domingo, 1 de dezembro de 2013

APÓLOGOS

APÓLOGOS

Em um mundo materialista, tão violento, dirá o leitor: Para que escrever sobre delicadezas, mensagens tão líricas? Não sei. Talvez para experimentar um antídoto, por um curto tempo da leitura. Que me perdoem os realistas, gente de pé no chão. Seguem abaixo duas pequenas estórias.

I

         A Rosa reclamou para o Cravo. Daquele jeito não era possível: ele ficava com seu cheiro forte, ao seu lado, mesclando olores adocicados ao seu perfume etéreo. E ele, por amor, humilhou-se, tentando ser quase inodoro. A Rosa não ficou contente. O Cravo, com sua postura ereta e elegante, como um caniço verde vivo, aveludado e macio, ficou esconso atrás das hortênsias pomposas.  Mas a tirana não achou suficiente. Como a Natureza pôde lhe dar espinhos, a ela rainha? Por que as incômodas abelhas, as eventuais lagartas? E o tempo, o inimigo terrível! Sua decantada beleza durava tão pouco! Devia ser culpa do Cravo, que conseguia sobreviver      dias, fresco e inalterável... E ele dizia amá-la! Isto era amor?! Egoísta, malévolo, vil! E o Cravo pediu à Deusa Flora que concedesse seus dias de vida à Rosa. Ela era a mais bela, merecedora, eterna. Seu pedido foi aceito, mas ele teria sofrimentos atrozes, torturas da raiz às pétalas... Dobrar-se-ia com facilidade, com as brisas da manhã, tingir-se-iam de sangue suas pétalas. Seria relegado ao segundo plano das flores, jamais participando de festas ou dado em buquês, como oferendas de amor __ um João ninguém, um simples arbusto, um dianthus caryiophylus. Tudo aceitou pela Rosa, cabisbaixo, humilde, amoroso. Mas nem assim a Rosa ficou satisfeita. Pouco tempo depois, anunciou seu casamento com um espalhafatoso Crisântemo Amarelo, que, mesmo sem ser muito nobre, era pomposo, rico, exuberante como um sol.
         Só havia algo mais trágico que a sina infeliz do Cravo amoroso: ele jamais percebera uma tímida Violeta, sempre a seu lado, miúda, mas de perfume inigualável e que seria capaz de morrer por ele.
         O mundo das flores é semelhante ao dos seres humanos. Os grandes amores são os jamais realizados e os olhos do amor são cegos e insensíveis, só vendo o acessório e desprezando o essencial. E a pior evidência: não se tem a quem atribuir a culpa por estas insólitas verdades, que se repetem eternamente.

II
        
         Ele passeava cabisbaixo, infeliz com seu frustrado amor. A vida é injusta e amarga. Ele a amara tanto, a vida toda e agora ela partia para novos braços? Ele nem reparava nas florinhas que pisava, nos lírios que o olhavam com meiguice, nas violetas que perfumavam o ar. Será que ele não sabia que nada é eterno? Cronos não perdoa.
         De repente parou. Estava em um jardim de rosas. Olhou para elas, lindas, perfeitas. Notou então que faltava algo, que sempre o encantara. Perguntou para uma delas, branca  e pura:
Onde está aquele casal de borboletas que sempre voejava por aqui, dando vida ao jardim? Ela, sábia e misteriosa, respondeu: Elas se amaram durante uma rosa vermelha...


        



                                         

domingo, 24 de novembro de 2013

RELEITURAS BÍBLICAS

RELEITURAS BÍBLICAS


A Bíblia é literatura de alta qualidade. Assim, todos os seus textos podem e devem ser lidos conotativamente, isto é, dentro de um contexto literário, que admite leituras diversas.  Pode-se até fazer releituras em um enfoque moderno, sem correr o risco de heresia, mas sim como um exercício intelectual. Deus deve gostar disso.

