sábado, 30 de março de 2013


                                        CONFITEOR
                      
          De um conciliábulo insólito entre Deus e o Diabo, devo ter surgido. Só assim me entendo: sou um estranho animal maldito, fugido de algum Apocalipse de autor ignorado. Só oscilações e incoerências, feita de répteis e pássaros: o rastejar  repete-se continuamente, do voar não se prescinde. A execranda dualidade reflete-se no dia-a-dia, com projeções atávicas. Sou sempre o mesmo simulacro, carbono, um “bit” do grande computador da Criação, que se repete sempiternamente, preso a estruturas e limitações primevas. Para dar-me a sensação de liberdade, criou-se o mito do livre arbítrio: minhas dúvidas constantes, meus infernos repetidos me dizem que nem as grandes quedas ensinam a optar.  A escolha é sempre cega e precária. Os resultados funestos. Quem não aceitar minhas palavras, conte-me de que barro é feito: o meu é podre e perecível. A porta da saída é sempre a morte; o prêmio, a velhice; a glória, uma experiência tardia e estéril que, adquirida, não serve mais para nada, o espetáculo acabou.
          Fala-se num Deus lá em cima, cego, mudo, surdo e de mau gosto. Basta ver-lhe a obra. Dizem que Ele a fez. Ou então, a Divina Presença cansou-se da monarquia e exilou-se. E me perdi de vez, numa democracia inútil.
          Reorganizo as ideias. Parto de afirmações dos otimistas, inocentes que sofismam. Deve haver algo de bom neste macaco glabro, bípede, sem asas, que ainda ousa sonhar. Nós todos somos assim. A incongruência exaspera. Como renasce a esperança se conheço a outra face, as patas descuidadas, as mãos em acicate, o bisturi da língua?
          No entanto, ela teima, volta, repete-se com a intermitência da malária. Bumerangue. Escorraço-a como a um bicho pestilento: não desconheço o perigo do contágio. E como! Mas ela se insinua, serpente, animal ferino e se aninha em meu ser. Tomada, sentindo-lhe as unhas na garganta, o peso no estômago, a cabeça se perde, enxameando-se de desejos, num alude de sonhos. E eu, racional, ciente, veterana escaldada, íntima da dor e dos batismos de fogo, ouso ainda acreditar:
                        Na fidelidade, apesar das traições diárias;
                        No amor, mesmo com todas suas quedas;
                        No reinício, depois de tantos finais;
                        No ganhar, quando o mundo todo é um perder;
                        No construir, embora o homem seja  destruição;            No experimentar, ainda que todos os caminhos                        acabem em abismos;
                        No riso, diante de tanto esgar;
                        Na amizade, quando quem reina é a hipocrisia;
                         Na ternura, posto que toda pureza foi
                        conspurcada;
                         Na paz, em eterno tempo de guerra e de fome.
          E me flagelo, arranho, rasgo as carnes, diante de minhas lutas que se conflitam, maldades mancomunadas, pactos rompidos, conluios, acomodamentos rançosos, concessões letais, aceitações, degenerescências. E eu, de pé, agarrada à vida  como uma desconcertante árvore de raiz podre, recomeçando outra vez, deitando rebentos continuados da tragicomédia, quase sempre degenerada em farsa, firme, produtora, diretora, atriz coadjuvante, palco, cenário.
                        Minha grande arma: a teima.
                        Meu dínamo: o ódio à efemeridade.
                        Minha grandiosidade: a eternidade
                        de minha queda.

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