. Cidíssima,
    Você postou um comentário, um dos mais belos textos que você já escreveu! Metáforas lindas, assertivas filosóficas de grande profundidade. Você realmente estava inspirada.
    Meus parabéns!
    Ely

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  6. Querida Nívea,
    Cada comentário seu é uma joia, pedra literária preciosa. Você é uma escritora nata.
    Beijos.
    Ely

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