I


Era no Paraíso. Eva, formosa, com uma guirlanda de flores perfumadas, envolvendo seu corpo edênico, diz a Adão: Tome jeito, criatura! Você já é bem grandinho, para obedecer ao Pai. Não comer do fruto proibido, por quê? Cismado, Adão olha para a companheira que lhe oferece uma apetitosa maçã rubra. O que ela quer? Está sempre me colocando em uma fria... Ela não é confiável. Titubeou, tergiversou, não tinha vontade, a fruta não estava madura... E custava obedecer? Por que infringir a lei? Que diabo!
         Não chegaram a um acordo. Veio o divórcio. Só bem mais tarde, influenciados pelos Anjos, reconsideraram, senão comprometeria o vir- a- ser da humanidade.

II
        
Passagem irritante, boçal. Ninguém alertou que Sansão e Dalila tinham QIs de ameba, eram quase débeis mentais?
         Amantes. Dalila, traiçoeira e mau caráter, quer acabar com o Schwarzenegger bíblico. Como descobrir a fonte de sua força, para destruí-lo? Pergunta-lhe, cheia de dengo: – Sansão, de onde vem sua força? Ele, matreiro e desconfiado. A reputação de Dalila é conhecida. Não é flor que se cheire. Falsa, traiçoeira como cobra. Sabendo disso, nosso idiota musculoso tenta enganá-la. Seria necessário amarrá-lo com cordas de arco frescas, que ainda não tivessem sido postas a secar.
         Os filisteus caem sobre ele, nosso herói os arrebenta. A mulher viperina volta a perguntar. O imbecil mente de novo, usando a mesma falseta, mais duas vezes e o Blockbuster do Livro dos Juízes, sai ileso.  Não é que a víbora volta a atacar e o mentecapto confessa a verdade? A força está em seus cabelos virgens de navalha.  A messalina, Judas de saia (ou de véus?) adormece o parvo, recebe dinheiro pela sua iniquidade e transfere o encargo a um homem, para executar a tarefa, cortar as sete tranças da cabeleira de Sansão. Foi o primeiro caso de terceirização da História. Nada é novo na face da terra.

III

         Novo Testamento. Perguntaram a Jesus o que era a verdade. Ele olhou para o povão ao redor, agachou-se e pôs-se a rabiscar o chão. Os exegetas aventam mil hipóteses. Que significava o gesto? Por que o Mestre, onisciente, que tudo sabe, não respondeu? Eu, hein! Sou lá besta de meter a mão em cumbuca? Ele conhecia a cabeça e o coração dos homens...
IV
        
E há a passagem da primeira Multiplicação dos Pães. Com apenas cinco pães e dois peixes, Jesus alimentou uma grande multidão de mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças (olhe o preconceito!) e ainda sobraram doze cestos cheios de pedaços. Dizem que o Cristo teve problemas com o fisco e com o imposto de renda. Como explicar tal despesa diante de tão pouca receita? Mas essa é outra história.







domingo, 17 de novembro de 2013

PREMONIÇÕES

PREMONIÇÕES                            
                     Uma forte emoção na infância ou na adolescência pode influenciar ou tornar-se realidade, na idade madura? O que move essa força, como entender o mistério?
                     Desde que aprendi a ler, não parei mais. Era como se um dínamo me movesse. Dentre as dezenas de livros infantis que li, quando menina ainda, a história da Sereiazinha, de Hans Christian Andersen comoveu-me de tal maneira, que parecia um aviso.
                     A pequena Sereia apaixonou-se por um Príncipe que ela salvou da morte, em um naufrágio. A criaturinha só poderia ser feliz se, com uma poção mágica, trocasse a cauda pelas pernas, tornando-se humana; mas assim sofreria o castigo de ter dores atrozes, como se andasse sobre facas. Tudo fez para viver um grande amor.
                     Aos dez anos e na adolescência reli muitas vezes a linda estória e chorava rios de lágrimas. Por que esta estória me comovia mais que outras? Simbolicamente, era uma premonição, um aviso?
                     Talvez haja uma explicação mais científica para, bem mais tarde, eu sofrer tanto dos pés.         Toda minha família, do lado espanhol, experimenta tal desgraça. Aventou-se até a hipótese de ser uma síndrome comum entre os da raça espanhola, com todo tipo de mazela: má formação dos pés, calos, o pisar meio torto e defeituoso, piorando com a vinda dos anos, uma lástima.
                     Um dia alguém me disse algo bizarro, mas interessante, sobre o problema: pessoas do signo de Sagitário sofrem das patas... Sempre tento confirmar tal teoria. Ela parece verdadeira.
                     Voltemos à Sereiazinha de Andersen. Ela, no final, foi feliz, sacrificou-se, mas experimentava dores terríveis nos pés e nas pernas. Tive este destino, não por conta do amor, mas de Cronos, carrasco inexorável. Mas já na minha juventude, quando cursava o chamado Clássico, no Otoniel Mota, quiseram aproveitar, em vão, minha altura: logo eu saia da quadra, de padiola, com tendões arrebentados. Aliás, a Educaçáo Física, na escola, era meu pesadelo.
                     Assim foi a vida toda. Detesto todo tipo de esporte. Certa vez, o médico pediu que eu fizesse hidroginástica. Tentei. Era uma turma de velhotas. Eu entrava na piscina e enquanto o Instrutor ensinava vários movimentos, eu boiava deliciosamente, quieta, com meus pensamentos. A experiência durou pouco. Havia uma mulher, ainda mais velha que eu; ela era uma delatora e gritava: Olhem, ela não está fazendo os exercícios! Ralhei com ela: Não tem vergonha de ser um alcaguete? Aborreceu-me ir ali duas vezes por semana, perder tempo. Saí, porque outra coisa que eu detestava era, na hora da chuveirada, nos banheiros sem porta, ver aquela velharada nua, com as pererecas de fora. Um horror!
                     Retornemos à Sereiazinha. Por que eu sofria tanto com a história?  Seria premonição? Mistério. Pela vida toda tenho tido experiências estranhas: sonhos, pesadelos, avisos, como se eu fosse uma Sibila. Disseram-me que eu tinha mediunidade e que devia desenvolvê-la. Nada fiz. A vida tem mistérios demais. Para que mexer com o desconhecido de outro plano?
                     Precavida ou covarde? Nem questiono a resposta. Sou cautelosa e prática. Melhor cuidar dos assuntos aqui de baixo.

                     

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

CARTA ABERTA AOS MORTOS

CARTA ABERTA AOS MORTOS

            Dia triste o dois de novembro. Nada afugenta a melancolia. Dizem que há povos que, nessa data, fazem festa, tocam instrumentos musicais, sentam-se sobre os túmulos, a família toda e ri, conversa alegremente. Tem certa lógica. Os mortos estão mais felizes que nós, os vivos. É bem verdade que as crenças diferem. Os espiritualistas acreditam em uma vida post  mortem. Alguns até estabelecem lugares específicos, como prêmio, castigo ou o limbo, onde se espera o destino eterno. Outros dizem que há possibilidade de muitas voltas, até se resgatar os erros aqui cometidos. Os materialistas são radicais: nada há após a morte, só o vazio, o não-ser.
            Sabem, meus queridos, não tenho posição definida, vacilo às vezes diante de tanta teoria, possibilidades várias, hipóteses. Na verdade, ninguém voltou para ensinar. Mas quero acreditar que existe algo. Seria muito triste, de repente desaparecer, esfumar como uma brisa etérea.
            Eu não gostava de passar pelo grande Cemitério da Saudade. Confesso que virava a face para o outro lado, cismada, temerosa... Isto há muito tempo. Depois veio a vida, perdi tantas pessoas queridas que se foram para seu descanso eterno que, hoje, quando vou lá, sento-me no túmulo da família, envolvo-me no silêncio, sinto-me ungida de paz. Após fazer as orações, relembrar doces episódios, ponho-me a passear pelas alamedas, visitando amigos, alunos, conhecidos, notando que nem a morte consegue igualar os seres humanos. Há túmulos pomposos, outros tímidos na sua simplicidade desnuda. As esculturas escuras guardam com seriedade seus mortos. Pássaros voam, enfeitando o ar, as flores tentam dar lições de efemeridade.
            Invejo os que têm uma fé de carvoeiro, seguros, certos de seus posicionamentos, suas verdades. Eu vacilo, mudo, analiso, tento entender, mas as dúvidas voltam sempre como moscas renitentes. Confesso que leio muito a Bíblia, gosto do Livro Sagrado como literatura, tenho meus Santos de predileção, rezo. Para quem? Para um possível Deus, bondade suprema, que tudo vê, tudo entende e tudo perdoa. Faz bem para a alma acreditar.
            Em seu livro Boitempo, de 1968, Drummond parece obcecado com a morte e o que viria depois. Usa, com amargura, o neologismo “         morituros”, para os seres humanos, aqueles que vão morrer. Muitos poetas famosos abordaram o tema maior, às vezes, liricamente. O que mais atrai, no assunto, é sua dubiedade, o mistério, a dúvida. Sob a mesma temática, é bom lembrar o belo soneto de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, antes da morte, falando com o Cristo, diante do Crucifixo, colocando, inteligentemente, o Filho de Deus, em uma saia justa.
            Minha relação com os meus mortos é doce e acalentadora. Sinto-os sempre perto, sonho, falo com eles, conto-lhes alegrias e tristezas. Sua presença é tão forte, que amaina a amargura da partida. E rezo. Rezo muito e, por que não dizer, peço-lhes, às vezes, que intercedam diante dos Santos ou do Chefe Maior. Afinal, eles já cumpriram sua missão. E por que não podem ser Anjos-da-Guarda?  

            O Dois de Novembro é dia de recolhimento e muita oração. Existe algo melhor para a vida conturbada dos vivos? Hosana aos que já se foram e conhecem hoje todas as respostas.

domingo, 27 de outubro de 2013

MENSAGEM À MINHA MÃE




MENSAGEM À MINHA MÃE

        Minha querida, agora em outubro, mês de seu aniversário, faz um ano e meio que você partiu. O povo diz que o tempo ameniza tudo. É falho. Cronus nos ludibria. Você não está mais aqui, embora eu a sinta viva, próxima.
         Vejo-a ainda, em sua cama, sorridente, convidando-me para assistir a um filme, na televisão, ou na mesa, quando eu a levava para saborear os pães-de-queijo que meu marido fazia. Você sempre teve um ótimo apetite.
         Estranho a casa sem você e ponho-me a filosofar. Sempre fomos mais amigas que mãe e filha. Admirava sua vaidade. Mesmo depois de noventa anos, adorava fazer as unhas, escolher cores de esmalte. Uma vez por mês, vinham pintar seus cabelos, ainda belos, da cor que você sempre apreciou, um loiro cor de trigo.
         E quando viemos de Minas para Ribeirão Preto... Eu era quase uma menina, você tinha pouco mais de trinta anos. Bonita, elegante, meu pai tinha ciúmes. Não gostava que saísse sozinha, mandava-me acompanhá-la, para que os homens não lhe fizessem galanteios. Aí, eles faziam às duas...
         Quando adolescente, comecei com os namoricos; voltava emocionada para casa, a fim de lhe contar as novidades dos amores prematuros, dos flertes. Você ria animada. Éramos cúmplices.
         Fui estudar fora, em Belo Horizonte. Em uma das férias, vim para casa e encontrei-a descuidada, com um cabelo feio, vestidos de decote alto. Nem parecia minha mãe linda. Levei-a ao cabelereiro, fez as unhas, começou a se maquiar, compramos um vestido rosa elegante, decotado, que realçava seu belo colo.
         Meu pai, espanhol bravo, ficou enciumado. Que fez com sua mãe?! Mais tarde me confessou que você estava muito mais bonita...Quando fui para a França, estudar em Paris, durante um ano, recebia cartas suas, todos os dias. Eram enormes, com notícias. Às vezes você ilustrava-as, com desenhos deliciosos.
         Ah, minha mãe querida, amiga dileta, mulher notável! Sempre foi muito religiosa, uma fé de carvoeiro, inabalável. Eu, desde criança, era um mar de dúvidas. Depois de adulta, muitos sacerdotes embaraçavam-se com meus questionamentos. Na escola, azucrinava os pobres professores, perguntando tudo. Vida engraçada. Depois,  professora, eu apreciava alunos questionadores. Como esquecer a meninazinha da quinta série? Levantou a mãozinha e perguntou: Professora, o que é orgasmo?
         A senhora riu muito do que fiz. Fechei a porta da classe e rasguei o verbo, explicando claramente. As crianças ficaram estáticas, quietinhas, na maior atenção... Em casa, contei-lhe o acontecido. Você adorou meu relato. Outra vez, eu convidara os alunos da oitava série, para assistir à série Anos   Dourados. No final, o narrador diz que uma das personagens casara virgem. No dia seguinte, os alunos estavam alvoroçados. Como podia ser? Aparecia a garota tirando o sutiã, abrindo a braguilha do rapaz e depois os dois deitavam-se atrás do sofá...
         Respondi que devia ser uma relação sexual incompleta. Eles exigiram que eu detalhasse. Não dei conta. Chamei a professora de Biologia e ela não titubeou. Pegou o giz, desenhou na lousa e disse: Isto é um pênis. Isto, uma vagina. Aqui é o hímen. Cientificamente, pôs a cartas na mesa. Os alunos ficaram atentos e sérios. Eu estava salva!
         Em casa, você, de mente aberta,  aplaudiu a professora. Ah, mãezinha, a vida é bela. Mesmo você, aparentemente longe, continua sendo minha confidente. Agradeço a Deus por deixá-la ficar comigo para sempre.
        

                           

        
          

         

domingo, 13 de outubro de 2013

RECADO

RECADO
                
                 Tu sabes que eu te respeito muito, querido Leitor. Um pedido teu é uma ordem.  Enfatizo a tua importância e digo-te  que nada teria sentido, quando escrevo, sem ti. Tu és meu co-autor, meu comparsa. Hoje, no entanto, eu te falo como a um irmão, meu sósia, xerox que somos de alma, de fraquezas e de grandezas misturadas, fazedores de sonhos, perdedores de ilusões, mal informados na arte de viver, na qual somos jogados como em uma louca partida, sem mesmo conhecer as regras do jogo, a arbitragem, limites do campo, o tempo disponível e se há possibilidade de prorrogação.
                 Tu me pediste para publicar, de novo, os questionamentos abaixo, para tua reflexão. Obedeço. Já pensei muito sobre tais perguntas. Tu te lembras? Eu começo afirmando:
                    EU sou TU, Tu me és, como diria Clarice Lispector. Se não acreditas, desarma-te, esconde tuas garras e tuas tramas, tira todas tuas máscaras habituais e responde: 
                 _ Nunca te sentiste inseguro, vendo o mundo como um quebra-cabeça sem matriz e de onde roubaram algumas peças?
                 _ Não foste, na adolescência, uma sarça ardente de sonhos, um vulcão de entusiasmo, acreditando que o mundo ali estava para ser conquistado?
                  _ Não te alimentaste do fervor e do fogo com o primeiro amor, para vê-lo logo após te fugir das mãos, como areia em ampulheta maldita?
                  _ Não fremiste com o primeiro beijo, o primeiro carinho, trilha encantada e depois perdida para sempre?
                _ Não foste um Sísifo rolando eterna pedra, construindo castelos de sonhos que eram derrubados pelo tempo?
                _ Nunca andaste sob as estrelas, pelas madrugadas, cego pelas lágrimas que te escorriam pelo rosto?
                 _ Jamais foste traído pela pessoa querida, pelo ente amado, em quem punhas todas as tuas esperanças?
                  _ A vida não te pregou peças, atrapalhando teus planos, frustrando tuas expectativas, fazendo-te de bufão, quando o teu papel era de rei?
                 _ Tu não juraste jamais te apaixonares de novo, quando teu amor morreu, e te viste, de repente, outra vez, inexoravelmente louco de paixão?
                 _ Não prometeste ser forte, heróico, perfeito e sem explicação alguma foste arrastado pelas tuas fraquezas?     
                 _ Não bateste no peito, mil vezes, “mea culpa”, “mea culpa” e de novo teus velhos pecados te possuíram, com fatídica renitência?
                 _Não disseste, apaixonadamente, “Eu te amo para sempre!” e, em um átimo, já havias esquecido a promessa?
                 _ Teus lábios não disseram tantas vezes “sim”, quando teu coração negava, ou tua boca não pareceu mentir o que deveras sentias?
                 _ Não tiveste, como o Cristo, o teu Gólgota?
                 _ Não sentes, ainda hoje, apesar de todo o Absurdo, uma obstinada Esperança?
                 _ Não continuas servo da Morte, todavia um amante pertinaz da Vida?
                  Se nunca experimentaste isto, se jamais conheceste esta rota, se achas que digo loucuras, se és diferente, então vai embora, teu lugar não é aqui. Não és um ser humano.
                  

                 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

DO SOFRIMENTO

DO SOFRIMENTO

         O sofrimento é algo inerente ao ser humano. Uma segunda pele. Criatura imperfeita, ele almeja a perfeição. Mortal, efêmero, ele sonha com a eternidade. Bicho cheio de carências e necessidades. O sonho alimenta a alma inquieta; se não sonha, morre. Quando realiza alguma  das suas mais íntimas aspirações, logo ela é posta em segundo plano e o outro ideal a substitui, porque a alma é insaciável e sequiosa. No deserto dos infortúnios, o sonho é um  presente de grego que nasce com esse macaco glabro e bípede, que talvez  seja um desvio, um acidente de percurso da Criação, por isso é frágil e inseguro. Às vezes surge um oásis de verde alegria. Ela é sempre bela e fugaz. Por isso é que felicidade é o mais abstrato dos substantivos.
         Por que não ser simples e satisfazer-se com necessidades básicas? Companheiro(a), filhos, casa, comida, dinheiro que dê para as premências diárias. Sem isso, impossível viver. Mas por que só isso não basta? De onde vem a ânsia que não se sabe de quê, os desejos mais insólitos e inconfessáveis, a certeza de que nada poderá preencher esse vazio, a busca cega, força maior, desassossego contínuo, paz inalcançável ? Surge o sofrimento , amigo inseparável do homem. Com entendê-lo? Alguém inteligente, talentoso, profissional de renome, olha-me com tristeza e filosofa: “Sou um Ph.d. em sofrimento”. É intrigante. Quais os parâmetros que o fazem afirmar isso? O sofrimento pode ser uma carência metafísica insanável? Reconhecendo-se um ser mortal, imperfeito e efêmero, em essência, a felicidade, a alegria  tornam-se inatingíveis? Dostoievski afirmou que a maior desgraça do homem é a lucidez. Enquanto o homem cria seus mitos e doura a pílula das mazelas diárias, para suportar as incongruências da vida, o absurdo da existência humana, ele pensa que é feliz. Faz ficção, mascara a realidade, vive eufemicamente o decantado amor,  a busca pela rara paixão que os assinalados conseguem sentir, tudo são muletas, drogas para não enlouquecer.
 Os chamados realistas criticam o amor-mistério, da cavalaria, herança de Camões, que depois passa pelo resgate de Hollywood, com Casablanca, e desemboca nas novelas da Globo; é amor- ilusão, de pseudo-adulto, que ficou emocionalmente entre a adolescência e a idade madura, sentimento que não resiste à aspereza da realidade do mundo moderno. São posicionamentos diversos. As relações dos seres humanos são complexas demais para serem rotuladas.
         Ora, o que se pode fazer é tentar compreender a complexidade humana.  Parafraseando o grande poeta Cassiano Ricardo: Desde o momento em que se nasce, já se começa a sofrer. Se a vida é luta, busca incontínua e vã para se conquistarem prêmios efêmeros, como coabitar com a lucidez, ter sempre a tristeza como parceira, não se desesperar? O homem reinventa a vida, com suas verdades, ainda que falsas, pesquisa, lê livros imbecis de autoajuda (só se fossem escritos por Deus, sapiência suprema), enfim, criam uma realidade insuportável e acaba, às vezes até nas suas ficções.

         Enfim, o que é sofrimento? É algo inerente, intrínseco ao homem. Talvez a felicidade, seu antônimo, seja conseguir driblá-lo, durante toda a vida. Não são importantes as armas escolhidas para essa luta terrível. O resultado é o que conta.